Violentadas
Aos 56 anos, sigo ouvindo histórias de meninas que passaram por situações de assédio e abuso que eu também passei quando pequena. Por quê?
Foi demais acompanhar o macabro caso da menina estuprada desde os seis anos (pelo amor de Deus, seis anos) pelo tio e grávida, aos 10, em sua caminhada rumo à libertação de um falo, de um feto e de um fausto de preconceitos e aberrações desta nação reacionária num grau Damares. Gentem, a tragédia em si já é insuportável, mas os fatos correlatos enojam e mostram o flácido Brasil de hoje.
E me lembro de todas nós mulheres que fomos meninas um dia. Olhares de parentes, aquela mãozinha estranha do médico, o fiu-fiu na obra, a mão no pau do motorista de ônibus, a língua molhada do porteiro. Quem nunca viveu qualquer coisa estranha? Eu já. E sigo do alto dos meus 56 anos ouvindo histórias tristes de assédio, fornicação, obscenidades, pedofilia, curras e violência sem fim contra nossas meninas. É porque somos um buraco? É porque somos bonecas? É porque somos inocentes.
Fui uma criança erotizada pelos acontecimentos tristes da minha meninice. Sei bem o que essa menina pode estar passando, mas até cair a ficha ela vai passar por várias perdas. O mais doloroso ela terá a vida toda. O acompanhamento eterno em suas memórias. Ondas em flash. Uma mão aqui, um puxão de cabelo ali, um toque no volume da calça, um dedo dentro na calcinha, um cotovelo nos peitinhos. E seguimos sendo violadas sem lei.
É claro que o psiu psiu das famílias Rodrigueanas está menos blindado e já enxergamos pela fresta a educação recalcada de uma nação apequenada. Quando vamos falar na sala de jantar sobre educação sexual? Voltamos casas atrás num retrocesso marcha tartaruga, engarrafado em boleias brasilianas. Mas bora ver o copo meio cheio?
Há uma celebração tímida em curso, uma reação positiva como o #meucorpominhasregras #nãoénão #respeitaasmina prestando um favor semântico em prol de algo que não tem vocabulário que explique. Estamos grávidos de boçalidades e não há aborto que faça esse feto podre morrer. Então, urge cuidarmos de nossas meninas e ensinarmos que não há violência maior do que o silêncio.