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Sem regulamentação, trabalhadoras do sexo se arriscam na pandemia

Diante do silêncio do Estado, as profissionais sofrem com os reveses econômicos e, para sobreviver, se expõem mesmo com medo

Por Elisa Soupin
Atualizado em 16 set 2020, 14h57 - Publicado em 16 ago 2020, 13h00
Formada em economia e cursando pedagogia, a capixaba Juh Ink compensou a falta de clientes vendendo vídeos sensuais, que custam até 200 reais (Lucas Landau/CLAUDIA)
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Antes de o novo coronavírus chegar ao Brasil e de máscaras e álcool em gel virarem itens essenciais, a garota de programa Renata*, 21 anos, fazia planos românticos com um cliente especial, um funcionário público na casa dos 40. Em agosto, eles iriam para Cancún, no México. Ele a levaria para conhecer as águas quentes do mar do Caribe. Aí veio a pandemia. Além de não viajar, a morena falante e simpática, que chegou a ganhar mil reais por dia, se viu sem trabalho. A ajuda para cuidar do filho pequeno e da família veio justamente do tal cliente. “Ele pagava quase todas as minhas contas”, diz Renata, que há três anos atua em casas de massagem e boates no Rio de Janeiro. A proposta partiu dela: passaria a quarentena na casa dele por 3,5 mil reais por mês. “Há mais de um ano, eu o encontrava umas duas vezes por semana. Ele era como um sugar daddy; me levava para sair, jantar. Nem sempre terminávamos na cama.” Ela não nega ter se apaixonado pelo homem. O filho, de 1 ano e 7 meses, foi junto com ela.

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Renata mudou-se com o filho para a casa de um cliente com quem saía havia um ano, mas decidiu ir embora depois de muitas brigas (Lucas Landau/CLAUDIA)

A convivência intensa, no entanto, acabou desgastando a relação. “As pessoas têm uma ideia equivocada do tipo de homem que procura garotas de programa. Ele é um cara supernormal, foi muito legal com meu filho. Mas brigamos bastante. Tinha toda a tensão da pandemia.” Ela saiu da casa do ex-cliente no fim de junho. Há algumas semanas, com a reabertura da cidade, retornou aos antigos locais de trabalho. No dia em que conversamos para esta reportagem, Renata estava exausta depois de cinco programas. “Pedi para eles me liberarem porque minha pussy precisava descansar”, diz.

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(Lucas Landau/CLAUDIA)

Assim como Renata, trabalhadoras do sexo de todo o Brasil tiveram a rotina e a renda atropeladas pela pandemia. A jovem teve a sorte. Muitas outras vêm enfrentando uma situação bem mais drástica. Afinal, como cumprir o necessário isolamento social quando o corpo é a ferramenta de trabalho e o contato físico se mostra essencial para a prática? Fora isso, como a profissão não é regulamentada no Brasil, a pandemia escancarou o que já se sabia: essas profissionais estão entregues à própria sorte e, diante de um Estado omisso para uma realidade absolutamente palpável como é a prostituição no país, precisam se virar.

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(Lucas Landau/CLAUDIA)
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A capixaba Juh Ink, 28 anos, tem mais de 23 mil seguidores no Twitter e cobra 400 reais por programa. Não há desconto nem pechincha. Formada em economia e estudante de psicologia, ela chegou ao Rio em 2015. Com jeito despachado, começou a trabalhar também como atriz pornô. Recentemente, colocou na ponta do lápis os gastos com a manutenção de seu apartamento alugado e com os anúncios em sites e viu que não poderia parar durante a pandemia. “Muitas meninas falaram que eu não tinha respeito e amor ao próximo, mas eu precisava pagar as contas. Mesmo atendendo, passei três semanas sem fazer sexo. Foi ruim porque, além de sentir no bolso, fiquei muito sozinha. Meus clientes são meus melhores amigos, eu sou carente”, diz ela, que admite ter bebido bastante na época.

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Formada em economia e cursando pedagogia, a capixaba Juh Ink compensou a falta de clientes vendendo vídeos sensuais, que custam até 200 reais (Lucas Landau/CLAUDIA)

Juh apelou para a venda de conteúdo online e atuou como cam girl (garotas que fazem performances sensuais virtuais) e em salas privês. O preço de seus vídeos variam de 60 reais a 200 reais. Lentamente, seu fluxo de trabalho, que antes era de até quatro ou cinco clientes por dia, está voltando ao normal. “Na última semana de julho, só não atendi ninguém em dois dias”, conta.

Outros costumes

Ter consciência sobre a gravidade da Covid-19 complicou a vida de Stephanie Amaral*, de 29 anos, estudante de biomedicina e profissional do sexo. Ela, que já chegou a ganhar 10 mil reais por mês, tem recebido apenas cerca de 1,5 mil. “Fiquei um mês em casa, mas tenho duas crianças, minha faculdade é cara e ainda ajudo a família. Tive que voltar. Comprei um termômetro e fazia os clientes tomarem banho antes do programa. Tentei atender sem beijar na boca, mas era estranho, porque meu jeito é muito carinhoso”, diz ela, que cobra 200 reais a hora (com acréscimo de 50 reais com sexo anal). A família não sabe do seu ofício.

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Os ganhos de Stephanie, que faz faculdade de biomedicina, despencaram de 10 mil reais por mês para 1,5 mil (Lucas Landau/CLAUDIA)

Em meio ao caos financeiro, Stephanie criou um sistema de voucher. “Ofereci desconto de 20% aos clientes que fizessem depósitos antecipados. Eles ficam com crédito e podem marcar o programa em qualquer data no próximo ano. Vendo também vídeos sensuais a 50 reais. Quem compra participa de um sorteio que dará direito a uma hora gratuita comigo”, explica, demonstrando forte veia empreendedora.

A transexual Thabata Rios, 32, está há 17 anos na prostituição, desde que saiu da casa dos pais, que não aceitavam sua identidade de gênero. Quando o surto da Covid-19 começou, estava realizando o sonho de viajar à Europa e ganhando 100 euros por programa. “Fiquei deslumbrada com o dinheiro, o lugar, o perfil dos clientes, muito mais cordiais e cavalheiros do que aqui no Brasil”, conta. Thabata pagava 500 euros por um apartamento na cidade de Braga, em Portugal, onde realizava seus atendimentos. Seus outros gastos incluíam anúncios em sites e jornais. “Em um dia bom, atendia sete clientes, mas em geral eram cinco. Quando um homem procura uma trans, é para ser penetrado; então tem que tomar Viagra para aguentar”, diz.

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Thabata estava na Europa quando começou a epidemia do novo coronavírus. Vendo cair drasticamente o número de clientes, voltou ao Brasil, onde recebe ajuda dos pais e de organizações LGBT+ (Lucas Landau/CLAUDIA)
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Em março, Thabata viu o movimento despencar. “Quem estava sobrevivendo de prostituição teve que abaixar o preço para trabalhar. Fiz hora por 40 euros, e, mesmo assim, eram poucos os clientes. Isso sem falar no medo de me contaminar. Eu atendia de máscara, fazia o cliente tomar banho de álcool na porta e, assim que a pessoa saía, eu tomava chá de erva-doce porque, no começo, tinha essa notícia falsa de que a bebida combatia o vírus”, lembra. O último programa que fez antes de voltar para a Rocinha, onde vive, em abril, custou 25 euros e pagou o translado para o aeroporto. Agora, ela segue em isolamento, sem trabalhar. Recebeu cestas básicas da Coordenadoria Especial de Diversidade Sexual do município do Rio de Janeiro e da Casa Nem, centro independente de acolhida de LGBTs. Os pais, com quem mantém uma boa relação hoje, também estão ajudando nas despesas.

Célia Regina Conceição, 46 anos, conversou com CLAUDIA cedinho, após sair de sua casa, na Baixada Fluminense. Ela se dirigia ao trabalho, na Vila Mimosa, famoso centro de prostituição que funciona na Praça da Bandeira, zona norte do Rio. Por 15 anos, entre idas e vindas, Célia foi garota de programa no local, mas hoje faz serviços gerais, como limpeza, obras, reparos elétricos. É uma profissional indireta do sexo. Há 20 anos, quando começou, seu programa custava 15 reais – hoje, o preço na região subiu para 60 reais.

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Aos 46 anos, Célia Regina trabalha na Vila Mimosa, famoso ponto de prostituição. Ela mesma foi garota de programa ali por 15 anos (Lucas Landau/CLAUDIA)

A Vila Mimosa foi interditada em dezembro de 2019 por causa da CPI dos Incêndios, que apontou riscos devido a gambiarras na fiação das casas. “Mas a verdade é que ali dentro é um submundo e, mesmo com o local interditado, os atendimentos continuavam. Só que o movimento estava fraco. Com a pandemia, só piorou”, relata. Célia ficou longe da Vila Mimosa por meses e se virou trabalhando na confecção de máscaras. Conseguiu também o auxílio emergencial do governo. “Ganho muito menos do que recebia com a prostituição, claro, mas acho que eu tive a minha época. Há uns cinco anos repensei a minha vida e comecei a sentir nojo daquilo. E aprendi lá na Vila Mimosa mesmo outras formas de ganhar dinheiro”, conta ela, que tem como planos para o próximo ano fazer faculdade de engenharia elétrica.

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(Lucas Landau/CLAUDIA)

Universos distintos, conservadorismo comum

São muitos os mundos das garotas de programa, com preços, acordos de trabalho e realidades variadas. O que essas mulheres têm em comum é o desamparo da lei. “A onda conservadora vivida pelo país tende a atrapalhar o avanço do debate”, acredita Ana Paula Silva, doutora em antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professora adjunta da Universidade Federal Fluminense e integrante do Observatório da Prostituição e de um grupo de trabalho chamado Prostituição e Populações de Rua em Face à Pandemia. “A relação com o sexo é o que incomoda na prostituição. Em uma sociedade que nega historicamente a sexualidade feminina, uma mulher que faz sexo e ainda cobra por isso é muito grave. Toda e qualquer relação sexual de mulheres que não seja estabelecida pelo padrão normativo da família é taxada. Elas são chamadas de ‘podres’, ‘loucas’ ou vítimas da situação’”, diz. A situação é mais complexa do que esse raciocínio. Muitas mulheres estão nas rédeas das próprias escolhas. “O que não quer dizer que não esteja em uma lógica machista”, ressalta a antropóloga.

Em uma situação como a de uma pandemia, a falta de regulamentação deixa desamparada essa massa de trabalhadores. “A prostituição fica em um limbo. Ela não é criminalizada e também não é regulamentada; essas pessoas não são reconhecidas”, diz Ana Paula. Victor Romfeld, doutorando e mestre em direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná e autor de Inimigas da Moral Sexual e dos Bons Costumes: Um Estudo dos Discursos Jurídico-Criminológicos sobre as Prostitutas (Lumen Juris), analisa interseccionalidades que complicam a vida das profissionais do sexo. “Se a gente fala das mulheres trans, elas estão ainda mais marginalizadas e suscetíveis. A pandemia aprofundou um problema que já existia, a ausência de política pública e falta de amparo do Estado”, diz o especialista.

A internet até ajudou a profissão no momento da pandemia, mas mesmo esse recorte favorece mais algumas mulheres que outras. “O ambiente online favorece as mais jovens, que lidam melhor com a tecnologia, e também as que têm corpos mais padronizados”, frisa Ana Paula Silva. “Aquelas mais velhas, que não estão no padrão têm que ir para a rua, têm que sair para comer no dia seguinte”, completa.

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O labirinto jurídico da prostituição no Brasil

A ocupação de trabalhadora do sexo é reconhecida no Brasil desde 2002 pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), e a venda de serviços sexuais não é uma transgressão, mas todo o entorno da prática pode ser criminalizada.  Para Victor, esse vácuo jurídico agrava a situação. “Não se criminaliza a mulher, mas os locais em que ela trabalha, agenciadores. Até a pessoa que aluga o apartamento onde ela atende e quem vive do dinheiro gerado, como seus filhos, podem ser responsabilizados legalmente”, explica ele. Além disso, a falta de regulamentação abre espaço para gestões ilegais, que levam à corrupção e lavagem de dinheiro. “Independentemente do que você acha da prostituição, essas mulheres precisam ter seus direitos trabalhistas garantidos. A criminalização cria abuso, explorações que ninguém tem controle. A quarentena ideal para elas, e para todos os trabalhadores, seria com acesso à renda universal que as permitisse cumprir o isolamento de forma justa e ideal”, conclui Ana Paula.

*Nome trocado para preservar a identidade da entrevistada

O que falta para termos mais mulheres eleitas na política

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