Pandemia expõe falhas nas relações amorosas e cresce o número de divórcios
O isolamento nos fez descobrir outras facetas de quem mora com a gente – e de nós mesmas. Mas dá mesmo para culpar a pandemia por separações?
um domingo de abril de 2020, a professora carioca Luanda e o marido assistiam a uma live de música sertaneja na televisão. Estavam ambos calados, olhando para os próprios celulares, sem trocar uma palavra. Incomodada, ela quebrou o silêncio: “Você consegue se enxergar daqui uma semana nessa mesma situação?”. A resposta do parceiro, com quem vivia há três anos, foi negativa. Ali, ao som de Henrique e Juliano, resolveram dar um ponto final no relacionamento. “Ainda estávamos no início da quarentena, mas já não nos suportávamos mais. Um respirava, o outro se irritava”, conta Luanda.
A pandemia tem sido apontada como a grande vilã nas estatísticas de separação, que explodiram no último ano. Segundo o Colégio Notarial do Brasil (CNB), em 2020, houve um aumento de 15% no número de divórcios extrajudiciais – realizados diretamente em cartório – comparado ao mesmo período do ano anterior. “A vida a dois já é um desafio numa situação normal; envolve equalizar valores e costumes diferentes, é uma negociação que vai ficando cada vez mais refinada com o passar dos anos. No confinamento, os problemas relacionais se agravaram”, explica Sueli Marino, terapeuta de casal e doutora em psicologia.
15% de aumento no número de divórcios extrajudiciais foi registrado em 2020
Para Emanuelle Garmes Pires, psiquiatra do Hospital Albert Einstein e psicanalista, é provável que as questões conjugais já existentes tenham se tornado mais óbvias com as mudanças na rotina. “O ponto de atrito entre os casais aumentou”, diz Emanuelle.
“Antes, o dia era quebrado pela reunião de trabalho, academia, happy hour, mas agora há mais oportunidades de observação de si mesma e do par”, completa. Luanda concorda: “Nosso relacionamento vinha se arrastando há meses. No corre-corre do dia a dia, não parávamos para refletir, mas a quarentena me deu a oportunidade de rever o meu casamento, e percebi que nossos projetos de vida eram diferentes”.
É inegável o peso da pandemia sobre as relações humanas. O excesso de convivência, o medo da contaminação, as consequências econômicas e o luto, presente de forma mais brutal, influenciam no cotidiano familiar.
“Tudo isso é gatilho para gerar estresse, mal-estar e conflito. Porém, o determinante na decisão de se separar ou não depende do ponto em que a relação está, se há comunicação efetiva, intimidade e afinidades”, diz o psicólogo e sexólogo Rodrigo Torres. “O casal precisa ter as ferramentas para a solução de conflitos, assim, não necessariamente a separação será a consequência dos desentendimentos.”
Na casa da advogada Renata*, a desconexão entre o casal era evidente. “Antes da pandemia, tínhamos uma vida social agitada, o que nos distraía das diferenças entre nós. A gente vai se ocupando, evitando olhar muito para dentro de casa. Era fácil culpar a falta de tempo pela ausência de diálogo, mas, no último ano, essa justificativa não valeu mais.”
Juntos há dez anos, o casal não brigava, mas a irritação mútua era constante. Foram meses difíceis. Ambos ficaram em home office e o filho, de quatro anos, passou a ter aulas online. “Foi enlouquecedor, pois toda a carga da educação do nosso filho e dos cuidados da casa ficaram sob minha responsabilidade”, lembra Renata.
Para completar, o marido perdeu o emprego e a separação teve de ser postergada. “Adiei a decisão porque não queria desestruturar emocionalmente ainda mais o nosso filho, que havia regredido no desenvolvimento, voltando a fazer xixi nas calças.”
A gota d’água para a advogada foi quando se deu conta que estava fazendo tudo sozinha, não existia mais companheirismo. “No dia 2 de janeiro, pedi a separação. Quis ter certeza de que a decisão não era influenciada por um estresse do momento. Faço terapia há anos e isso me ajudou a chegar numa decisão lúcida e madura.”
A importância da calma
“Há separações que deveriam acontecer de qualquer maneira e a pandemia exaltou isso. Porém, tem também quem tenha reagido à situação se precipitando na decisão pelo divórcio. Alguns casamentos poderiam ser resgatados e prosperar”, aponta Emanuelle. Antes de qualquer parecer definitivo, uma boa saída é, literalmente, ir embora, se afastar um pouco para dar um respiro na relação.
Essa foi a tática adotada pela dentista Alessandra*. “No começo da pandemia, achei ótimo ficar em casa. Eu me interessei por jardinagem e, como quase todo mundo, por panificação”, conta. O problema começou quando o marido ficou desempregado. O parceiro passou a auxiliar o filho deles, de sete anos, nas tarefas escolares, especialmente durante o expediente de Alessandra.
A criança foi recentemente diagnosticada com TDHA, e o homeschooling se provou desafiador para a família. A dentista notou a impaciência do marido, que tinha brigas constantes com o filho. “Todos os nossos problemas anteriores eu conseguia tentar contornar, mas não aceitaria submeter meu filho a uma situação familiar beligerante”, conta.
Ela chegou a pedir para o marido sair de casa, depois de 12 anos juntos, mas ele não tinha para onde ir sem renda e suporte. “O jeito foi continuar juntos, porém nem sequer nos falávamos”, lembra ela. No momento em que a situação se tornou insustentável, Alessandra fez uma viagem curta com o filho. Na volta, depois das festas de fim de ano, o marido começou num novo emprego e ela estava mais tranquila. “Ainda há muitas incertezas e não me vejo capaz de tomar uma decisão de longo prazo hoje”, conta. Ela e o marido seguem vivendo juntos.
Álcool em gel versus louça na pia
Se a toalha molhada em cima da cama e a louça suja na pia geravam brigas familiares antes, a pandemia trouxe um novo ponto de conflito: como cada um se cuida em relação à Covid-19. Há casais que discordam absolutamente sobre como encarar o vírus. A necessidade de distanciamento social é um dos maiores pontos de controvérsia.
Michelle* até que não tinha muitos problemas com o namorado, apesar de ele ser negacionista da pandemia. O relacionamento era recente e a paixão, fugaz. Ele entendia o receio da namorada, asmática, de pegar a doença.
“Ele reclamava que não podia fazer churrasco ou surfar com os amigos, mas conversávamos e ele respeitava. O problema era a família dele, com quem dividíamos a casa. Ninguém usava máscara ou praticava distanciamento. Como vou dizer para meu sogro que discordo de tudo o que ele defende?”, pergunta. “Pior ainda, todos tomaram o kit Covid e acreditavam em medicina quântica – achavam que ouvir uma determinada música seria a cura não apenas para a Covid, mas todas as doenças.”
Por alguns meses, ela apostou no relacionamento, mas isso tornava impossível ver os próprios pais, por medo de contaminá-los. “Tínhamos outros problemas, mas essa diferença fundamental em como encaramos o cuidado com a vida pesou muito na hora do término. Imagine como lidaríamos com outras questões de saúde no futuro?”
O amanhã também inquieta Beatriz*. Enquanto ela faz questão de se isolar, o noivo quer receber amigos em casa toda semana. “Estamos brigando constantemente. Eu explico minha angústia e insegurança, mas basta chegar outra sexta-feira para começar tudo de novo. Esse desentendimento acaba nos levando a embates por outras coisas também”, diz.
“Antes, o dia era quebrado pela reunião de trabalho, academia, happy hour, mas agora há mais oportunidades de observação de si mesma e do par”
Continua após a publicidadeEmanuelle Pires, psiquiatra
O conflito entre Beatriz e o noivo pode ter outras razões. Segundo Emanuelle Garmes, muitas vezes, a discordância pode ser o bode expiatório de outros problemas. “É reducionista dizer que o conflito surge apenas pela discordância acerca das estratégias contra a Covid-19. Na verdade, o núcleo do problema é a sensação de falta de amor e de cuidado”, fala.
A psicanalista explica que o contato com a morte é constante atualmente; da TV à rede social, essa é a maior pauta. “Isso nos leva a um desamparo existencial, e é muito difícil se deparar com o parceiro ignorando essa dor e indo para a festa, potencialmente colocando minha vida em risco”, explica. Esse sentimento é muito familiar para Beatriz, que agora reconsidera o relacionamento. “No passado, quando minha avó faleceu, ele não me deu o apoio emocional que eu precisava. Eu me senti muito sozinha, e agora estou vivendo isso de novo, então me questiono se quero ter um futuro com ele.”
A situação se complica ainda mais quando há crianças envolvidas. Sofia* tem três filhas com o ex-marido, com quem divide a guarda das crianças. “Logo no início da pandemia, como ele continuou trabalhando fora, decidimos que elas ficariam o tempo inteiro comigo, mas algumas semanas depois ele quis pegá-las para passar a semana com ele”, conta. “O problema é que ele não segue o isolamento, participa de festas e, no Natal, se reuniu com toda a família, com direito a amigo-secreto.”
Ela tentou um acordo, propôs visitas semanais com distanciamento e máscaras. Ele não aceitou e recorreu ao judiciário, que decidiu que as filhas devem passar o final de semana com ele quinzenalmente. “Eu sinto muito medo, até porque minha família está no grupo de risco. Elas ficaram um ano sem ver os avós por causa disso. Aparentemente, porque eu tive filhos com uma pessoa, isso dá a ela o direito de arriscar as nossas vidas”, Sofia fala. O psicólogo Rodrigo Torres concorda com Sofia e propõe uma reflexão. “O que autoriza alguém a colocar em risco a vida de outras pessoas? Nós estamos falando de um cuidado com a saúde, e é claro que a negligência levará a pontos de conflito”.
Antes tarde do que nunca
Depois de mais de um ano de pandemia, a exaustão é coletiva. Com tantas perdas diárias, seria estranho se as relações conjugais não tivessem sido impactadas. Queda da libido, acúmulo de tarefas domésticas e o cuidado com os filhos estressam e levam à exasperação.
Para evitar o efeito cascata de uma briga iniciada muitas vezes por motivos bobos, Sueli indica o que já valia antes da crise atual: é preciso conversar. “O diálogo é fundamental, como sempre foi, mas você não pode magoar o outro ao falar sem pensar. O papo deve acontecer quando ambos estão disponíveis e dispostos. Não é só falar, precisamos aprender a ouvir; é uma escuta dupla”, explica.
Se antes dava para sair de casa para esfriar a cabeça, agora o jeito é segurar o impulso de falas que podem trazer arrependimento mais tarde, e buscar se acalmar de outras formas – até um banho mais longo ajuda. Caso o diálogo realmente esteja difícil, a terapia de casal é a mais indicada para tentar apaziguar os ânimos.
“É o que dá para fazer de imediato, em qualquer nível de conflito, e, quanto antes, melhor. Quando se percebe estar girando em círculos, o ideal é pedir ajuda de um especialista. Nós temos técnica e ferramentas de comunicação que vão ajudar a estruturar a tomada de decisão do casal”, diz Rodrigo Torres.
Isso não quer dizer que a terapia salvará todos os relacionamentos. “Se houver vontade de olhar para a relação e entender o que está acontecendo, outros desejos podem surgir: de manter, de modificar e também de romper”, aponta Emanuelle. “Esse é um questionamento que a pandemia traz: ‘Eu estou feliz?’ Quando se tira as outras coisas que podiam desviar a atenção do problema, você vê duas individualidades convivendo sob o mesmo teto. A casa funciona? Sim. Mas há felicidade?”, questiona Sueli. “Se a resposta for não, é possível mudar. Nem sempre a crise é por culpa do outro. É muito duro dizer isso, mas precisamos reconhecer: o amor acaba”, conclui.
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