Uma visita a Frans Krajcberg
Como vive o escultor polonês que se reinventou no Brasil ao descobrir que a arte pode lutar pela vida
O polonês radicado no Brasil descobriu aqui a grande inspiração para sua obra
Foto: Reprodução revista VIDA SIMPLES
Um vestígio de mata Atlântica, em Nova Viçosa, extremo sul da Bahia. O jardim do escultor Frans Krajcberg, onde toda manhã, logo cedo, ele sai para caminhar, há mais de 35 anos. Num instante, depara com uma planta velha e carcomida. Observa seus desenhos irregulares, sua fragilidade. E encontra beleza.
Acompanhado sempre de sua máquina fotográfica ele clica e não deixa escapar seus objetos de êxtase. Tem mais de 20 máquinas e cerca de 200 mil fotos de miudezas da mata. “Um dia jamais é igual ao outro”, diz Krajcberg durante a caminhada. O artista polonês radicado no Brasil inspira a natureza para depois expirá-la em suas obras, fazendo delas um protesto contra a devastação do planeta.
Ele tem fôlego de sobra. Está de pé às 5 da manhã e logo após a caminhada começa suas obras. Seguimos até um galpão abarrotado de matéria-prima: cipós, raízes, cascas e troncos de árvores. Foram recolhidos de queimadas e desmatamentos de florestas pelo Brasil. Com 12 ajudantes ele seleciona os restos de madeira que serão lixados e preparados para formar enormes árvores ressuscitadas, suas esculturas.
O velho Duka, seu ajudante há 25 anos, conta que não existem regras nem linhas retas no trabalho de Krajcberg. Ele prefere formas orgânicas. “Minha vida é mostrar minha indignação contra a violência e o barbarismo que o homem pratica”, diz o artista. As esculturas levam as cores dos vestígios das queimadas: vermelho e preto, fogo e morte. Não recebem nomes. Ele as chama de “meus gritos”.
Com passos fortes, gestos ágeis e extrema lucidez aparentaria ser bem mais novo que seus 85 anos, não fosse a pele judiada pelo sol. Dedé, filha de Duka e sua cozinheira, o chama para o almoço, momento em que ele desacelera o trabalho.
O artista, nascido na Polônia em 1921, viveu os horrores da Segunda Guerra e lutou no exército contra a Alemanha nazista. Sua família foi vítima como outros milhões de judeus, nos campos de concentração. Estudou engenharia na Polônia e artes na Alemanha e mudou-se para Paris. Lá, seu amigo e também artista Marc Chagall o incentivou a viajar para o Brasil.
Kracejberg desembarcou no Rio de Janeiro com 27 anos. Não conhecia ninguém, não sabia falar a língua e estava sem dinheiro. Trabalhou como operário no Museu de Arte Moderna, na primeira Bienal de São Paulo e como auxiliar do pintor Alfredo Volpi. Até decidir se isolar nas matas paraenses.”Cresci neste mundo chamado natureza, mas foi no Brasil que ela me provocou um grande impacto. Eu a compreendi e tomei consciência de que sou parte dela”, diz.
A casa da árvore em Nova Viçosa, onde mora o artista, a 12 metros do chão
Foto: Fernando Viva / VEJA
Seguimos para sua casa. Passamos por galinhas e cachorros, únicos companheiros de período integral, já que os ajudantes deixam a casa no meio da tarde. O artista mora em uma casa na árvore suspensa a 12 metros do chão, construída sobre um tronco de pequi de quase 3 metros de diâmetro. Uma escada em caracol leva até a varanda. O sala-quarto-banheiro de madeira e vidro quase não tem mobília, apenas algumas cadeiras esculpidas pelo ermitão.
O pequeno quarto é decorado com pedras, conchas e pequenezas que ele encontra. A parede tem textura delicada: está coberta com folhas secas. Lá de cima, uma vista de tirar o fôlego: vislumbra-se uma parte de sua reserva natural de 1,2 quilômetro quadrado, onde já plantou mais de 10 mil mudas plantas nativas da mata Atlântica e um resquício do mar.
A praia deserta fica a um instante da casa. Chegando, uma surpresa: o mar banhou-a com lixo vindo de outros lugares. Sacos, garrafas de plástico e cacarecos. “Tudo é feito para ganhos imediatos. Ninguém percebe que a natureza reage. É preciso gastar tempo e dinheiro para educar e conscientizar as pessoas sobre a preservação da Terra”, diz.
O artista, que já denunciou a exploração de minérios em Minas Gerais, as queimadas no Paraná, o desmatamento da Amazônia, fica aflito com tanta passividade. “Onde estão os artistas e intelectuais para protestar contra as barbáries do século 20?” Não, ele não acredita na arte pela arte, mas na arte engajada, na arte pela vida.
Foi a convite do amigo e arquiteto Zanini Caldas que Krajcberg desembarcou em Nova Viçosa, em 1972: queriam desenvolver na cidade uma espécie de comunidade intelectual, mas o projeto naufragou. Apenas Krajcberg fincou sua raiz, arrebatado pela beleza do lugar. Dali seguirá sua voz, que parte da destruição e da morte para fazer a defesa e o elogio da vida.