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O protagonismo das argentinas na luta por direitos

Nossas vizinhas oferecem inspiração e força para a luta feminista seguir firme por aqui também

Por Isabella D'Ercole Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 16 jun 2020, 13h59 - Publicado em 21 set 2019, 08h00
A enorme marcha pró- -aborto legal e seguro que aconteceu em 2018, às vésperas da votação do projeto de lei no Senado (Reprodução/Getty Images)
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Declarar-se feminista no Brasil ainda é motivo de polêmica. O conceito é mal compreendido. Tentando evitá-lo, muitas afirmam que querem a igualdade de direitos entre homens e mulheres, mas não são feministas.

A consequência disso não se restringe à linguística. Evitar assumir o feminismo esmorece o movimento. Mas esse não é o único motivo de termos uma rede nacional enfraquecida, que encontra muita resistência e dificuldade para conseguir vitórias em suas causas. A questão envolve a formação social e de classe, fatores históricos e até a insegurança de se colocar na linha de frente. A esperança, porém, permanece. E a luta também, é claro. Seguir otimista e com olhos no futuro exige, por vezes, situações e palavras inspiradoras – e isso está mais perto do que imaginamos. Na Argentina, nossas hermanas têm obtido êxitos expressivos e marcantes.

Em 2015, o movimento Ni Una Menos organizou marchas em diversas cidades do país. A campanha foi tão forte que outras nações seguiram o exemplo ou se juntaram às argentinas na mesma data. Todas protestavam contra os altos índices de feminicídio. “Os crimes aconteciam, mas não tinham destaque nos meios de comunicação; não ressoavam no âmbito político nem no social – até que Chiara Páez, adolescente de 14 anos, foi assassinada pelo namorado. Depois disso, uma jornalista tuitou uma convocatória às mulheres: ‘Estão nos matando. Não vamos fazer nada?’ ”, lembra Ana Correa, uma das fundadoras do movimento. Ana, algumas colegas dela, ativistas e artistas mobilizaram então uma rede. Criaram uma hashtag que se espalhou pela internet e conversaram com governantes e organizações. “A comunidade toda se sentiu impelida a participar. Não era uma questão em que você podia escolher lado. Era transversal.”

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Ana Correa, jornalista e cofundadora do movimento Ni Una Menos (Lucas Landau/CLAUDIA)

Três anos mais tarde, as mulheres voltaram a tomar as ruas argentinas. Dessa vez, milhares apareceram com lencinhos verdes, os pañuelos, amarrados na cabeça e nos braços. Eles são símbolo da luta pelo aborto legal, seguro e gratuito, projeto de lei que estava em discussão fazia alguns meses e tinha sido aprovado pela Câmara dos Deputados.

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Atualmente, a interrupção da gravidez é crime, exceto em caso de estupro ou se oferecer risco à vida da mãe. O Senado vetou o projeto de lei, mas elas não desistiram. Até hoje, nas ruas de Buenos Aires, é possível ver garotas com seus pañuelos amarrados nas mochilas ou com braceletes verdes nos punhos.

E essa resistência serve de exemplo para as companheiras latino-americanas. É verdade que, com raras exceções, são poucas as mulheres de outras nacionalidades que conseguiram organizar marchas tão grandes e eficientes. “Eu acho que, antes de tudo, precisamos desarmar as palavras feminismo ou feminista. Meu primeiro emprego foi em uma revista feminista. Meus primeiros livros falavam de aborto ou da pressão sobre as mulheres para serem mães. E mesmo assim eu não me considerava feminista. Achava que, por não participar ativamente de uma organização que lutava pela causa, não merecia o título. Depois, compreendi que estava inclusa. Acho que até homens deviam se considerar feministas se defendem esses direitos das mulheres”, explica a escritora Claudia Piñero.

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Claudia Piñero, jornalista e escritora (Lucas Landau/CLAUDIA)
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Suas declarações pró-aborto fizeram com que recebesse ataques na internet. Chegaram fotos de fetos ensanguentados, ameaças de sequestro ilustradas por carros das forças militares durante a ditadura. Tentaram até censurar sua participação em eventos literários que nada tinham a ver com o tema. “Por outro lado, recebi mensagens carinhosas. Em uma feira, uma mulher me abraçou chorando. Ela queria agradecer às feministas por termos tirado o selo de tabu sobre o aborto. Por 20 anos, havia guardado segredo sobre sua experiência e carregara a culpa sozinha”, afirma Claudia.

Houve quem dissesse que o veto à lei era um símbolo de derrota da luta pró-aborto. O assunto, porém, entrou na agenda social e política. Agora, os políticos precisam se posicionar. Alberto Fernández, candidato que saiu vitorioso nas primárias da eleição para a Presidência, que acontecerá em outubro, já demonstrou apoio às mulheres. Se antes elas não sabiam ao certo qual era a opinião de alguns governantes, hoje têm certeza. A antropóloga Rita Segato recorre a uma metáfora para explicar esse processo. “É como uma ferida. Quando você cutuca, sai pus. É ruim, mas só assim cura. Nesse caso, o pus são essas pessoas que falam coisas homofóbicas, que julgam o corpo da mulher. É tão extremamente preconceituoso que já se invalida.”

Se há algo com que todas as feministas concordam é que esse tipo de discurso não tem mais o mesmo impacto de antes. Por quê? “Para a nova geração, o feminismo é natural. Elas não compreendem certas resistências. Nem sequer entendem o motivo de tanta discussão e polêmica sobre esse tema. Afinal, o direito para elas parece óbvio”, diz Claudia. Há aí um componente histórico. É uma tradição na Argentina ir às ruas. Todos os anos, lembram a data do golpe militar repetindo “Nunca mais” em protestos. Desde a ditadura, as mães e avós da Praça de Maio enchem a frente da Casa Rosada, sede da Presidência, em memória de seus filhos e netos desaparecidos. Elas inspiraram outras ações similares pelo mundo e também influenciaram as mais jovens.

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“O que acontece é que o feminismo se manteve ativo mesmo durante períodos difíceis. Não depende de ONGs ou do governo, é autônomo, atravessa eventos políticos”, explica Luciana Peker, jornalista e autora de La Revolución de las Hijas (“A revolução das filhas”, em tradução livre, ainda sem versão no Brasil). E o movimento se fortaleceu. Recentemente, algumas jovens argentinas denunciaram na escola um professor que as convidava para sair. O colégio não lhes deu ouvidos. Elas foram às redes sociais e a Justiça interveio. “Há cinco anos, isso não teria acontecido. Chegaria a um abuso, que marcaria a vida de uma ou várias garotas para sempre. Talvez nem seguissem estudando. Conseguimos frear essas violências e, assim, salvamos o futuro dessas jovens”, afirma Luciana.

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Luciana Pecker, jornalista e escritora (Lucas Landau/CLAUDIA)

O movimento jovem é potente. Daqui em diante, a discussão é por mais direitos, liberdade e segurança. Mesmo que as leis não sejam aprovadas de primeira ou que a oposição siga criando obstáculos, a resistência das meninas é forte. “É a geração que vai nos levar a uma sociedade muito distinta”, declara Ana Correa.

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Mas o feminismo não é só uma herança familiar ou um comportamento aprendido em casa. As argentinas têm a vantagem de contar, desde 2006, com uma lei que garante a educação sexual nas escolas. Aprendem sobre o próprio corpo e o do outro, enxergam com mais clareza situações de abuso e assédio, reduzem os tabus. “É o único caminho para assegurar que o desejo feminino não seja uma decisão exclusiva dos homens. Hoje, tudo que a mulher almeja é julgado. Ela é criticada por ter filhos demais, por não querer ser mãe, por transar ou por dizer ‘não’ ”, afirma Luciana.

Deve-se também levar em consideração o papel das redes sociais. Com acesso maior à internet e uso constante dela, as garotas conseguem se organizar e se informar com mais facilidade. Até os memes apareceram na época das marchas e, com humor, mostravam os pontos que as mulheres pró-aborto defendiam ou tiravam sarro da oposição.

A Argentina está longe de ser um paraíso para as mulheres. Os números mostram que a disparidade salarial é grande, que a divisão de tarefas não é justa e que ainda há muitos crimes de gênero. Mas é a vontade de lutar que diferencia o país. “Nossa capacidade de nos organizar não deve ser vista com superioridade. Pelo contrário. Entendo que é nosso dever agora olhar para o restante da América Latina e ajudar as que não têm a mesma segurança para exigir direitos iguais”, afirma Luciana. E, para quem anda com o coração pesado diante da batalha, fica o essencial recado de Ana: “O fascinante é que o feminismo acaba com a angústia e coloca você no lugar de ação, mostra seu verdadeiro poder pessoal”.

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Agradecimentos à Entidade de Turismo do Governo da Cidade de Buenos Aires e ao hotel Hub Porteño

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