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“O feminismo é ainda mais importante na periferia”, diz Eliane Dias, produtora do Racionais MC’s

A dama de ferro do rap nacional conta sua história e fala sobre a realidade da mulher negra no Brasil.

Por Júlia Warken
Atualizado em 21 jan 2020, 17h00 - Publicado em 17 nov 2015, 13h19

Ela é advogada, já foi assessora parlamentar na Assembleia Legislativa de São Paulo (onde atuou na Comissão de Direitos Humanos), e é hoje a produtora do maior grupo de rap do Brasil, o Racionais MC’s. Só que para chegar até aqui, a batalha foi árdua, como sempre é para as mulheres negras que nascem na periferia.

Eliane Dias conta que chegou a morar na rua com a mãe e que jamais conheceu o pai. “Eu lembro que com cinco anos eu já trabalhava. Plantava milho, mandioca, cuidava de porcos. Eu, minha mãe e minhas irmãs não tínhamos casa, então morávamos na casa de outras pessoas. A gente foi construir uma casa quando eu já tinha nove ou dez anos”. Também foi com essa idade que ela passou a trabalhar como babá e empregada doméstica. Na adolescência, decidiu investir nos estudos e pagava o colégio particular com o próprio salário, mas a graduação só veio bem mais tarde, quando já era casada e mãe de dois filhos.

Eu sou feminista e não é por opção. É uma necessidade. Ou a gente se impõe, ou somos engolidas. O feminismo é ainda mais importante na periferia, mas é bem mais difícil ele chegar aqui”, diz ela, que mora em Capão Redondo, bairro da Zona Sul de São Paulo. Também é lá que fica a Boogie Naipe, produtora que Eliane mantém em sociedade com o marido Mano Brown, líder do Racionais MC’s. Mas não se deixe enganar: ser casada com Brown não fez com que a trajetória de Eliane se tornasse fácil.

“Eu estou com o Racionais desde sempre, mas comecei a trabalhar com eles só 24 anos depois. Olha quanto tempo eu demorei para chegar aqui”. O fato é que os quatro rappers da banda relutaram (e muito!) em deixar que ela assumisse a função que tem hoje. Eliane conta que foi a produtora de Caetano Veloso, Paula Lavigne, quem a indicou como a melhor pessoa para “arrumar a casa” da banda, em 2012. “Ela chamou os Racionais e disse ‘vocês têm muita coisa para organizar e a pessoa mais qualificada para fazer isso é a Eliane’”, relembra.

Na época, a advogada trabalhava na Assembleia Legislativa, mas resolveu encarar o novo desafio, contanto que continuasse envolvida em projetos de políticas públicas. “Aí eu disse para eles: ‘eu sempre estive ao lado de vocês, mas precisou que uma mulher branca falasse que eu tinha condições de organizar as coisas’. E eles não falaram nada, mas isso é uma coisa que eles vão ter que carregar para sempre”.

Divulgação Divulgação

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Além de contar a própria história, Eliane frisa que esse tipo de situação é vivida constantemente pelas mulheres negras. “A gente tem que ralar muito para que um negro dê credibilidade a outro negro, e os homens negros são ainda mais machistas em relação às mulheres negras. Por exemplo, em supermercados eu vejo isso sempre. Se você vê um casal com um homem negro e uma mulher branca, o homem está lá todo paciente, prestativo e tolerante. Agora, se os dois forem negros, a mulher está lá fazendo tudo e o homem está de braços cruzados mandando ela ir mais rápido”. Por conta disso, ela comenta que vem percebendo um movimento que chama de ‘desconstrução do homem negro’, em que as mulheres estão basicamente combatendo o machismo dentro de casa. “Acho bem importante, mas, sinceramente, eu não tenho mais paciência nem estômago para isso”.

Mesmo assim, ela resolveu se engajar na desconstrução de outra maneira: chamando mulheres cantoras e DJs para abrir os shows do Racionais MC’s. “Isso é contra a vontade deles, mas eu sei o quanto é difícil o trabalho dessas meninas, por isso busco dar visibilidade e ajudar. Eles ironizam e o próprio Brown faz chacotinha comigo, mas o show é meu e eu ponho quem eu quiser”.

Para Eliane, as mulheres em posição de liderança têm o dever de ajudar outras mulheres, e ela também fez questão de montar um time 100% feminino em sua produtora. “Por conta desse machismo idiota com o qual a gente tem que conviver, eu decidi que queria uma equipe de mulheres trabalhando comigo. No começo eles [a banda] rejeitaram a ideia, mas agora já estão tolerando”.

Simples assim: para quem passou a vida batalhando contra a discriminação, a sororidade faz muito mais sentido do que a recorrente rivalidade entre mulheres. “Eu cresci sem pai e vi tudo o que a minha mãe passou. É uma necessidade que nós sejamos unidas e que a gente ajude umas às outras. Eu quero justamente quebrar com essa coisa de que se a mulher consegue um poderzinho mínimo ela fica torcendo o nariz para as outras. Isso é estupidez da nossa parte”.

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Além de se comprometer com a causa feminista, Eliane também coordena o SOS Racismo, grupo ligado à Assembleia Legislativa de São Paulo que recebe denúncias de discriminação racial, além de realizar palestras a respeito do tema e fiscalizar o cumprimento da lei 10.639 (que obriga as escolas a pautarem a história e a cultura afro-brasileira em sala de aula).

Para ela, a maior aliada na luta contra o racismo é a educação. “Racismo para mim é burrice. Nós estamos vivendo os últimos resquícios da escravidão. Estamos nos qualificando e entrando no mercado de trabalho e os racistas vão ter que nos engolir. Não tem mais volta, nós somos a maioria da população brasileira e eles [os racistas] precisam nos aceitar, que dói menos. Então tem que educar essa gente”.

Para além da educação formal, Eliane acredita que a cura para todo o tipo de discriminação é a convivência entre os diferentes. “Tem que conviver todo mundo junto. O que faz a gente aprender é justamente a diferença”, acredita ela, que também sempre enfatiza o discurso pró-LGBT.

Pulso firme sempre, só que sem perder a ternura. Eliane é dessas mulheres que precisaram aprender a gritar mais alto para sobreviver, mas que se negam a reproduzir a intolerância. Recado mais do que dado, vindo de quem entende (e muito) da luta!

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