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Mulheres com deficiência revelam o que esperam de um futuro inclusivo

Mesmo com leis específicas para pessoas com deficiência, o Brasil ainda é um país com pouquíssima acessibilidade e o preconceito é diário

Por Edição: Isabella D'Ercole | Colaborou: Maria Clara Serpa
Atualizado em 7 mar 2020, 07h00 - Publicado em 7 mar 2020, 07h00
Alessandra Martins no Instituto Moreira Sales para revista CLAUDIA (AF Rodrigues/CLAUDIA)
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Mariana Torquato nunca foi apenas Mariana. Desde pequena, sempre que seu nome era citado, ele vinha acompanhado de um comentário cruel relacionado com a sua deficiência. “Via as pessoas apontando para mim; algumas perguntavam o que tinha acontecido”, conta a criadora do Vai uma Mãozinha Aí?, o maior canal sobre deficiência do YouTube no Brasil. A catarinense de 27 anos nasceu sem o antebraço esquerdo e cresceu sabendo que a sociedade não estava preparada para conviver com pessoas com deficiência (PcDs). Mariana faz parte dos mais de 25 milhões de brasileiras que possuem algum tipo de deficiência, seja física ou intelectual, segundo o Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

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Mariana Torquato não se sente bem-vinda em eventos feministas: “Alguns não são sequer acessíveis” (Caroline Martins/Reprodução)

Apesar do elevado índice, as iniciativas governamentais voltadas para essa parcela da população ainda são escassas. E mesmo as principais legislações em vigor – a Lei de Inclusão, de 2015, que assegura o exercício dos direitos das pessoas com deficiência, e a Lei de Cotas, de 1991, que exige que empresas com mais de 100 funcionários tenham vagas destinadas a essas pessoas – muitas vezes são desrespeitadas. “Há quem ache as cotas um absurdo, mas elas se mostram extremamente necessárias em um país como o nosso, que ainda não inseriu socialmente as PcDs. É o único modo de garantir que as empresas percebam que nós existimos”, afirma Carolina Ignarra, sócia-fundadora da Talento Incluir, consultoria especializada em inclusão no mercado de trabalho. Ela abriu o negócio depois de, em 2001, sofrer um acidente, que a deixou paraplégica. Na época, mesmo com um currículo excelente, Carolina só era convocada para vagas que não tinham relação com sua formação acadêmica, de educadora física. Percebeu, então, que, para as corporações, tratava-se apenas de uma tentativa de preencher as vagas obrigatórias; elas não estavam preocupadas com as pessoas. “As mulheres são vistas ainda como mais incapazes, e existe a questão da maternidade, que, para algumas companhias, é uma pedra no sapato”, revela Rosemeire Andrade, gerente de inclusão do Núcleo de Aprendizagem Profissional e Assistência Social, que capacita grupos minoritários para o retorno ao mercado de trabalho em São Paulo.

Longe das escolas

Em parte, a dificuldade de conseguir um emprego é resultado do pouco acesso ao sistema de ensino. As estatísticas entregam: 60% das PcDs brasileiras não completaram o ensino fundamental e apenas 0,5% delas está no mercado de trabalho. As barreiras incluem falta de acessibilidade física e também intelectual, já que boa parte das instituições de ensino não oferece auxílio e monitorias especializadas a pessoas com deficiência. E não é um problema exclusivo do sistema público. A estudante paulista de jornalismo Ana Clara Moniz, 21 anos, que tem atrofia muscular espinhal tipo 2, enfrentou obstáculos mesmo tendo frequentado escolas particulares durante toda a vida. “Só depois que entrei no colégio percebi, de fato, o que significava ter uma deficiência. As escolas não queriam me aceitar quando descobriam que eu era PcD”, lembra. Após uma longa busca dos pais, Ana Clara finalmente ingressou na educação infantil e, apesar da falta de experiência da instituição, nunca teve problemas. “Mas sei que sou privilegiada. Isso não é a realidade para a maioria”, completa. Na faculdade, a história é outra. Ela enfrenta certa resistência nos pedidos de mudanças do espaço. “É complicado conseguir chegar às salas em cadeira de rodas, e alguns professores não são muito compreensivos. Quando está chovendo, é difícil passar pelas rampas descobertas. Uma vez reclamei que estava tomando chuva e ouvi: ‘Pelo menos em Campinas não chove muito’”, revela.

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Após o diagnóstico de AME, os médicos acreditavam que Ana Clara Moniz não viveria mais do que dois anos. Hoje, ela cursa jornalismo (Arquivo Pessoal/Reprodução)

A carioca Nathalia Santos, 27 anos, se depara com empecilhos semelhantes. Até a universidade, dependeu dos sistemas públicos de ensino e saúde. Só aos 12 anos ela conseguiu o diagnóstico correto de sua condição, retinose pigmentar, três anos antes de ficar completamente cega. Como até então os médicos diziam que Nathalia tinha apenas astigmatismo e miopia, ela não conseguia solicitar os materiais escolares adaptados para PcD. “Mesmo assim, graças à boa vontade dos professores, aprendi a escrever. A questão sempre foi a falta de estrutura”, explica. Quando ingressou na faculdade, uma instituição privada que lhe ofereceu uma bolsa integral, descobriu que o prédio não tinha acesso algum. A escola ouviu os pedidos da aluna e corrigiu alguns dos problemas.

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Nathalia Santos ficou cega aos 15 anos e só conseguiu concluir os estudos graças à ajuda de professores solidários, já que não conseguia os materiais adaptados do governo
Rio de Janeiro, 18 de fevereiro de 2020. (AF Rodrigues/CLAUDIA)
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Busca por prazer

Nathalia soube há poucas semanas que está grávida. No início, foi um choque. “Conhecemos mães de crianças com deficiência, mas quantas mães com deficiência a gente vê? São pouquíssimas. Nós não somos vistas como pessoas desejadas”, afirma. Além de terem a sexualidade e o prazer completamente ignorados, as mulheres com deficiência estão muito mais sujeitas a sofrer todo tipo de violência sexual – o risco é três vezes maior para elas do que para as demais mulheres, de acordo com o primeiro relatório da ONU sobre PcDs, lançado em dezembro de 2018.

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Nathalia Santos no Instituto Moreira Sales (AF Rodrigues/CLAUDIA)

Fatos como esses causam impacto direto sobre a autoestima das mulheres, sem contar que a falta de informação também influencia no autocuidado. “Como elas são invisibilizadas, é extremamente importante que estimulemos o empoderamento. Uma das formas de conseguir isso é promover encontros entre elas para que possam trocar experiências e se unir”, explica Aracélia Costa, secretária executiva dos Direitos das Pessoas com Deficiência no estado de São Paulo. A secretaria vai lançar, ainda este mês, uma programação de eventos que terão início na capital, mas logo devem seguir para outras cidades.

Segundo a estudante carioca de ciências sociais Alessandra Martins, 23 anos, o machismo tem efeito potencializado para as mulheres com deficiência. “Na sociedade patriarcal em que vivemos e nas relações heteronormativas, é raro sermos aceitas e amadas porque, em geral, o papel social feminino sempre foi zelar pelo homem. Aí as pessoas pensam que terão de cuidar da gente, o que não faz sentido. A minha deficiência, por exemplo, não me causa tantas limitações. De qualquer maneira, as relações deveriam ser sobre trocas e companheirismo”, explica ela, que perdeu a perna após ser atropelada por um ônibus e precisou fazer uma vaquinha online para comprar a prótese.

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Alessandra Martins no Instituto Moreira Sales (AF Rodrigues/CLAUDIA)
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Não são só os homens que viram as costas para as mulheres com deficiência. O movimento feminista também acaba deixando de lado esse grupo. Mesmo com as inúmeras vertentes, poucas são as lutas que o envolvem. “A verdade é que esse mundo só é fácil para uma parcela pequena da sociedade: os homens cis héteros brancos e ricos. Quanto mais opressões você acumula, pior é. Eu apoio o movimento e acho extremamente importante, mas ele não me representa como mulher preta e muito menos como mulher com deficiência”, afirma Alessandra. Mariana concorda. Segundo ela, além de todo o estigma da fraqueza do gênero feminino, o corpo dessas mulheres não é bem-vindo em ambientes que discutem o feminismo. “Os eventos acontecem em lugares sem acessibilidade, intérprete de libras, audiodescrição. Parece que as pessoas têm preguiça de nos incluir”, diz.

Um futuro nem tão brilhante

Em novembro do ano passado, o Ministério da Economia criou o Projeto de Lei 6.159, que determinava que as empresas poderiam optar por não contratar pessoas com deficiência se pagassem uma multa. Isso praticamente destruía o direito ao trabalho das PcDs e desautorizava a Lei de Cotas. O PL deveria ser votado em até 45 dias no Congresso, mas, após inúmeros protestos, o presidente Jair Bolsonaro retirou a urgência e o ministro Paulo Guedes garantiu que não irá pautar mais nenhum projeto que envolva as PcDs sem ouvi-las e considerar suas demandas anteriormente. Esse é apenas um dos exemplos de projeto de lei que tira os direitos das pessoas com deficiência, LGBTs+, mulheres, negros e, ainda que não tenha ido para a frente, mostra o descaso do poder com as minorias.

Para Mariana, com o viés do atual governo, é difícil esperar muitas mudanças positivas, mas o essencial é investir na inserção no mercado de trabalho. Ela sugere uma campanha para exaltar as PcDs. “A gente não quer ficar encostada no INSS, como muita gente fala. Queremos ser produtivas e protagonistas da nossa vida”, declara. Já Ana Clara defende a “normalização” das deficiências. “As pessoas precisam começar a nos ver como cidadãos. Temos direitos, e eles precisam ser respeitados. Não são favores que nos fazem”, explica.

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“Temos direitos, e eles precisam ser respeitados. Não são favores que as pessoas nos fazem”, diz Ana Clara (Arquivo Pessoal/Reprodução)

O preconceito está em atos e questões nos quais às vezes nem paramos para pensar – alguns, institucionalizados. “Ano passado fui à Receita Federal e descobri que a deficiência é considerada uma moléstia grave. Esse tipo de nomenclatura ainda é muito comum e ofende, inferioriza. Não é algo que vai mudar de uma hora para outra porque está enraizado, mas ações de conscientização do governo poderiam dar início à mudança”, sugere Ana. Até lá, as atitudes para a transformação devem partir de todos. De nós mesmas no dia a dia, para acolher e ouvir essas mulheres, ser parceiras delas na luta por seus direitos. Das instituições públicas e privadas, ao atender às necessidades das PcDs e garantir a real inclusão. E de toda a sociedade, no combate aos preconceitos.

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