Mães venezuelanas na defesa de um futuro para seus filhos
Fugindo da escassez de alimentos e remédios, mães venezuelanas enxergam em Roraima uma alternativa de futuro para suas crianças
Desde que a crise política e econômica da Venezuela entrou em sua pior fase, 170 mil pessoas atravessaram a fronteira do país com Roraima. Fugindo da escassez de alimentos e remédios, mães venezuelanas enxergam no estado amazônico, o mais pobre do Brasil, uma alternativa de futuro para suas crianças
Aos 22 anos, grávida de quatro meses, a venezuelana Romina Yaguaran caminhou por oito horas, sob o sol forte, por uma rota clandestina para atravessar a fronteira entre a Venezuela e o Brasil.
Em dias comuns, o percurso entre as cidades fronteiriças de Santa Elena de Uairén, no lado venezuelano, e Pacaraima, em Roraima, pode ser feito em poucos minutos de carro. Entretanto, naquele dia de abril, fazia dois meses que a divisa havia sido fechada por ordem do presidente Nicolás Maduro, na tentativa de barrar a entrada de caminhonetes estrangeiras que ofereciam amparo simbólico à população. A fronteira só seria reaberta em maio.
No poder desde 2013, Maduro enfrenta uma grave crise política que mergulhou a economia venezuelana no caos, com inflação que chegou a 1 370 000% no ano passado, conforme cálculos do Fundo Monetário Internacional (FMI). Soma-se a isso o desabastecimento de bens essenciais, como alimentos, sabonetes e escovas de dente, remédios e material hospitalar.
Para ter uma ideia, a escassez fez com que o salário mínimo se desvalorizasse ao equivalente a 8 reais mensais, dinheiro insuficiente para comprar 1 quilo de carne. Empobrecida e com direitos ameaçados, a população foge para países vizinhos, como Colômbia, Peru e Brasil, em busca de sobrevivência.
Por causa dessa onda imigratória, segundo o Ministério da Justiça, foram emitidos 80 mil pedidos de refúgio no Brasil em 2018, sendo 63% só em Roraima. Três de cada quatro eram de venezuelanos.
Sem alternativa, Romina, o marido e mais dois familiares enfrentaram o atalho entre Venezuela e Roraima a pé. No percurso, sem comida e sem dinheiro, os quatro precisaram entregar as roupas que levavam em troca de autorização para passar por uma comunidade indígena.
“Vim para ter minha filha. Na Venezuela, a situação estava muito ruim, com tudo caro demais”, conta ela, que atualmente dorme em uma barraca cedida pelo Exército brasileiro, instalada em uma área improvisada nas proximidades da Rodoviária Internacional de Boa Vista. Ela é uma entre milhares de venezuelanas que tiveram seus filhos em Roraima.
O estado, que faz parte da região conhecida como Amazônia Legal, é o menos populoso do Brasil (tem 605 mil habitantes, estima o IBGE), mas desde 2016 recebeu cerca de 170 mil venezuelanos, de acordo com a Polícia Federal. Além disso, é o mais pobre do país, se considerado seu Produto Interno Bruto (PIB), e enfrenta uma escalada na violência. No ano passado, foi registrada a taxa de 67 homicídios por 100 mil habitantes, 415% a mais do que em 2011, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. É nesse contexto que nascem as crianças.
Desde janeiro de 2016, quando o fluxo imigratório se intensificou, até maio deste ano, foram realizados 3,6 mil partos de venezuelanas na única maternidade pública do estado, o Hospital Materno-Infantil Nossa Senhora de Nazareth, no centro de Boa Vista. O volume representa cerca de 10% do total de nascimentos da instituição no período.
Diretora-geral do hospital, a pediatra Adriana Casselli de Abreu avalia que a chegada de venezuelanas debilitadas impôs novos desafios às equipes da maternidade, habituadas a lidar com as necessidades de assistência materno-infantil das brasileiras. “De repente, surgiu um número exponencial de gestantes venezuelanas, a maioria com complicações. Com isso, fazemos no total cerca de mil partos por mês, muitos deles de alto risco”, afirma.
Uma das refugiadas atendidas na maternidade é Gleisbel Zuniga Rivas, 26 anos. Ela é mãe de Glenda, 10 anos, Angel David, 3, e Diego Mateo, 10 meses. Assim como aconteceu com Romina, a escassez de alimentos em seu país foi o que motivou sua mudança com o marido e os filhos, há dois anos. “Sinto que lá todos estão em situação pior do que a que encontro aqui”, diz Gleisbel.
A vida dela em Roraima, porém, está longe de ser ideal. A família mora em uma barraca no abrigo Jardim Floresta, um dos 11 instalados em Boa Vista pela Operação Acolhida, força-tarefa do governo federal e organizações não governamentais que acolhem 5,8 mil venezuelanos em situação de vulnerabilidade no estado. Recebem três refeições diárias e fraldas para Diego Mateo, mas ainda dependem de doações. O calor dentro das barracas sem energia elétrica faz com que várias famílias fiquem do lado de fora do abrigo, embaixo da sombra das árvores.
Gleisbel era frentista no país com a gasolina mais barata do mundo. Agora, desempregada, ela cuida dos filhos enquanto o marido faz serviços de capina. “Está difícil conseguir trabalho. Muitos negam serviço a ele por ser venezuelano”, relata ela sobre a situação do companheiro, também vivenciada por outras famílias que chegam do país vizinho.
Além do fator mais óbvio, o preconceito, pesam ainda a falta de acesso ao ensino de português e as barreiras para revalidar seus diplomas, o que faz com que muitos imigrantes qualificados não possam exercer funções para as quais seriam habilitados. Quase 80% dos imigrantes venezuelanos completaram ao menos o ensino médio e 30% têm curso superior, de acordo com o relatório Perfil Sociodemográfico e Laboral da Migração Venezuelana no Brasil de 2017.
“É necessário haver financiamento público para cursos de português e uma política que simplifique o reaproveitamento dos diplomas, que hoje é custosa”, sugere Gustavo da Frota Simões, coordenador do curso de relações internacionais da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e um dos autores do estudo. “Para avançar, o Brasil precisa tratar o fluxo imigratório como oportunidade, e não como emergência pontual”, afirma.
Há ainda entraves para obter o reconhecimento da situação de refugiados. Gleisbel e a família aguardam a avaliação de seu pedido, que deve demorar a sair – o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), ligado ao Ministério da Justiça, tem fila de 160 mil casos (de diferentes nacionalidades, com venezuelanos na liderança) para analisar. E esse número não deve parar de aumentar, já que, segundo a Organização dos Estados Americanos (OEA), 8 milhões de venezuelanos devem emigrar até o fim de 2020.
Dar à luz
Apesar de todas as adversidades durante a gestação, Romina e Gleisbel buscaram apoio de saúde e seguiram à risca o acompanhamento do pré-natal. De acordo com a Prefeitura de Boa Vista, foram realizados na capital 3,5 mil pré-natais de gestantes venezuelanas no primeiro semestre deste ano, o que representa um aumento de 144,4% em relação ao mesmo período no ano passado.
No entanto, segundo a diretora da maternidade de Boa Vista, Adriana de Abreu, o número de gestantes que não contam com nenhum acompanhamento pode ser muito maior. “Elas vêm, frequentemente, desnutridas e com depressão. Morando na rua, não têm como manter condições de higiene adequadas e encontram dificuldades até mesmo para suprir necessidades simples, como ir ao banheiro”, diz ela.
Ela acrescenta que as venezuelanas que chegam grávidas ao Brasil muitas vezes não tiveram acesso ao pré-natal em seu país nem usaram suplemento vitamínico capaz de prevenir malformações no feto. Todos os dias, são realizados, em média, 31 partos no hospital – sete deles de mães venezuelanas.
As cesáreas correspondem a 36%, índice próximo do preconizado pelo Ministério da Saúde (35%), em instituições de alta complexidade. Com o intuito de baixar esse número, a maternidade de Boa Vista está inserida no programa federal Rede Cegonha, que prioriza o aumento dos partos normais nos equipamentos públicos.
Apesar da apreensão por dar à luz em outro país, eventualmente por meio de uma cesariana, Kerly Siulenin Aray, 27 anos, conseguiu ter um parto normal tranquilo, com apenas um dia de internação.
“Como meus dois primeiros partos foram cirúrgicos, imaginava que seria dessa forma novamente. Mas cheguei à maternidade e, em menos de uma hora, o Thiago nasceu”, relata, aliviada, com o bebê miúdo nos braços.
Kerly chegou ao Brasil há dois anos, acompanhada dos pais e dos dois filhos, hoje com 5 e 3 anos. Ela trabalha como operadora de caixa em um mercado de Boa Vista, cidade em que mora em uma casa alugada na periferia. “Pretendo continuar em Roraima e quero que meus filhos aprendam tanto português quanto espanhol”, conta ela, que é uma das 980 beneficiárias venezuelanas do programa municipal Família Que Acolhe (de um total de 5 mil famílias atendidas).
Por meio desse projeto, foi orientada sobre cuidados na gestação, alimentação saudável e direitos das crianças. Também ganhou enxoval para o filho recém-nascido e, quando ele completar 1 ano, receberá leite e terá vaga garantida em creche. Apesar de positivo, o programa é insuficiente para dar conta da totalidade de mães venezuelanas e de outras nacionalidades.
Como o filho mais novo de Kerly, os bebês nascidos deste lado da fronteira adquirem imediatamente a nacionalidade brasileira. O mesmo não acontece em países como a Colômbia, nação que mais tem recebido imigrantes venezuelanos – estima-se que o número chegue a mais de 1 milhão.
A legislação colombiana não concede cidadania a filho de estrangeiro simplesmente por ter nascido em seu território, sendo necessário que pelo menos um dos genitores tenha visto de residência permanente.
Por causa dessa limitação, até agosto deste ano, ao menos 24 mil filhos de venezuelanos nessa situação corriam o risco de se tornar apátridas. Isso mudou após o presidente Iván Duque Márquez assinar um decreto dando a eles a cidadania.
A medida, válida pelos próximos dois anos, inclui os nascidos no país desde agosto de 2015 que se enquadram nesse caso. Essa insegurança é mais um motivo para as mulheres optarem pelo Brasil.
Por aqui, as ameaças às mães que decidem sair da Venezuela são outras. A costureira Nancy Jael Martes Franceschi, 21 anos, é mãe de Alejandra, 5 anos, Ender, 3, e Nelson, 1 ano.
Ela vive em Boa Vista há um ano. Nesse curto período, já correu o risco de perder a guarda dos filhos e recebeu oferta em dinheiro para vender Ender. Agora, dorme com as crianças em papelões espalhados numa calçada a poucos metros de três abrigos da Operação Acolhida. “Não quero que meus filhos sejam discriminados por morarmos na rua. Tentamos ter uma vida normal, só não temos um lugar”, afirma Nancy.
Todos os dias, ela deixa a filha mais velha na escola municipal. Alejandra é uma das 4,8 mil crianças venezuelanas matriculadas na rede municipal de ensino, o correspondente a 11% dos alunos na cidade.
“No nosso país, os filhos das minhas amigas não estão na escola. Estou aguentando essa situação tão difícil porque meus filhos têm que seguir adiante. Prefiro que estudem e tenham uma boa profissão para que valha a pena o sacrifício que estou fazendo”, diz Nancy, que aguarda vagas para ser transferida para outro estado, o que já ocorreu com cerca de 20 mil pessoas. Ela tem uma avó que foi para o Rio de Grande do Sul. Por isso, espera uma oportunidade para reunir a família novamente.
Apoio nacional
O nome de Telma Lage está gravado na história de muitos venezuelanos que cruzam a fronteira. Ela é missionária católica e coordena o Centro de Migrações e Direitos Humanos (CMDH), da Diocese de Roraima, que oferece apoio aos imigrantes com a regularização da documentação, a doação de cestas básicas, roupas e produtos de higiene ou mesmo com um abraço ou uma palavra amiga.
Telma é mineira e mora em Roraima desde 2013. Ela acompanhou a onda imigratória desde o início, quando as primeiras indígenas venezuelanas da etnia warao apareceram pedindo esmolas nos semáforos da capital.
A imagem das recém-chegadas em situação de extrema pobreza, com vestidos coloridos e os filhos no colo, impactou a comunidade local. Segundo Telma, havia quem dissesse que os bebês deveriam ser separados das mães, alegando que elas não tinham condições de criá-los.
“Principalmente no começo, não havia um comportamento de empatia, de humanidade, pessoas que considerassem as características próprias dos imigrantes”, lembra. Com o aumento do fluxo imigratório, os problemas estruturais ficaram cada vez mais evidentes. Atualmente, o CMDH atende diretamente 10 mil famílias por ano, contando com doações e apoio de brasileiros.
O contato de Telma com as mulheres venezuelanas mudou sua ideia inicial de que as imigrantes vêm dar à luz no Brasil como forma de facilitar a regularização migratória. “Elas chegam para defender a vida, delas mesmas e dos filhos”, diz. A missionária acredita que essas crianças, filhos de venezuelanos e nascidos no Brasil, são capazes de contribuir para a construção da nossa identidade nacional.