“Larguei tudo e viajei para cuidar da minha família infectada”, diz médica
Em São Paulo para fazer residência, Cláudia Andrade viajou para Maceió assim que soube que os pais e o irmão estavam com Covid-19
“Estou no último ano de residência de ginecologia e obstetrícia no Hospital Santa Marcelina, em São Paulo. A instituição é referência para Covid-19 na Zona Leste da cidade, portanto, há pouco mais de dois meses começou a cancelar cirurgias eletivas. Os partos e atendimentos a gestantes continuaram, claro, mas em carga menor. Fui designada a ajudar no atendimento de pacientes com suspeita e confirmação de infecção pelo novo coronavírus. Como médica, meu papel é ajudar, então mesmo com medo de não lembrar de todos os detalhes clínicos, fui ver os pacientes e também apoiar meus colegas, que estavam sobrecarregados. Uma das primeiras pessoas que atendi foi um idoso isolado que não estava entendendo o motivo da família não estar visitando. Expliquei a situação e ele chorou. Eu fiquei muito comovida. Pedi para a filha dele escrever uma carta e li para ele, tentei mostrar que a família esperava lá fora sua recuperação. É uma circunstância muito difícil: estar doente e sozinho.
Estava há um mês nessa rotina quando soube que meu pai, que mora em Maceió com minha mãe e meu irmão, estava com sintomas iniciais da Covid-19. Ele tinha tosse e febre. Ele havia tido contato com a irmã dele, que já testou positivo para o vírus. Pedi para ele ficar isolado e observar outros sintomas que pudessem aparecer. Meu pai é obeso e cardiopata, então está no grupo de risco. Alguns dias depois, minha mãe e meu irmão apresentaram os sintomas. Um não podia mais cuidar do outro e meu pai começou a sentir cansaço extremo e falta de ar. Não pensei duas vezes. Comprei uma passagem para casa. Dei sorte de conseguir lugar no único voo que está acontecendo por dia pela companhia.
Muita gente não tem espaço para ficar separado. E é o ideal para não espalhar a doença dentro de casa
Eu me arrisco todos os dias por pessoas que não conheço, por que não me arriscaria pelas pessoas que amo? A decisão foi fácil, mas um pouco irracional. Eu sabia do risco de me infectar no trajeto. Levei todos os meus equipamentos de proteção individual: macacão, máscaras, face shield, óculos. Foi muito importante eu ter ido e entendi isso assim que cheguei. Nunca tinha visto minha mãe com tanto medo. Ela achava que morreria da doença.
Quem me buscou no aeroporto foi meu noivo, mas não nos beijamos e nem nos abraçamos. Eu sentei no banco de trás do carro e usando máscara. Ele já tinha passado no mercado e feito compras para a minha família. Aliás, só nos vimos dessa vez e outro dia que ele deixou mais compras na garagem, mas não encostei nem na mão dele.
Minha casa tem dois andares. Meus pais e irmão ficaram isolados em um deles, cada um num cômodo. Eu fiquei no andar de baixo. Sei que isso é um grande privilégio. Muita gente não tem espaço para ficar separado. E é o ideal para não espalhar a doença dentro de casa. Eu tomava seis banhos por dia, limpava tudo que encostava na casa, só subia uma vez por dia para examiná-los e ia toda paramentada. E tomava ainda mais cuidado na desparamentação, que é quando há maior risco de infecção. Era rígida nesses processos. Por toda essa atenção, não tive medo de pegar.
Meu pai estava com uma saturação abaixo do ideal, mas não era de risco. Pedi para ele ir ao hospital, onde ele fez uma tomografia que mostrava que 30% do pulmão estava acometido. Conversei com o médico e fui acompanhando por telefone as recomendações. Não havia indicação de internação, então meu pai voltou para casa. Mais uma vez tive certeza que tomei a decisão correta, porque poderia cuidar dele de perto.
Eu me arrisco todos os dias por pessoas que não conheço, por que não me arriscaria pelas pessoas que amo?
Eu preparava todas as refeições e deixava para eles na escada. Os vizinhos também mandavam comida. Foi uma surpresa muito boa essa, de sentir que tem mais gente cuidando. Fiquei lá oito dias. Quando retornei, eles ainda apresentavam sintomas, mas já tinham passado os dias críticos, que é do 5º ao 10º, quando tem mais risco de complicação. Voltei porque eles estavam bem, mas, se precisasse, tinha aberto mão da residência pela minha família. Deu muita angústia e ansiedade ver todos doentes, apesar de tentar não passar isso pra eles. A gente fazia ligação por vídeo e rezava todos juntos. O amor e a fé eram muito grandes. Mas eu me sentia sozinha também, é estranho não poder abraçar mesmo estando na mesma casa.
Agora estão todos bem. E não tem previsão de quando vamos nos ver de novo. Não vou enfrentar outra vez o risco do avião. Se eu já tinha laços fortes com minha família, só nos aproximamos ainda mais. Hoje, faria tudo de novo. Era o meu papel. E foi muito bom ter a oportunidade de vê-los se recuperar. Em São Paulo tenho me sentido sozinha, porque atendo casos graves no hospital e volto para casa sem ninguém.
Eu espero que essa pandemia venha pra gente ter mais humanidade, mais amor. E isso começa com o isolamento. Ficar em casa protege não só a sua família, mas a dos outros e é preciso pensar em todos agora.”
*Cláudia Andrade, 27 anos, é médica. Mora em São Paulo, mas é de Maceió, onde mora a família