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Laerte: “Não acho que exista essencialmente o homem e a mulher”

A cartunista é tema de um documentário que já está disponível na Netflix em 190 países. Desafiadora, ela provoca: “O que, afinal, faz alguém ser mulher?”

Por Sandra Soares
Atualizado em 31 Maio 2017, 17h06 - Publicado em 31 Maio 2017, 17h06
Laerte testa positivo para Covid-19
 (Filipe Redondo/CLAUDIA)
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Há oito anos, Laerte Coutinho tem demorado mais para se arrumar. Ela chega à entrevista incomodada por não ter feito as unhas, diz que não sai sem pintar as sobrancelhas e investe muito tempo na escolha do vestido. Tudo isso faz com que, desde que começou o processo para tornar–se mulher, a cartunista, hoje com 65 anos, se atrase nos compromissos. No caminho, ainda há sempre alguém pedindo uma selfie com ela. Solicitações essas que deverão aumentar a partir do dia 19, quando Laerte-se estreia em 190 países pela Netflix.

Dirigido por Lygia Barbosa da Silva e Eliane Brum, o documentário brasileiro revela a casa dela, em São Paulo, que está em obras, a intimidade (Laerte aparece tomando banho),a convivência com suas gatas, Celina e Muriel. Acompanha um momento importante em família: o casamento da filha. Laila segue feliz, de braços dados com o pai até o altar. A produção ainda investiga a quadrinista ao mergulhar nas charges que assina e no baú de filmes domésticos dos Coutinho. Nas gravações feitas na infância, o menino Laerte parece ser o herdeiro da mãe, dona Lila, 90 anos: na aparência (são idênticos!) e no invejável bom humor.

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Se há um pecado, ele se refere à falta de resposta à pergunta que causa tanta curiosidade: por que Laerte virou mulher? A ausência se deve ao desinteresse da personagem pela indagação. Homens e mulheres não são iguais, em termos biológicos, e suas diferenças psíquicas ou “de alma”, segundo ela, beiram a invenção. Não se trata de algo natural, é uma construção social. A gênese de sua “transgeneridade” (termo que adota para descrever a própria experiência) importa menos que o mundo que devemos, coletivamente, fazer daqui para a frente. Ela conversou com CLAUDIA:

CLAUDIA: A equipe do filme demorou um ano para convencer você a mostrar sua casa. Por que a relutância?

Laerte: Tenho a impressão de que minha casa nunca está pronta. É uma eterna improvisação. Ela me representa. Também sou um eterno improviso (risos).

CLAUDIA: Como foi a experiência de fazer o filme?

Laerte: Um pouco constrangedora. Mas tem outra parte de mim que se acha digna de atenção e quer falar, apesar de o meu discurso não ser muito claro, nem sempre muito coerente. Mudo de ideia e tenho ideias que brigam entre si.

CLAUDIA: O que motiva a parte de você que quer se expressar?

Laerte: Quando eu era adolescente, não conhecia homossexuais, travestis e transgêneros que pudessem inspirar qualquer tipo de empoderamento em crianças e jovens. Havia uma ausência quase total de modelos positivos. Aos 17 anos, senti terror em perceber em mim um componente homossexual. Pensava: “Que raios de vida me espera?” Uma bicha era altamente estigmatizada e ridicularizada. Então, escondi a minha homossexualidade, não a assumia nem para mim mesmo. Hoje existem bons modelos. Eu sou um deles.

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CLAUDIA: No filme, você levanta a hipótese de que precisou se tornar mulher para dar conta de se relacionar com homens.

Laerte: Essa é a hipótese de alguns amigos e me parece razoável. Mas não faço uma profunda investigação. Sei como vivo atualmente e é isso que importa. Não sinto necessidade de fazer uma autópsia no cadáver (risos). Em um momento na vida, no fim do meu terceiro casamento com mulheres, percebi que meu desejo homossexual era inegável.

CLAUDIA: Foi mais difícil para seus dois filhos ou para seus pais aceitarem a sua transformação?

Laerte: Não foi difícil para ninguém. Nem fácil. A gente foi aceitando. A cada aceitação, novos desafios e portas se abrem. Vivo isso no meu processo e imagino que seja assim também para meus pais, filhos, irmãos e amigos. Há conflitos que nunca se resolvem. Eles apenas se modificam.

CLAUDIA: Por que você é o vovô e não a vovó?

Laerte: Meu neto tem duas avós. Rafael, meu filho, achou importante que ele tivesse um avô. Para mim está tudo certo.

CLAUDIA: A primeira reação da sua mãe, ao ouvir que você gostava de se vestir de mulher, foi oferecer algumas saias dela. Chegou a usá-las?

Sim! Mas dei uma encurtada em tudo. Usei muito um vestido preto. Minha mãe tem uma inteligência e um humor maravilhosos. Ela é bióloga, conserva a visão do masculino e do feminino amparada na natureza, mas lidou bem com o fato de ter tido um filho por quase 60 anos e hoje ter uma filha, ou algo parecido (risos).

CLAUDIA: A morte do seu filho Diogo (em 2004, vítima de um acidente de carro) influenciou no processo de mudança de gênero?

Laerte: Diogo morreu e tudo ficou em suspenso. Eu já vinha vivendo a descoberta, mas a partida dele fez tudo se congelar. Senti na pele o quanto a vida é frágil e isso me ajudou a não negociar mais. Seria ridículo passar toda a minha existência fingindo ser uma coisa que não sou.

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CLAUDIA: Você costuma dizer: “Eu me sinto mulher”. O que isso significa, exatamente?

Laerte: Que eu me sinto mulher, ora! Quer dizer que eu sou mulher? Não. Mas a posição, o papel, o lugar de uma mulher na sociedade podem, perfeitamente, ser ocupados por mim.

CLAUDIA: Em que momento começou a se sentir mulher?

Laerte: Fiz a mesma pergunta para a minha mãe, e ela respondeu: “Quando pari”. E parir tem significado diferente para cada uma. Isso eu nunca vou experimentar. Eu me vi mulher quando depilei o corpo todo. A sensação de leveza, de me despir de uma roupa de pelos, foi indizível. Eu era o mesmo, porém, modificado na minha autovisão.

CLAUDIA: As relações afetivas ficaram mais fáceis depois de se assumir?

Laerte: Não. Nunca mais acordei acompanhada. Sexo não é tão importante. E como eu falei: há conflitos que não se resolvem. Tem também essa coisa de querer aparecer sempre bem arrumada. A gente não acorda arrumada, né (risos)?

CLAUDIA: Estamos avançando em direção a uma sociedade menos preconceituosa?

Laerte: Caminhamos para uma abertura, mas é difícil ver o placar. A gente faz gols e toma. Na minha adolescência, não vi episódios como o linchamento da travesti Dandara, que aconteceu recentemente em Fortaleza. Movimentos de abertura geram contramovimentos violentos. A eleição do Trump nos Estados Unidos está ligada à eleição de Obama. Trump passou oito anos defendendo a ideia de que Obama não é americano. Fez isso porque o outro é negro, e ele racista.

CLAUDIA: Seu discurso tem um forte viés político. Toda mulher transgênero é feminista?

Laerte: Eu sou. A luta das transgêneros é diferente da luta das mulheres, mas é muito clara. Com os negros também é assim. Esses movimentos representam pessoas diversas, mas têm identidades próprias. Mais à parte está o homem branco heterossexual. Ele não tem problemas e acha que uma das boas vantagens de ser homem é essa. Alguém diz: “Precisamos debater”. Ele retruca: “Debater o quê? Estou aqui fazendo o meu trabalho, não crio problemas. As mulheres, as bichas, os negros é que inventam dificuldades”. Para mim, não ter identidade e achar que não enfrenta dificuldades é um problemão.

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CLAUDIA: O que define uma mulher?

Laerte: A um médico, digo: “Sou homem”. Porque tenho pênis, próstata e gônadas, que os homens têm. Se a pergunta for feita moral e eticamente, a conversa é outra: cada religião, filosofia ou cultura tem sua visão. Mas se a questão vier do Estado, ela não tem cabimento. Por que o meu RG precisa indicar o meu sexo? A realidade não é uma coisa só, ela depende de um ponto de vista. Não acho que exista essencialmente o homem e a mulher.

CLAUDIA: Como assim?

Laerte: Criou-se uma hierarquia de gênero em função das relações de poder. No uso dos banheiros, por exemplo. Sempre aparece uma “autoridade” para dizer: “Você não pode entrar neste espaço”. O que há por trás disso? O conservadorismo querendo dizer que a separação existe para a segurança das mulheres. Será? Burca, banheiros distintos e vagão cor-de-rosa no metrô são a mesma coisa. Quer mostrar que todos os homens são brutos e as mulheres precisam de proteção. Não deveríamos, então, educar os homens-animais em vez de confinar as mulheres?

CLAUDIA: O documentário acompanha seu dilema de implantar silicone nos seios. Resolveu a questão?

Laerte: Ainda não. Brinco que só vou encarar um peito quando achar uma versão digna de uma senhora de 60 anos. O problema de colocar um peitinho de 20 anos é que você começa a querer uma cinturinha de 20, um pescoço de 20, uma barriguinha… O processo é interminável. Aceito muito bem o meu corpo, sou grata a ele, não sinto necessidade de me submeter à cirurgia. É um bom corpo, nunca me deixou na mão.

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