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Cultura do estupro: se você não entende, não diga que não existe

Falamos com especialistas para sanar as sobre impunidade, culpa e o que faz com que uma mulher seja estuprada a cada 11 minutos no Brasil.

Por Júlia Warken
Atualizado em 12 abr 2024, 11h26 - Publicado em 6 jun 2016, 16h16
iStock/Thinkstock (/)
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Infelizmente estupro é um assunto que não sai da pauta do dia aqui no MdeMulher. E cada vez em que usamos o termo cultura do estupro em alguma matéria, recebemos comentários assim:

– Mas como assim? Estupro é crime e não cultura!

– Opa, espera aí, eu nunca ouvi ninguém dizer que tolera estupro! Esse é um crime horrível e severamente punido. Todo mundo sabe que dentro dos presídios os estupradores são, inclusive, punidos por outros detentos.

– Quem inventou isso de que a vítima sempre acaba sendo culpabilizada? Isso não existe. 

– Parem de falar sobre essa tal “cultura do estupro”, isso só serve para tirar a culpa do criminiso e tentar transferí-la para a sociedade. 

O termo cultura do estupro não é novidade dentro das ciências sociais e do feminismo, mas o debate ainda está cercado de dúvidas entre a maioria das pessoas. Estupro é um assunto muito delicado e por isso falamos dele menos do que deveríamos, seja dentro de casa, na grande mídia ou nas escolas. Sexo ainda é tabu. Violência envolvendo sexo é duplamente tabu.

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Mario Tama/Getty Images Mario Tama/Getty Images

Não é agradável debater o tema, mas é ainda mais desagradável se deparar com a estimativa de que a cada 11 minutos uma mulher é estuprada no Brasil. A gente precisa falar sobre isso, pois para que uma realidade mude ela antes precisa ser compreendida. Primeiramente precisamos entender, de uma vez por todas, que o estupro não acontece só na favela, ele também se faz presente no trote universitário, nas baladas de classe média e dentro de casa. Um a cada 11 minutos! É urgente compreender por que a violência sexual ganhou traços pandêmicos no Brasil, e é isso que a gente pretende mostrar aqui.

Começando do começo: é cultural, sim.

Podemos afirmar isso por uma razão muito simples: a palavra “cultura” não está apenas relacionada a artes, folclore e coisas bonitas. Ela também é usada para falar sobre comportamento coletivo. “’Cultura’ é uma palavra que tem muitas definições e uma delas se refere à maneira como as pessoas vivem em sociedade, isso quer dizer que a cultura tem a ver com nossas práticas socais, com nossa socialização, com a maneira como a gente entende o mundo e vive estabelecendo uma relação social com o outro. Nossa maneira de ser, de pensar e de agir não está solta no mundo, mas faz parte de uma cultura“, explica Izabel Solyszko, assistente social, professora e doutora em Serviço Social pela UFRJ. 

Twitter/Whindersson Twitter/Whindersson

Precisamos compreender: estupro é crime, mas estupradores não são necessariamente pessoas doentes. São cidadãos que carregam dentro de si noções culturais sobre o papel de homens e mulheres na sociedade. Em algum momento você já ouviu alguém dizer que um moço sem camisa ~não está se dando ao respeito~? Pare um segundo para pensar se há a forma masculina da palavra “piriguete”. Agora puxe da memória o significado e o emprego da palavra “desfrutável”.

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“Pois bem: esse olhar de lince do Casanova do rio São Francisco vasculhara de entrada o íntimo de Dona Flor, varando-lhe o pensamento, apossando-se de seus segredos, após tê-la despido de roupas e adornos. Tão deslavado olhar não tinha outro sentido: seu Aluísio a desnudava por fora e por dentro e, em conclusão, achando-a a seu gosto, achava-a também desfrutável e até fácil.” (trecho extraído de “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, de Jorge Amado)

Mulheres são desfrutáveis, homens desfrutam. Esse conceito é cultural e está intimamente ligado aos números alarmantes de estupro no Brasil e em diversas outras partes do mundo. Também está 100% ligado à visão de que uma garota com saia curta “estava pedindo” e que aquela outra “teve o que mereceu, pois sempre se comporta de maneira provocante”.

Twitter/lesbicapeta Twitter/lesbicapeta

Para compreender o estupro como algo cultural, também é imprescindível livrar-se do estereótipo de que estuprador é aquele homem feio escondido num canto escuro pronto para dar o bote. Estuprador também é aquele cara que transa com a garota desacordada, que toma o silêncio de uma mulher bêbada como “sim”.

Em se tratando de sexo, quem cala NÃO consente, só que, segundo o imaginário coletivo, uma mulher bêbada/drogada não se cuidou direito. Ela facilitou. Ela bebeu até cair porque quis e sabia muito bem do risco que corria. Vale lembrar que uma pesquisa realizada com universitários brasileiros no fim de 2015 revelou que 27% dos homens entrevistados acreditam que não é violência abusar de uma mulher caso ela esteja alcoolizada.

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“Se entendo que homens não nascem violentos, mas que são ensinados a serem violentos; se entendo que homens não são animais loucos por sexo, mas são estimulados desde crianças a não reprimirem a sua sexualidade; se entendo que numa sociedade patriarcal como a que vivemos homens são mais valorizados do que as mulheres; e que tudo que é masculino é visto como um direito universal e tudo que é feminino é desvalorizado, entendo que a violência contra a mulher é fenômeno social“, conclui Izabel.

Ser cultural não significa que não seja crime.

Facebook/MdeMulher Facebook/MdeMulher

Gente, deixemos uma coisa bem clara: alertar para o fato de que o estupro está atrelado à cultura não significa diluir a culpa dos estupradores e definitivamente não é uma tentativa de fazer com que os criminosos saiam impunes. Muito pelo contrário! O que está acontecendo é um movimento coletivo a fim de que todo mundo acorde para uma triste realidade: estupro é algo beeem mais comum do que se pensa.

Violência sexual não é algo cometido por meia-dúzia de psicopatas, não é coisa de gente doente. Estupro está em todo o lugar e é um dos crimes menos denunciados do mundo. Tratar isso como problema sócio-cultural é tentar mudar um quadro de silenciamento massivo, em que só 10% das ocorrências são levadas à justiça, segundo dados nacionais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

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“A violência contra a mulher carrega esse elemento sexista, esse elemento cultural. Para que a gente enfrente essa violência, temos que repudiar e desconstruir tal cultura. É claro que isso em nenhum momento pode comprometer ou atenuar a responsabilidade daqueles que cometem esses gravíssimos crimes. O Estado tem o dever de investigar, processar, punir e reparar”, diz Flávia Piovesan, secretária de direitos humanos do Ministério da Justiça e Cidadania.

A culpabilização da vítima é uma realidade!

Rio de Janeiro, 3 de maio de 2013. Após sequestrar um ônibus na Avenida Brasil, um homem rende os passageiros, manda que eles se recolham ao fundo do veículo e, no vão do espaço destinado a deficientes, estupra uma mulher escolhida ao acaso. A mulher é golpeada a coronhadas e todos assistem à cena, que também é filmada pelas câmeras de segurança.

Nessa história os traços estavam muito bem demarcados. Havia um sequestrador armado, haviam testemunhas, haviam câmeras. E é por isso que ninguém ousou perguntar àquela mulher qual era o tamanho da saia que ela usava, ninguém questionou absolutamente nada e o Brasil inteiro sabia exatamente a quem julgar.

Acontece que casos como esse são exceção à regra. Estupro é geralmente um crime que acontece entre quatro paredes. Muitas vezes envolve álcool e outros entorpecentes. Muitas vezes envolve ameaças e a violência física nem transparece no corpo da mulher estuprada. Muitas vezes envolve um marido a violentar sua própria esposa. E quando envolve um flerte prévio por parte da mulher, aí sim é que a culpa logicamente cai sobre a vítima. Flertou? Aceitou um copo de cerveja? Beijou na boca? Permitiu mão na bunda? Aceitou carona? Então sabia exatamente no que estava se metendo!

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“A sociedade é intolerante ao estupro só até a página dois. É intolerante quando a vítima é uma mãe de família, é uma mulher trabalhadora, é uma mulher que tem um comportamento social esperado dentro dos padrões de ‘bela, recatada e do lar’. Mas quando a mulher foge disso que é esperado, aí as pessoas passam a buscar, no comportamento da própria vítima, justificativas para esse estupro“, diz Silvia Chakian, promotora de justiça do Ministério Público e especialista em violência doméstica.

E para além da sociedade, a própria Justiça acaba por culpabilizar essas vítimas. Lembra do delegado que perguntou à adolescente carioca se ela costumava fazer sexo grupal na tentativa de justificar a violência sofrida? Ele é só mais um dos milhares de profissionais de justiça que agem dessa forma. Pasmem, inclusive em casos de pedofilia!

“A prova trazida aos autos demonstra, fartamente, que as vítimas, à época dos fatos, lamentavelmente, já estavam longe de serem inocentes, ingênuas, inconscientes e desinformadas a respeito do sexo. Embora imoral e reprovável a conduta praticada pelo réu, não restaram configurados os tipos penais pelos quais foi denunciado”, diz a sentença de um caso julgado em São Paulo quatro anos atrás. Na ocasião, um homem estava sendo denunciado por estruprar três meninas de 12 anos. Ele foi absolvido, pois relatos davam conta de que as vítimas costumavam se prostituir. 

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Vale lembrar que, no Brasil, a lei prevê como crime qualquer ato sexual praticado entre um adulto e uma criança menor de 14 anos. Mas nem isso serviu para impedir que as vítimas fossem culpabilizadas e o estuprador absolvido. Aí não é muito difícil imaginar qual o tratamento dado às prostitutas que são estupradas diariamente, ou às usuárias de drogas, ou às atrizes pornô, ou às garotas que frequentam baile funk, ou…

E a culpabilização gera silenciamento.

Dados do Ipea estimam que 575 mil estupros acontecem por ano no Brasil. Deste total, apenas cerca de 47 mil são denunciados, o que representa 10% dos casos.

O estupro é um dos crimes mais subnofiticados que existem e não é muito difícil compreender a razão. “Quando a gente analisa tudo o que aconteceu com a adolescente do Rio de Janeiro, todo o julgamento moral, o massacre, a devassidão que foi feita na vida dessa menina, a gente entende parte do porquê as mulheres hesitam tanto em denunciar esse tipo de violência”, aponta Silvia Chakian.

Reprodução/Mad Men Reprodução/Mad Men

A dificuldade em conseguir provas também é um agravante, e Silvia ainda chama a atenção para outro fator que pesa muito: “Quando a mulher de alguma forma acredita que ela tenha contribuido para essa violência e pensa ‘não, mas eu realmente fui naquela festa, eu realmente flertei com aquele sujeito, eu realmente bebi demais’, aí mesmo que ela não rompe com o silêncio. Ela sente como se tivesse merecido aquilo”. 

E qual é o resultado disso tudo? Impunidade.

Culpabilização + silenciamento = impunidade! A equação é muito simples, e é ela que explica a razão pela qual os estupradores da adolescente carioca não hesitaram em divulgar fotos e vídeos do crime na web. Também foi isso que fez com que Raí de Souza, um dos principais acusados, depois de deixar a delegacia sorrindo, simplesmente tenha decidido guardar na casa de um amigo o celular que o incriminaria.

Reprodução/Rede Globo Reprodução/Rede Globo

A certeza da impunidade também esteve ao lado do ex-BBB Laércio, que revelou em rede nacional seu tesão por adolescentes. Esperto, ele declarou que apenas se relacionava com uma moça de 17 e outra de 19 anos, o que não configura crime. Só que o cara não contava com o fato de que se tornaria alvo de investigações e que a verdade viria à tona: ele também mantinha relações com garotas menores de 14 anos e as embriagava.

Raí e Laércio apostaram altíssimo e se deram mal, mas não se engane: eles são exceção à regra. Como já dito, a própria Justiça age de forma arbitrária na maioria dos casos de estupro e é aí que a bola de neve se forma. As denúncias já são escassas e, quando acontecem, ainda encontram muita burocracia, perícia mal feita e investigação negligente. Isso resulta em menos denúncias ainda… e mais impunidade.

A juiza Teresa Cristina dos Santos, especialista em violência doméstica, é categórica em dizer que a perícia policial costuma ser muito mais rigorosa em casos de crime contra o patrimônio do que nos de violência contra a mulher. Ela afirma que geralmente o laudo só da conta de analisar a integridade física da vítima e a perícia nem mesmo é enviada ao local do crime.

djedzura/Thinkstock djedzura/Thinkstock

“Se o estupro acontece em casa normalmente há vestígios, como sangue, casa desarrumada, pelos, etc. Mas há um descaso muito grande, mais uma vez porque a cultura do estupro culpabiliza a vítima e a gente precisa quebrar esse ciclo. É preciso que as provas sejam colhidas e que a investigação seja conduzida de outra forma”.

Teresa também defende a criação de um protocolo de atendimento específico para casos de violência sexual, por conta da natureza emocional desse tipo de crime. “Costumo dizer que quem passa por um roubo ou furto chega na delegacia furioso, com sangue nos olhos. Com as vítimas de estupro é diferente, elas chegam com lágrimas nos olhos”, completa a promotora Silvia Chakian. 

Tá na hora de quebrar o ciclo! Para um Brasil com menos estupro, é preciso menos culpabilização, menos silenciamento e menos impunidade. É preciso que mais meninos aprendam a não estuprar, para que menos meninas ouçam que deviam ter se dado ao respeito. O respeito é nosso por direito e a culpa NUNCA é da vítima. De burca ou pelada, nenhuma de nós merece ser estuprada!

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