Com 70 reais, elas contam como refizeram a vida com uma receita de família
União, perseverança e uma leva de empanadas foi a receita para que as empreendedoras Karem e Katia conseguissem reerguer sua vida financeira
Descendente de argentinos e espanhóis, Karem Lis cresceu vendo sua mãe preparar um típico prato da costa sul-americana: a empanada. Na mesa do café da manhã, os salgados eram motivo de união e misturavam sabores e valores que a mãe deixava na massa e no coração de quem se sentava para o café. O cheirinho que saía do forno da cozinha era mais do que uma receita de família, tinha como ingrediente especial o amor materno.
Esta lembrança tão querida foi o que ajudou Karem num momento de grande aflição. Com a crise econômica de 2015, ela viu as contas de seu lar, com a companheira Katia Fanticelli, se acumularem. Atrizes, elas se conheceram há 20 anos, quando se formaram no Instituto de Arte e Ciência Indac, em São Paulo. Uniram-se na vida social e também na profissional, o que lhes rendeu a criação de uma produtora. No entanto, com a crise, os projetos não saíam do papel e elas precisaram encerrar o negócio.
O melhor Natal de nossas vidas
No Natal de 2015, Katia realizou um trabalho freelancer como fotógrafa, e com o dinheiro que conseguiu arrecadar pagou algumas contas e despesas básicas, sobrando apenas 70 reais na conta bancária. A ceia foi simples, com um macarrão ao molho branco e peito de frango na mesa. Elas contam que aquele foi o melhor Natal da vida delas. Mas a preocupação com um possível despejo da casa, que estava com o aluguel atrasado, fez com que o clima festivo dividisse o lugar com a apreensão do momento.
Dois dias depois, enquanto tomava banho, um pensamento passou pela cabeça da empreendedora: a lembrança feliz das empanadas da sogra e do café da manhã partilhado com a família de Karem. Por que não tentar vender os salgados na rua? E foi com essa recordação e com muita perseverança que as coisas começaram a mudar na vida delas.
Da cozinha de casa para as ruas de São Paulo
Com o pouco dinheiro que tinham, as duas foram ao supermercado e compraram os ingredientes necessários para duas receitas. Elas saíram com 60 empanadas em duas caixas de isopor e foram vender na porta do metrô, no bairro da Liberdade. Em meia hora, não restou uma migalha sequer. Karem conta que estava tão tensa, que não conseguiu fazer uma fornada de empanadas bonita como gostaria. Daquele dia em diante, elas perceberam que estavam construindo um sonho juntas, e uma luz surgiu em meio aos dias difíceis que enfrentaram.
Assim era todo fim de semana das duas: aos sábados vendiam na feira da Liberdade e, aos domingos, carregavam os isopores no ombro e corriam a praça da República. Foi um ano e meio de muita luta vendendo também de porta em porta e em eventos. A receita do sucesso era misturar o sabor único conseguido por Karem com o toque do empreendedorismo de Katia. Como todo projeto que visa crescer, elas precisavam levar o negócio para o conhecimento de mais pessoas, e o melhor caminho encontrado foi na internet.
Conectando sonhos
No Facebook, elas conheceram a Rededots, que também surgiu em meio a uma crise enfrentada em 2015 pela sua fundadora, Kuki Bailly, quando foi demitida, se juntando aos 2,8 milhões de brasileiros que deixaram o mercado de trabalho naquele ano. Com uma postagem no Facebook sobre sua demissão, a designer resolveu que não se deixaria levar pela negatividade daquele momento e abraçou algo que sempre esteve dentro dela: a vontade de ajudar outras pessoas a se conectarem.
A postagem de Kuki com cerca de 140 pessoas levou à criação de um grupo na mesma rede social, que conectou 70 mil pessoas em menos de um ano de fundação. Duas delas eram Karem e Katia, que descobriram que o pequeno negócio de empanadas poderia se tornar em algo maior com a ajuda de outras pessoas. Katia relembra do apoio que recebeu ao contar sua história no grupo e como isso foi importante até mesmo para trabalhar a sua timidez.
“Eu tinha receio de contar o que passei para pessoas desconhecidas. Um dia eu tomei coragem, sentei em frente ao computador e falei abertamente sobre o início desse sonho com o amor da minha vida.”
Tocadas pela generosidade da rede e sabendo que a plataforma buscava recursos para criar um e-commerce, as duas criaram uma campanha onde destinavam parte do valor de venda das empanadas para a Rededots. A parceria chegou até a irmã da Kuki, a estilista Kiki Bedouret, que desenhou os primeiros aventais para as sócias. A entrada na rede fez toda a diferença para elas enxergarem o próprio negócio com uma visão de futuro, se aproximando do seu púbico. Essa união de mulheres foi fundamental para entender que o mercado é feito por conexões, ligando pessoas aos seus sonhos. E os sonhos delas continuavam a crescer, além do mundo virtual.
Mudança para Ilhabela
O reconhecimento nas ruas e na internet fez com que elas percebessem que o projeto precisava ganhar um espaço físico. Sem dinheiro para investir, Karem viu um anúncio de um comércio em Ilhabela. A conexão com o ambiente foi instantânea. “De um dia para o outro, surgiu uma verba inesperada. A gente vendeu praticamente todos os móveis e pertences e ficamos uma semana dormindo no chão, porque a cama foi a primeira coisa vendida”, lembra Katia. Na ilha, as duas abriram o espaço comercial, e também o seu lar: a Casa de Lis.
Da primeira fornada com 60 empanadas até a criação de uma loja em Ilhabela, já foram mais de 30 mil unidades do tradicional salgado argentino vendidas. Hoje são 22 sabores, entre doces e salgados, e uma demanda cada vez maior, o que deve exigir a contratação de uma auxiliar de cozinha e uma atendente muito em breve, já que as duas tocam o negócio sozinhas.
O que tem para o jantar, moças?
O sonho que começou com momentos difíceis, passou de porta em porta e boca a boca, hoje se mostra cada vez maior, mas sem perder as origens e sabores que fazem dessa união de mulheres a receita certa para se empoderar e recomeçar por novos caminhos. Os elogios surgem até mesmo de quem conhece bem o sabor desse prato. “Quando os argentinos comem as nossas empanadas, eles dizem que são as melhores que já provaram na vida. Alguns falam que são tão boas quanto às da Paola (Carosella)“.
Katia acredita que as histórias acontecem por uma necessidade, que é preciso acreditar naquilo que você sabe fazer de melhor. “O diferencial é que nós não começamos o negócio pensando no lucro. A gente começou por uma necessidade, sim, mas carregando esse amor pela cozinha. A gente até hoje namora as empanadas”. Hoje, elas pensam um pouco mais no lucro para investir no projeto que começou em uma crise, mas que carrega uma história inspiradora de empreendedorismo, união e um toque generoso de amor.