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Depoimento: O mecanismo da atenção

Série com Selton Melo só confunde sobre transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH)

Por Márcia Régis
Atualizado em 9 abr 2018, 20h19 - Publicado em 9 abr 2018, 20h18

Em meio às várias polêmicas despertadas pela série “O Mecanismo”, da Netflix, tenho mais uma para acrescentar (numa boa, Padilha): eu não sou louca, nem bipolar. O que tenho é TDAH. Eu e outros 5% da população brasileira. Incluindo nessa conta o delegado-personagem Marco Ruffo, papel do ator Selton Mello.

Logo no primeiro episódio, Ruffo ouve de um perito médico (e muito bem soletrado, por sinal) que está sendo afastado da polícia porque sofre de TDAH, “um transtorno bipolar!”. Bom, se eu e Ruffo temos o mesmo problema, então o que nos faz cair de cabeça em algo apaixonante atende pelo nome de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. TDAH é só o apelido dessa condição. Por ela, não medimos consequências para fazer de tudo um pouco e ao mesmo tempo para perseguir objetivos até o fim. E dane-se o tempo e todo o resto.

Mas, aqui terminam nossas semelhanças. Não sei até que ponto, nesse caso, a ficção bebe da realidade. Tenho a impressão que o policial Ruffo deve ser o primeiro personagem de uma obra audiovisual diagnosticado em alto e bom som como portador de TDAH. Até que enfim, pensei. Não vou ter mais que ficar explicando que o meu jeito intempestivo de viver me custa trabalho para dominar, porque tem relação com uma disfunção neuroquímica de nascença do meu cérebro.

A alegria durou o tempo de Ruffo perguntar a seu médico o que era TDAH.

Quando sobem os créditos do oitavo e último episódio dessa temporada, quase todos os personagens já têm em conta que Ruffo está “demente”. Pulei do sofá disposta a escrever sobre a questão já no dia seguinte. Uma semana depois, cá estou. Quem tem TDAH procrastina bastante para executar qualquer coisa que o incomode. O meu incômodo foi com o inverossímil. Por dois motivos.

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Primeiro, porque o TDAH não incapacita ninguém. Pode criar inúmeras dificuldades emocionais para o portador e atrapalhar o seu desempenho laboral, mas não incapacitar. Fosse assim, eu nem estaria aqui assinando esse artigo, posto que sequer teria uma carreira como profissional
de comunicação. E só vim a conhecer o pano de fundo do meu profundo mal estar físico geral quando completei 49 anos. Hoje estou com 54 e sigo trabalhando.

O segundo motivo diz respeito ao fato de que o TDAH, no Brasil, ainda é considerado por vários profissionais de saúde mental como um problema de comportamento da infância, que não perdura no adulto (ainda que o TDAH adulto seja descrito pelo Código Internacional de Doenças). Se mal é reconhecido, menos ainda o TDAH adulto é diagnosticado adequadamente.

Tratado, então, só por uma conjunção de fatores reunindo dinheiro para bancar médico, psicoterapia ou remédios e, ainda que a grana extra apareça, há que ter a sorte de encontrar um médico e um psicoterapeuta dedicados a nos mostrar que, com tratamento, a vida com o TDAH pode ser apaixonantemente mais serena, com menos vôos perdidos, menos chaves abduzidas por uma força superior e um pouco mais de planejamento do tempo para cumprirmos os compromissos com menos atrasos.

Ninguém costuma perceber que o portador de TDAH tem uma disfunção bioquímica no cérebro por trás de suas experiencias de vida atrapalhadas, por vezes mirabolantes e quase sempre hilárias. Quem percebe algo errado com a ansiedade e o fluxo incessante de pensamentos (até durante o sono!) é a pessoa com TDAH.

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Podemos desenvolver doenças mentais como efeito colateral do TDAH sem tratamento por anos a fio. Uns desenvolvem depressão, outros uma compulsão. Há quem sofra transtornos de humor, a bipolaridade, mas esses casos não são comuns. Na maioria dos casos, o diagnóstico da doença de base, o TDAH, chega com o tratamento de uma dessas doenças de efeito colateral.

Psiquiatras bem treinados chegam ao cerne do problema que, acreditem, tem tratamento e não torna ninguém incapaz ou demente. Pelo contrário, o tratamento ajusta o nosso mecanismo de vida.

Não, gente. O TDAH não é um transtorno bipolar. E o policial Ruffo, que não é um demente, merece um tratamento melhor. Convenhamos que isso vai ser bom para todo mundo na segunda temporada. Quem vai seguir aguentando o falatório da narrativa dele em todos os episódios? Haja TDAH…

*MÁRCIA RÉGIS é jornalista

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