Poluição sonora não só coloca em risco a audição, como o corpo inteiro
Invisível, mas sempre presente, a poluição sonora é mais que um tormento. Saiba quais são os perigos do estresse causado pelos decibéis
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uando a pandemia começou, a professora universitária Vanessa Schinke, 40 anos, de Porto Alegre, seguiu o caminho de parte dos brasileiros naquele momento e passou ao trabalho remoto. Aulas e reuniões começaram a ser feitas através de videoconferências e assim permaneceram ao longo de 2021.
A medida, que visava proteger professores e alunos da Covid-19, colocou Vanessa diante de um problema que não era exatamente novo, mas para o qual ela nunca havia dado a devida atenção: os ruídos cotidianos da cidade. A poluição sonora logo se tornou uma companheira inseparável e impertinente das atividades à distância.
À primeira vista (ou melhor, à primeira escuta), há dificuldades óbvias causadas pelo barulho em excesso. No extremo, a exposição contínua ao som alto pode levar a problemas de audição.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que até 25% da população mundial terá alguma perda auditiva até 2050, em grande parte causada pela poluição sonora. Todos experimentamos o desafio de manter a capacidade de concentração diante de um som inoportuno ou daquele ruído inesperado que acabou vazando no microfone quando você estava falando em reunião.
Para Vanessa, a situação foi mais extrema, pois o prédio ao lado do seu pegou fogo e a vizinhança se converteu em um canteiro de obras para reparar os estragos. “Tive que montar quebra-cabeças com os compromissos profissionais para tentar escapar do barulho”, conta. Muitas reuniões que antes aconteciam em horário comercial foram transferidas para o período noturno.
“Por sorte, minhas aulas eram em horários em que normalmente as máquinas não trabalhavam, mas foi uma casualidade”, reconhece. Contudo, os impactos da poluição sonora vão muito além dos mais óbvios – e seguem presentes mesmo para quem está de volta ao local de trabalho ou nunca saiu dele.
A barulheira constante é um estressor poderoso, nem sempre perceptível de forma consciente mas que, com o tempo, pode afetar tanto a saúde psíquica quanto a física. O agravante é ele ser “invisível”.
“Quando você olha um rio poluído, consegue enxergar que aquilo está sujo, que a água está turva e não tem peixes. Ou que o ar poluído tem partículas ou um cheiro diferente. Na poluição sonora, muitas vezes pode ser que a pessoa não identifique que ela existe”, aponta o neurologista Leonardo Valente de Camargo, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).
“E, em função disso, não consegue se afastar ou reconhecer o problema para tomar medidas a respeito disso”. É uma questão que impacta inclusive o diagnóstico.
Como os problemas causados pela poluição sonora são típicos de situações estressantes, muitas vezes os pacientes ou até especialistas buscam a explicação em outras causas, por exemplo o trabalho ou os relacionamentos, e relegam o barulho cotidiano a um segundo plano. O resultado é que acabamos não dando atenção ao problema nem em termos individuais nem termos coletivos.
O engenheiro Marcos Abreu, que fez carreira trabalhando com áudio e acústica, virou uma espécie de referência entre os amigos que procuravam soluções para os barulhos que passaram a notar durante o tempo que ficaram em casa – prestar atenção no ruído que você mesmo faz, conversar com o vizinho barulhento para tentar resolver ou abrir o bolso e investir em um isolamento acústico foram as principais dicas que repassou. Mas não há resposta simples.
“Quanto maior o isolamento e menor o nível de ruído, mais a pessoa começa a perceber outros sons. Se o apartamento tem isolamento acústico mas as janelas não, some o ruído do prédio e fica em destaque o do passarinho cantando à noite ou o do cachorro latindo no outro quarteirão. Cada um tem a sua demanda, cada pessoa percebe o ruído de forma diferente, e o que incomoda uma pode não incomodar a outra”, diz Marcos.
Esse processo de compreender a si mesmo e os sons ao redor exige tentativa e erro, o que levará, provavelmente, ao gasto de dinheiro. Pode ser que um fone de ouvido cancelador de ruído baste para você, mas talvez a solução esteja em uma janela à prova de som ou, num caso mais extremo (e bem mais difícil de executar), se mudar para outra cidade ou mesmo para o campo.
É importante dizer, porém, que as armadilhas do ruído não deixam de existir mesmo em uma cidade menor ou um bairro distante. Pense, por exemplo, na escolha de um apartamento em um grande centro urbano. Se o imóvel estiver em um andar baixo ou em uma rua conhecida pelo movimento, pode ser que você já faça a visita preparada para ficar atenta ao barulho, tentando notar se ele pode vir a se tornar um problema. Mas nem sempre vai ser assim.
Se esses sinais não são aparentes ou se você viu o lugar fora do horário de pico e nunca chegou a escutar como o trânsito fica pesado por ali ou se o seu novo vizinho decidiu iniciar uma reforma logo após você se mudar… Todos esses barulhos só vão ser sentidos para valer quando talvez já seja tarde demais para procurar outro canto para morar. Foi o que aconteceu com a família de Vanessa.
Após meses suportando a obra no prédio que havia se incendiado, ela decidiu se mudar. Enfim um pouco de paz! Ou não. “Descobrimos que dois vizinhos estavam fazendo reformas. Quase não acreditamos!”, relata. Foi quando ela chegou à conclusão de que o ruído tinha se tornado uma realidade inevitável com a qual ela precisava aprender a conviver.
Reconhecer a existência do problema é um primeiro passo, mas nem por isso a vida se tornou mais tranquila. “No fim do dia, essa movimentação extraordinária gera cansaço e uma sensação de que estamos em um grande acampamento, pois nenhum lugar é exatamente agradável e convidativo para descansar”, diz.
Isso acontece porque, mesmo nas situações em que nos acostumamos a um ruído e paramos de ouvi-lo de forma consciente (algo que ocorre especialmente se o som é monótono e repetitivo, como o de um ar-condicionado ligado), nosso corpo segue registrando a existência dele. “
A forma que temos para acordar artificialmente é o despertador, que toca e nos tira do sono pelo som alto. Mas vai além de um barulho. Nosso cérebro tem dispositivos para preservar a vida e qualquer ruído pode representar uma ameaça”, assinala o neurocirurgião Fernando Gomes, professor da Universidade de São Paulo (USP).
Assim, se estamos dormindo, temos dificuldade para atingir um estágio de sono mais profundo e reparador. Se estamos acordados, nosso corpo se mantém mais vigilante do que o normal diante das possíveis “ameaças”, mesmo que isso nem sempre seja perceptível. Estudos demonstraram que a exposição a ruídos estressantes faz a amígdala, a parte do cérebro relacionada às respostas emocionais, enviar um sinal ao hipotálamo, que, por sua vez, induz a produção de adrenalina.
Ela e o cortisol, o hormônio do estresse, são responsáveis por nos manter em estado de alerta. Assim, aumentam os batimentos cardíacos e a pressão arterial. É um traço evolutivo que nos permitia ficar atentos a situações de risco, como a presença de um predador. Porém, ao contrário do que acontecia quando nossos ancestrais precisavam fugir de um animal selvagem, a percepção de ameaça não passa se o estressor (neste caso, o som) continua ali. Com o tempo, a repetição do alerta contínuo deixa consequências pelo corpo.
“A poluição sonora gera um fator estressor que reduz a capacidade do cérebro de ‘desligar’ e ficar sem receber tanto estímulo. No período de vigília, isso libera hormônios que alteram o metabolismo de colesterol, de glicose, que levam a problemas cardiovasculares, aumentam chances de infarto e AVC”, explica Leonardo.
Se o ruído for alto demais, mesmo protetores auriculares, como tampões de ouvido, podem ser insuficientes. “A via principal pela qual o som entra é pela orelha, pelo tímpano, mas parte da percepção sonora chega pelo crânio e reverbera”, completa o professor da PUC-PR.
E como saber o que é barulho demais? Uma das dificuldades que temos é justamente essa. A variação dos ruídos é mensurada por meio da escala de decibéis, a mais utilizada para explicar a diferença dos sons, que não é linear, mas logarítmica. Isso significa, por exemplo, que entre 60 e 100 decibéis (a distância entre uma conversa normal e o barulho de uma motosserra em pleno funcionamento), a intensidade do ruído não está aumentando em apenas 40 unidades – mas em 10 mil vezes.
O limite da dor costuma ser colocado na faixa dos 140 decibéis, um ponto entre o ruído feito por um avião a jato e a explosão de fogos de artifício. Mas especialistas alertam: acima do nível de uma conversa, qualquer exposição contínua aos ruídos pode provocar algum dano com o tempo, e a única diferença está em quão rapidamente essas consequências vão ser sentidas pelo corpo.
Não à toa a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) define 55 decibéis como o limite tolerável, durante o dia, para o barulho urbano em uma área predominantemente residencial. À noite, esse número cai para 50. Contudo, você já deve ter desconfiado que não existe uma fiscalização frequente sobre esses barulhos, o que é outro problema.
“O sono é um fenômeno fundamental, vital e biológico para restaurar todos os sistemas do corpo. Se eu tenho vários despertares ou um sono fragmentado, uma noite com uma arquitetura instável, no dia seguinte isso resulta em cansaço, irritabilidade, concentração menor, mais chances de acidentes”, explica a neurologista Andrea Bacelar, do Rio de Janeiro, especializada em medicina do sono.
“No longo prazo, a privação de sono reduz a imunidade e favorece doenças infecciosas, alteração de humor, depressão, alterações no metabolismo, ganho de peso e doenças crônicas”, enumera.
Decibéis é o limite tolerável para barulho urbano em áreas residenciais. À noite, cai para 50
As definições dos limites toleráveis de decibéis são importantes porque ajudam o poder público a definir iniciativas como leis de silêncio ou alterações no planejamento urbano, como o plantio de árvores (que ajudam a bloquear naturalmente as ondas de som) ou o remanejo do trânsito de veículos barulhentos, como caminhões e ônibus, para outras áreas.
Mesmo que o Brasil esteja atrasado em relação a políticas de redução de ruídos, muitas cidades fizeram, nas últimas décadas, uma série de adaptações de zoneamento, afastando a atividade industrial de áreas residenciais. A medida tinha mais a ver com a poluição do ar, mas também ajudou a afastar os sons relacionados a esse setor, geralmente o mais barulhento.
Os especialistas concordam: a conscientização sobre os perigos da poluição sonora – que deveria receber o mesmo cuidado das outras poluições – e as políticas públicas para conter os ruídos são medidas mais eficazes do que qualquer ação individual para contornar esse problema. Sabe-se, porém, que a fiscalização do silêncio nem sempre é a mais eficiente, e certas mudanças na organização da cidade podem levar tempo.
A Prefeitura de São Paulo, por exemplo, conta com o Programa de Silêncio Urbano (PSIU) para a população denunciar estabelecimentos como bares e casas noturnas que estejam violando as normas relacionadas ao barulho excessivo. Só que mesmo iniciativas desse tipo são insuficientes para conter os impactos de barulhos como aquele feito pelo vizinho ou pelo caminhão de lixo.
Para esses incômodos cotidianos, muitas vezes, é preciso agir por conta própria, e aí voltam as recomendações para entender o que funciona melhor para você na busca por um conforto sonoro. O grande problema é que, no dia a dia, é muito difícil você identificar se está exposto a mais do que o limite recomendado – afinal, quase ninguém tem um sonômetro (o medidor do nível do som) à mão.
Uma regra simples para entender se o barulho é abusivo e potencialmente danoso é notar se você está precisando elevar seu tom de voz habitual para ser entendido por quem está ao redor. Se os outros ruídos se sobrepõem à conversa, muito provavelmente os decibéis estão acima do limite adequado.
É quando você precisa tomar uma decisão sobre o lugar em que vive, sua rotina, e os possíveis investimentos para garantir que menos som chegue à sua casa e seus ouvidos. Enquanto as mudanças maiores na cidade não acontecem e o barulho segue lá, o jeito é arregaçar as mangas (ou melhor: tapar os ouvidos).
No caso de Vanessa, perseguida pelos barulhos mesmo depois de trocar de apartamento, o jeito foi fechar portas e janelas e evitar compromissos nas horas mais ruidosas. “Tentamos identificar os horários em que os barulhos são maiores e adequar a rotina a partir disso. Claro que em algumas situações isso é impossível”, relata. “Não temos muita saída. É torcer para que as obras terminem logo”.