O que a venda crescente de antidepressivos revela sobre a nossa sociedade?
As vendas de antidepressivos não param de crescer no Brasil e no mundo. Efeito de um maior número de diagnósticos, sim, mas também da banalização das prescrições
A carioca Cátia Moraes tinha 37 anos e, mesmo sem motivo aparente, começou a se sentir tomada pela angústia. A escritora procurou ajuda na psicanálise e levou um ano para ter coragem de perguntar se tinha depressão. A doença era uma velha conhecida. Por causa dela, seu pai tinha parado de trabalhar quando ela era criança. “Foi como se ele tivesse sido roubado de nós”, diz. Ela continuou com a terapia, mas não era suficiente. “As coisas foram muito difíceis até que aceitei o transtorno e o medicamento.” Melhorou em duas semanas e, após quatro meses, sentiu-se pronta para deixar os remédios. Conversou com o médico e decidiu tentar. Mas, cerca de um ano depois, a depressão voltou. Ela retomou a medicação e não a deixou mais. “Tive que encarar meu bicho-papão. Foi muito doloroso e também uma libertação”, conta ela, que, hoje com 55 anos, é autora do livro Eu Tomo Antidepressivo, Graças a Deus (Best Seller).
Casos como o de Cátia são um exemplo de como os antidepressivos, quando bem indicados, podem devolver uma pessoa a si mesma e, com isso, sua vontade de viver e capacidade de interagir socialmente. Eles agem sobre as catecolaminas internas, neurotransmissores que equilibram o humor e são responsáveis pela sensação de prazer, bem-estar e energia. O primeiro antidepressivo foi lançado nos anos 1950 com alguma hesitação – a doença era ainda pouco conhecida, e a esquizofrenia, que acometia 1% da população, prometia ter mais mercado. Cerca de meio século depois, aqui estamos: segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a depressão atinge 350 milhões de pessoas, principalmente mulheres (é duas vezes mais comum entre elas). Quer dizer, um em cada 20 habitantes do planeta sofre desse mal, que está relacionado ao aumento de infartos, à incidência de doenças autoimunes e ao suicídio, causa de quase 1 milhão de mortes por ano no mundo. O número expressivo de pacientes, associado às graves consequências, se reflete na venda de antidepressivos e estabilizadores de humor: em 2015, foram vendidos quase 55 milhões de caixas desses medicamentos, 11,6% a mais que no ano anterior, segundo a IMS Health do Brasil, empresa de pesquisa e conteúdo para a indústria farmacêutica. Para efeito de comparação, no mesmo período, a venda de antibióticos subiu 3,5%. A tendência se repete mundo afora: um estudo publicado em 2013 pela revista científica PLoSone mostrou que, entre 1995 e 2009, o uso de antidepressivos na Europa aumentou, em média, 20% ao ano, enquanto a taxa de crescimento populacional dificilmente ultrapassa 1%.
“Houve, sem dúvida, um aumento dos que têm acesso a diagnóstico e tratamento”, avalia Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria. Mas não é só. O abuso é latente. A própria OMS aponta que, em todo o mundo, muita gente que não precisa recebe a prescrição. “Há médicos de outras especialidades que receitam indiscriminadamente, sem conhecer a depressão nem os remédios. E também psiquiatras que os prescrevem para quem não tem depressão, mas está triste ou desanimado”, alerta o psiquiatra Dartiu Xavier, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Foi uma ginecologista que fez a prescrição para a coordenadora financeira Anna Carolina de Castro, 30 anos, do Rio de Janeiro. “Em uma consulta, comentei que minha separação estava difícil e ela me receitou fluoxetina.” Anna não gostou do efeito. “Não sentia tristeza, mas também não sentia alegria.” Ela parou com a medicação após dois meses. “As emoções são importantes”, acredita.
A desinformação – tanto de leigos quanto de profissionais – leva ao extremo da glamourização dos antidepressivos, um dos grandes motores do abuso. Assim, quando não é o médico que prescreve sem tanto critério, há pacientes que correm aos consultórios atrás de uma receita das chamadas “pílulas da felicidade” para lidar com um contratempo ou decepção. “Isso é frequente. As pessoas acham que vão resolver todos os problemas com a medicação, o que não é verdade”, alerta Xavier. Não à toa, a venda desses remédios rendeu 3 bilhões de reais à indústria farmacêutica no Brasil no ano passado.
O risco é que, mal indicado, o antidepressivo pode mascarar um problema real (por exemplo, hipotireoidismo) e ainda roubar a chance de se conhecer melhor e aprender a lidar com situações difíceis, que, às vezes, podem ser vencidas sem aditivos químicos. “Há pessoas capazes de sair desse estado por si mesmas, com terapia, e as que necessitam dos comprimidos. Deve-se estudar caso a caso”, alerta a psiquiatra e psicanalista Elisa Alvarenga, membro da Escola Brasileira de Psicanálise. “Sem o medicamento, o paciente muitas vezes adquire um saber sobre como lidar com o sofrimento”, avalia. Além da terapia, vários estudos mostram relação direta entre saúde mental e atividade física. Um deles, da Duke University, nos Estados Unidos, concluiu que a prática de exercícios aeróbicos ao menos três vezes por semana possui efeitos poderosos contra a depressão. “Tenho pacientes que, por problemas de saúde, não podem tomar o remédio e, como uma alternativa de tratamento, melhoram com o exercício”, diz Xavier. De novo, como acontece com a terapia e com os remédios, a atividade física não é resposta para todos. Até porque exige comprometimento e disciplina de quem, por causa da doença, às vezes mal consegue realizar as tarefas diárias básicas. “Para encontrar o tratamento adequado, o deprimido precisa ser devidamente examinado e compreendido”, explica Xavier. “Há estudos mostrando que participar de um grupo de ajuda e fazer sexo também muda o nível de dopamina no cérebro. A nossa orientação é que as pessoas tenham uma vida equilibrada.” Outro fator que não pode ser desprezado são os efeitos colaterais causados pelos remédios, que variam conforme o princípio ativo e o organismo. Entre eles, perda de libido, alterações de peso e dor de cabeça.
Desconhecimento amplo
Na outra ponta do abuso, estão os também numerosos casos de pacientes que precisam dos comprimidos e não chegam nem ao diagnóstico correto. Segundo a OMS, menos da metade das pessoas afetadas pela depressão recebe tratamento adequado. Entre as barreiras enfrentadas, estão a falta de recursos e o estigma social que ainda cerca o quadro. “O preconceito muitas vezes impede que se procure o profissional especializado”, afirma Doris Moreno, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo.
Em geral, a depressão é causada pela combinação de fatores genéticos e externos. A morte de alguém próximo, por exemplo. O diagnóstico é feito por identificação de sintomas, como perda de interesse e mudanças no apetite e no sono. “Mas não dá para resolver só com um questionário: os sinais podem parecer anemia, hipotireoidismo…”, diz Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria. A análise aprofundada, com atenção ao contexto e às ferramentas de cada paciente, é sem dúvida uma das armas mais valiosas no combate à medicalização desnecessária. E com ela a consciência de que o caminho para o controle da depressão ocorre na esfera do individual, do particular, do único. “Eu me perguntava: é um problema químico ou físico? É preciso uma cura química ou filosófica?”, conta o americano Andrew Solomon, autor do premiado O Demônio do Meio-Dia (Companhia das Letras), sobre a depressão. “E não conseguia encontrar uma resposta. Até que entendi que não estamos suficientemente avançados em nenhuma dessas áreas para explicar as coisas totalmente. Tanto a cura química quanto a psicológica têm seu papel.”