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A luta de mães para obter remédios proibidos aos filhos doentes

Brasileiras correm contra o tempo e brigam na Justiça para conseguir remédios importados e caros que são a única esperança para os filhos

Por Letícia Paiva Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 4 out 2017, 17h10 - Publicado em 27 set 2017, 16h43

Ter um filho é um projeto que subverte. Move a mulher daquilo que ela já foi para uma nova modalidade de ser. Ela vira mãe. Mesmo quando ocorre pela segunda ou terceira vez, seu comportamento jamais repete o da mãe anterior. Cada filho traz um traço a mais para a personalidade dela. Aquelas que têm crianças com doenças raras encarnam a leoa insistente, inquieta e superferoz. Fazem tudo aquilo que conhecemos – dão carinho, cuidado, amparo, comida, ensinamentos – e ainda travam duríssimas batalhas na Justiça contra o Estado para que seus rebentos tenham os mesmos direitos à saúde garantidos na Constituição a todos os brasileiros.

A rotina que enfrentam se divide entre acudir convulsões, tentar atrasar o avanço de atrofias musculares e de perdas cognitivas e encarar um juiz para convencê-lo a determinar ao Sistema Único de Saúde (SUS) o fornecimento urgente do remédio que o filho precisa para seguir vivendo. Em geral, são drogas caríssimas, importadas, fora da lista oferecida pelo Ministério da Saúde ou que não contam com aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e, portanto, só poderiam ser obtidas na ilegalidade. Essas mulheres desafiam o relógio numa guerra de liminares, colecionam recursos negados e apelos a cortes superiores.

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Suelly Klain, 43 anos, de Nova Friburgo (RJ), não imaginava que teria de judicializar a sobrevivência das suas gêmeas até as vésperas da festa de 5 anos das meninas, em 2015. Primeiro aconteceu com Ana Beatriz. “Do nada, ela entrou em uma crise nervosa, gritava e se mordia. Nos picos da irritação, começou a sofrer convulsões”, lembra Suelly.

Entre clínicas e hospitais que tentavam arriscar um diagnóstico, finalmente ouviu de uma neurologista que os sintomas batiam com os da doença neurodegenerativa de Tay-Sachs. Entender que não tem cura arrasou a mãe. Descobrir que a sequência de genes com alterações havia sido transmitida por ela e pelo marido a deixou atônita.

O drama se duplicou quando os episódios de agressividade passaram a ser protagonizados também por Ana Luisa. Se as irmãs ficassem perto, uma da outra, se atacavam. Faltava checar a mais velha. Ana Clara, então com 12 anos, fez exames e escapou da herança. “Pelo menos um terço do meu coração ficou em paz”, conta a mãe.

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Se tivesse de caçar no além um pote de ouro ou de fel para salvar as gêmeas, Suelly o buscaria. Entrar na Justiça para deter a doença nem pareceu difícil. Os desdobramentos disso, sim. Ela impetrou uma ação em abril deste ano para obter miglustate (comercialmente, Zavesca), produzido pela empresa suíça Actelion Pharmaceuticals, que custa entre 17 mil e 22 mil reais a caixa, suficiente para apenas um mês. Em um ano, a despesa totalizaria 324 mil reais. Na casa de Suelly seria o dobro, 648 mil. Em casos como o das gêmeas, há várias outras despesas com pediatra, neurologista, psicólogo, fonoaudiólogo, fisioterapeuta…

A dupla, que fará 7 anos este mês, deixou a escola em abril porque a monitora que as acompanhava se demitiu. “Em poucos meses, elas perderam muitos movimentos, estão na cadeira de rodas, se esforçam para falar e não conseguem mais”, diz a mãe. Ela teve que aprender a decifrar a linguagem dos magistrados – o “juridiquês” escrito em longas páginas –, mas não demorou a ver que o Tribunal Federal de Justiça havia sido injusto. A droga concedida em junho passado por liminar só atende uma das filhas. Os processos foram distribuídos a dois juízes. Um entendeu o drama; o outro, não.

Com base em uma determinação do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que suspendeu todos os processos que tramitam no país relacionados à concessão de remédios pelo Estado, Ronaldo Spanholo, juiz federal substituto da 21ª Vara, negou o remédio a Ana Beatriz.

Um pacote chegou em nome de Ana Luisa, com os comprimidos que cobrem oito meses de tratamento. Para socorrer Ana Beatriz, Suelly corre atrás de doações do miglustate. A droga, responsável pela inibição do acúmulo de gordura nas células, sobretudo as neuroniais, pode estancar as degenerações. “Na hora em que não conseguir mais, terei de dividir a dose entre as duas. Não posso escolher quem vai ficar sem”, afirma.

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Suelly com Ana Beatriz, que não conseguiu na Justiça o remédio contra Tay-Sachs. A outra filha, Ana Luisa, teve mais sorte (Júlia Amaral/CLAUDIA)

O que a Justiça faz é analisar friamente, com um olho na petição individual e o outro na coletividade. Em 2016, o governo federal gastou com os dez medicamentos mais caros e prescritos para doenças raras quase 7% do montante empenhado nas medicações distribuídas a todos os pacientes do SUS, que recebem de aspirinas a drogas contra o câncer ou a aids. “Uma sentença judicial não cria um dinheiro novo. Ela desloca para a judicialização a verba de uma ação programada de imunização, de atenção básica ou de média e alta complexidade”, afirma o ministro da Saúde, Ricardo Barros. “Isso desestrutura todo o orçamento que estava previsto e aprovado desde o Conselho Nacional de Saúde até o Congresso Nacional”.

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O custo das decisões tomadas nos tribunais tem sido ascendente. Em 2010, a União gastou 122,6 milhões de reais com remédios, dietas e suplementos alimentares. No ano passado, o valor subiu para 1,3 bilhão de reais. Neste ano, só de janeiro a maio saíram dos cofres públicos 715 milhões de reais. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) entrou em cena. Segundo o promotor do Ministério Público de São Paulo, Arnaldo Hossepian, que é supervisor do Fórum Nacional de Saúde da entidade, “os juízes precisam estar mais bem orientados para atuar nessa questão”.

No fim de 2016, o CNJ firmou um convênio com a pasta dirigida por Barros para criar um banco de dados sobre os problemas mais demandados e contará com o Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, na produção de notas técnicas sobre sintomas, tratamentos e medicamentos caros e importados, aprovados ou não pela Anvisa. “Em decisões apressadas e sem apoio científico, os juízes cometem muitos equívocos ou às vezes desperdiçam recursos públicos”, opina Reynaldo Mapelli, pesquisador da área e promotor do Ministério Público paulista.

Quando fala em gastos desnecessários, Mapelli se refere a casos em que o magistrado autoriza a adoção de uma marca de remédio estrangeira sem saber que o mesmo princípio ativo está disponível no Brasil com outro nome comercial e preço menor. “Mas, se existe base científica e a necessidade do remédio é comprovada, não é dever do juiz se preocupar com orçamento. Ele tem que atender ao pedido.”

Exigência desnecessária

Os agentes federativos deveriam também criar alternativas para pessoas como Maria Luisa dos Santos, 9 anos, que vive em Petrolina, no sertão pernambucano, a 1 533 quilômetros de Brasília, para onde ela deveria ter ido, de ônibus, em 23 de novembro de 2016.

Por determinação da 15ª Vara do Tribunal Regional Federal, ela se submeteria a uma perícia médica para confirmar o diagnóstico da síndrome de Morquio – uma deficiência enzimática – e a necessidade de continuar usando Vimizim (elosulfase alfa) em infusão. A garota precisa ser internada uma vez por semana para tomar seis frascos. Única droga disponível contra esse mal, produzida pelo laboratório americano BioMarin e vendida no Canadá e e em países da Europa, ela custaria à família 624 mil reais anualmente.

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Por não ter comparecido à capital federal, a pernambucana acabou perdendo em março o medicamento que obtinha por força de uma decisão preliminar. Se réus são ouvidos em videoconferência ou interrogados até em processos criminais por cartas precatórias, por que não deram a Maria Luisa a oportunidade de uma perícia em Petrolina ou cidades próximas? Tiraram da menina, que se desloca em cadeira de rodas, tem os pés atrofiados, baixa estatura, pescoço e troncos curtos, macrocefalia, dificuldades cognitivas e problemas cardiorrespiratórios, o principal recurso com que contava para viver com o mínimo de dignidade.

“Não tenho para onde correr com ela”, diz, indignada, Edileuza Souza Silva, 43 anos, a mãe adotiva de Maria Luisa. Sem dinheiro para contratar uma defesa, ela havia procurado, em 2014, a assistência jurídica de uma associação de familiares de doentes da síndrome. “Isso dificulta o contato com os advogados; eu não entendi a obrigatoriedade de ir a Brasília”, comenta. “Para mim, bastava o laudo feito antes, no hospital de Petrolina.”

Os defensores estão tentando reverter a negativa do juiz na segunda instância. “Meu desespero é ver os movimentos da minha filha se limitando e a respiração cada vez mais complicada. À noite, ela não tem conseguido dormir”, relata. Para estar perto da menina enquanto trabalha, ela abriu uma pequena padaria ao lado de casa. Os inúmeros entraves não tiram o bom-humor da garota. “Ela gosta da vida, quer passear, brincar”, conta.

Maria Luisa conquistou muita gente na escola, onde cursa o 3º ano mesmo sem estar alfabetizada. É uma batalhadora. Sua mãe biológica, com deficiência mental, tinha 15 anos quando, estuprada pelo padrasto, engravidou. “Sou apaixonada por ela, faço tudo que posso para que vá além dos 30 anos, que é a expectativa de vida de pessoas como Maria Luisa”, diz Edileuza.

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Edileuza com Maria Luisa, a menina que perdeu o medicamento porque o juiz a convocou para a perícia em Brasília, a 1 533 quilômetros de sua casa. O sorriso de Maria Luisa desaparece à noite, quando a respiração se torna difícil e ela não consegue dormir (Aldo Bernardis/CLAUDIA)

O que é urgente?

Cada notícia sobre judicialização da saúde deixa Edileuza e os outros familiares apreensivos. Foi um pedido de vista em setembro do ano passado que fez o Supremo Tribunal Federal suspender o julgamento que decidiria se o poder público tem obrigação de fornecer medicamentos que não constam da lista oficial do SUS. Por isso, em maio, o STJ resolveu aguardar o desfecho no Supremo, determinando a suspensão dos processos em andamento, o que motivou a recusa do pedido de remédio para uma das gêmeas de Nova Friburgo. Os ministros do STJ, porém, deixaram aberta uma brecha para as situações consideradas de extrema urgência.

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Quem mede a urgência? O STJ entende que é preciso atender com pressa a nutricionista brasiliense Katiane Loquingen, 31 anos. Ela convive diariamente com o temor dos inchaços letais do angioedema hereditário. Em média, encara dois episódios fortes por mês. Os sintomas são vermelhidão e inchaço das faces, pernas e do abdome. Ela sente fortes dores, tem diarreia e vômito. Se a glote se avolumar também, o risco é maior, o ar quase não passa e ela pode morrer por asfixia. Sob stress, as crises se potencializam. Katiane tem um filho. É com Matheus, 3 anos, a sua maior preocupação. Só quando fizer 5, será submetido a um mapeamento genético.

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Katiane com Matheus: a Justiça determinou que o governo dê a ela o remédio que precisa para sair de crises. Mas o Ministério da Saúde não cumpriu a ordem (Igo Estrela/CLAUDIA)

A doença, que afeta o sistema imunológico e foi diagnosticada em 2010, se manifestou também em Edilene, 58 anos, mãe da nutricionista. “Mesmo sabendo que a gente não controla a genética, vou me sentir culpada se Matheus tiver angioedema hereditário”, diz Katiane. “Minha mãe se vê exatamente assim, a responsável por todo mal-estar e constrangimento que eu passo.” O menino nunca teve um edema. Mas basta machucar o dedinho que ela entra em pânico.

“Fico em cima, olhando, e, se o dedo começa a inchar, corro para a médica que me acompanha.” Ela desejou muito o filho. Tinha medo de morrer na gravidez e deixá-lo. Para não prejudicar Matheus, deixou de tomar os remédios que compra na farmácia para minimizar as crises. “Consegui passar a gravidez sem nenhum ataque”, recorda. “Faço qualquer coisa pela saúde de Matheus.”

Todas as vezes que entra em um novo round judicial para conseguir o icatibanto (Firazyr), fabricado nos Estados Unidos pelo laboratório Shire, pensa em si própria, em Edilene e na sua criança. Há três anos, ela tenta obter o medicamento por meio de uma ação que move no Tribunal Federal de Justiça. Em uma seringa, aplicada emergencialmente, com doses custando 7 mil reais, estará sua salvação. Como o medicamento é aprovado pela Anvisa, ela poderia tentar uma importação.

Precisaria ter duas doses em casa a cada mês, ao preço de 14 mil reais. Por ano, o valor chegaria a 168 mil, o que dobraria para atender a mãe. Elas tocam processos distintos, com o de Katiane correndo mais rápido.

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A nutricionista teve o pedido negado na primeira instância, recorreu e, em abril, os desembargadores decidiram, por unanimidade, que a União deve fornecer a medicação. Como não tem caráter terminativo, travará outra briga para obter o segundo lote. Mas ela não recebeu sequer o primeiro. “O Estado está descumprindo a determinação”, explica Rafaela Pena, sua advogada. “Quatro meses se passaram e a droga não chegou ao hospital onde Katiane é atendida.”

Então, um novo pedido foi feito para a Justiça dar ao Ministério da Saúde um prazo para a entrega. “O número de ações diminuiria se as políticas públicas fossem fortalecidas e o SUS funcionasse como deveria”, critica Sueli Galdolfi Dallari, especialista em direito sanitário e professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. “As pessoas têm entrado na Justiça para ter acesso até a medicamentos muito simples, da lista oficial, que já fazem parte da obrigação do governo.”

Um pensamento da mãe das gêmeas sintetiza o sentimento das outras. Ela diz: “Eu respiro a morte 24 horas por dia. Não sei como as meninas estarão em um mês ou no próximo aniversário. A cura não chegará para elas. Minha esperança é de que a ciência a descubra logo. Mas a briga pelos medicamentos já poderá trazer ajuda para muita gente que está sofrendo agora”.

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