Racismo ambiental é real, e precisamos falar sobre ele
Cunhado na década de 1980, o termo continua a ser motivo de disputa. Entenda o que é e como ele se reflete no Brasil
Não é segredo que as mudanças climáticas são uma realidade, e que estão afetando todo o planeta – inclusive aumentando a incidência e gravidade de eventos climáticos, ,como as chuvas que deixaram 12 mortos no Rio de Janeiro no começo deste ano. Após a tragédia, Anielle Franco, ministra de Igualdade Racial, lamentou as mortes e as famílias desabrigadas, mas também aproveitou a ocasião para dar luz ao chamado racismo ambiental, sendo prontamente ridicularizada e atacada, alegando ser apenas mais uma invenção de novas gerações.
Mas o racismo ambiental não é uma novidade, e é usado por acadêmicos para descrever os efeitos em maior proporção de catástrofes climáticas que impactam negros, indígenas e povos tradicionais em vulnerabilidade.
Afinal, o que é racismo ambiental?
É fato que os câmbios climáticos têm trazido severos impactos à população brasileira em geral, mas os grupos em situação de maior vulnerabilidade se veem ainda mais afetados.
“O racismo ambiental ainda é visto como algo dentro do escopo do mimimi, assim como muitas das dores das minorias. E a verdade é que não é algo que afeta só os corpos pretos e periféricos, é algo que afeta toda uma questão ecológica, sanitária e até mesmo climática”, explica Natália Pagot Xavier, mestra em Educação e Licenciada em Biologia, com experiências em Educação Étnico Raciais desde 2014.
A expressão, cunhada na década de 1980 pelo ativista e pesquisador americano Benjamin Franklin Chavis Jr., foi desenvolvida em meio a protestos contra depósitos de resíduos tóxicos no condado de Warren, no estado da Carolina do Norte (EUA), onde a maioria da população era negra.
“O processo de chegada do termo no Brasil foi tardio, apenas em 2005. Hoje em dia, temos o conceito de racismo ambiental vinculado ao fato de direcionar de forma desproporcional o ônus do desenvolvimento que vem acontecendo através do sistema capitalista. Esse fortalecimento das estruturas de desigualdade em regiões específicas e radicalizadas é uma ferramenta de controle e organização dos corpos que ocupam territórios racializados”, revela Andressa Dutra, gestora ambiental pela IFRJ, mestranda em Ecoturismo e Conservação e pesquisadora ambiental crítica.
Para alguns, quando se trata de mudanças climáticas, parece difícil acreditar que classe e raça podem influenciar os impactos. Portanto, é importante realizar a análise a partir das estruturas sociais que promovem a desigualdade histórica, isto é, a partir do Brasil colônia, com a expulsão de povos originários e escravização de povos negros, levando a um histórico de desigualdade, com o qual são prejudicados em fenômenos climáticos, seja pela falta de saneamento básico ou desigualdades de classes sociais.
Como o racismo ambiental se reflete no Brasil?
“Hoje a gente vê o fenômeno de forma tão naturalizada que muitas vezes as pessoas não conseguem associar. Por exemplo, hoje eu vivo no RJ, que é uma cidade extremamente complexa, e ao mesmo tempo uma das únicas cidades que tem uma floresta em território urbano. Quando a gente pensa em racismo ambiental nessa cidade, existem situações gritantes. Por exemplo, o saneamento básico dentro de comunidades como a favela: lá a gente vê valão a céu aberto, a própria questão de recolhimento de lixo, em que alguns bairros têm coleta seletiva enquanto os bairros periféricos ou pretos não passam por esse processo”, aponta Natália.
Mas o racismo ambiental não se resume apenas a estes tópicos, sendo um dos pilares da economia atual, e incluindo itens muito mais básicos, como o acesso à água potável e até árvores.
“Costumam ser bairros que não têm árvores, praças, grama e, portanto, se tornam locais extremamente quentes pela falta de arborização. E os grupos que se veem mais afetados com isso, quando a gente fala em cidade, são pessoas pretas, periféricas, mulheres negras e pobres, são aqueles que vivem na favela ou no campo.”
Indígenas têm suas terras delimitadas, sem beira de estrada, sem acesso à água e sem acesso aos animais que fazem parte de suas culturas. “Os ribeirinhos, por exemplo, são extremamente afetados pela questão das hidrelétricas e o assoreamento dos rios. São essas comunidades periféricas que se veem principalmente afetadas, e são aquelas cujas doenças não são tratadas e seus problemas não são solucionados”, acrescenta Natália.
“A gente tem um movimento constante de anulação, que fala que as populações pobres são culpadas pela desigualdade ambiental, porque elas supostamente não têm consciência ambiental ou ecológica. É uma tentativa de culpabilizar a população pobre dessas desigualdades e tirar a responsabilidade dessas grandes indústrias e empresas em relação à poluição e degradação destes territórios”, critica a gestora ambiental.
Basta olhar para o número expressivo de pessoas negras vítimas de tragédias previsíveis que protestam por perder bens materiais e entes queridos para perceber o cenário.
Um levantamento de 2024 da Agência Pública revelou que os distritos da cidade de São Paulo onde moram mais pessoas negras tiveram mais alagamentos, inundações e deslizamentos nos últimos dez anos. Entre eles, 10 distritos tiveram essas ocorrências acima da média da cidade e nove dos 10 ficam nas periferias.
Além disso, uma pesquisa encomendada pelo Greenpeace ao Ipec constata que 70% das pessoas das classes D e E se sentem inseguras com a possível manifestação dos eventos climáticos, enquanto para moradores em regiões periféricas a porcentagem é de 63%.
Da mesma forma, as populações pretas e pardas se sentem mais vulneráveis em relação aos eventos (64%), quando comparado às pessoas brancas (60%).
“A gente tem um Estado operando e organizando o racismo ambiental à medida em que ele é ausente em políticas públicas ou ele é omisso quanto a todo o processo de negação de direitos dessas populações”, acrescenta Andressa.
O racismo ambiental na prática
Casos de racismo ambiental têm se mostrado corriqueiros no Brasil, especialmente em períodos de chuvas. Elas, por exemplo, são previsíveis — sendo com maior ou menor potencial de vítimas — e, mesmo assim, não são feitas políticas públicas ou soluções de saneamento básico para prevenir tragédias.
Andressa Dutra lembra também a tragédia de Brumadinho, em 2019. “Um caso emblemático de racismo ambiental no Brasil é o rompimento da barragem da mineradora Vale em Brumadinho, causando a morte de aproximadamente 300 pessoas e destruindo o ecossistema que era fonte de sobrevivência da população ribeirinha – ou seja, que precisavam dos rios. Já tem quatro anos que isso aconteceu e a gente continua sem muitas reparações.”
“A gente tem, no norte do país, um povo amazônico e um povo indígena que é extremamente invisibilizado em suas questões de saneamento básico e de qualidade de vida, porque são pessoas que vivem muito próximo da água, e precisam ter um cuidado para que tenha uma manutenção da qualidade dessa água. Já na Caatinga, a gente vê a falta de água e a falta de políticas que vão trazer o acesso, e isso também é uma forma de racismo ambiental. No momento que você vê um problema e você não trata desse problema, porque a vida daquelas pessoas não importa tanto quanto a vida daquelas que moram na Faria Lima”, acrescenta Natália.
E como podemos colaborar para a mudança?
É evidente que, por sua vez, o estabelecimento de políticas e projetos governamentais entram em jogo quando se diz respeito à minimização e solução de casos de racismo ambiental. Mas será que a gente tem alguma responsabilidade no assunto?
“A mitigação se dá a partir da eliminação de práticas racistas, e eu diria que um segundo caminho é a construção de políticas públicas que atendam às reais demandas das comunidades afetadas. Para isso, aqueles tomadores de decisão, que são os mais poderosos, precisam dar ouvidos às pessoas impactadas e viabilizar a presença dessas pessoas em espaços de tomada de decisão. É somente assim que vamos garantir a sobrevivência dessas pessoas e, também, que estes grupos não tenham que temer se amanhã ou depois de amanhã ela vai perder tudo”, coloca Andressa.
Natália acrescenta que é indispensável o tratamento do racismo do Brasil para compreender as injustiças sociais (e, neste caso, ambientais) que os grupos marginalizados sofrem.
“A gente pode começar a implementar diversas políticas públicas, isso é fato. Começando por uma construção de hortas comunitárias para a empregabilidade de mães, o fortalecimento de cooperativas de reciclagem para mitigar poluição e fortalecer a economia verde desses espaços e, claro, trabalhar com um saneamento básico público e de qualidade”, reflete Natália.
Para além disso, a falta de conhecimento da expressão “racismo ambiental” é uma evidência de que o Brasil não possui conhecimento básico acerca da questão racial brasileira, e cresce um alerta em cima das tragédias ambientais que são sofridas com maiores impactos por grupos marginalizados.