Mulheres na política: substantivo feminino nas Eleições 2022
Voltamos no passado para organizar o presente e poder sonhar com o futuro. Um caminhar pela ação das mulheres por um Brasil melhor
“O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome”, escreveu Carolina Maria de Jesus, na ilustração acima. Nos agarramos às linhas de uma das maiores escritoras de língua portuguesa para encarar o desafio que é contar a história das mulheres na política brasileira, sem nos perdermos. Daí a importância de ter uma guia que sentiu no corpo o peso do racismo e da pobreza extrema, mas também a potência subversiva e emancipadora da arte. “A libertação feminina não é possível sem a libertação da mulher negra, da opressão e do duplo preconceito: por ser mulher e por ser negra”, lembra Benedita da Silva.
Nas eleições de 2022, mulheres não só são a maior parte do eleitorado, como esta foi a maior marca registrada na série histórica. O número é animador, mas não espantoso. Segundo o último Censo, realizado em 2010, o Brasil tem uma população composta por 51,8% de pessoas que se identificam como mulheres. Apesar disso, nas últimas eleições, 84,4 mil mulheres se candidataram como vereadoras no Brasil e apenas 6% foram eleitas. Mas a participação de mulheres na política vem aumentando. Em 2018, representavam 31,6%, proporção que cresceu para 33,27%, em 2022, e o número de candidatas autodeclaradas pretas e indígenas também aumentou consideravelmente. Podemos e devemos ter esperança de virar o jogo, mas, para isso, é preciso mobilização e voto consciente. E um resgate de memória.
MOVIMENTOS SOCIAIS EM MOVIMENTO
Para Benedita da Silva, primeira senadora negra do país e a primeira vereadora negra da Câmara Municipal do Rio, os movimentos sociais representam a mola propulsora tanto do feminismo quanto da luta contra o racismo. “Temos de fortalecer todos os meios, institucionais e não institucionais, sociais e partidários”, ressalta. “Aí está a chave da mudança do Brasil desigual, racista e machista.”
Quando, em 1827, mulheres foram autorizadas a estudar além do primário, ou quando, em 1879, conquistaram acesso às faculdades, a escravização sequer tinha sido abolida. Leis que representavam um avanço para mulheres brancas da elite não faziam diferença na vida de mulheres negras. Em 1932, quando o direito ao voto feminino foi conquistado, ele era restrito a pessoas alfabetizadas, com renda própria ou que tinham autorização do marido para votar, o que significou a exclusão de negras e indígenas. O fim de algumas restrições só ocorreu dois anos depois, com a nova constituinte.
Mulheres negras são 27,8% da população brasileira, mas ocupam só 2,3% dos cargos no parlamento
Fonte: IBGE
Quase cinquenta anos haviam se passado desde a abolição e nenhuma estratégia de reparação tinha sido colocada em prática. Apesar dos embates internos relativos a questões de gênero, alguns marcos do movimento negro são fundamentais para entender o movimento feminista a partir da mobilização das mulheres negras.
A criação da Frente Negra Brasileira, em 1931, a Fundação do Teatro Experimental do Negro, em 1944, e o lançamento oficial do Movimento Negro Unificado, em 1978, são alguns deles. Mulheres das elites das capitais já vinham se articulando desde o final do século 19 e começo do 20, mas o movimento fundado por nomes como Nísia Floresta e Bertha Maria Lutz, e posteriormente desenvolvido no contexto do Estado Novo e da ditadura militar, era majoritariamente branco. Enquanto isso, mulheres negras seguiam se articulando nas escolas, universidades e comunidades para, muito em breve, desaguar na criação de coletivos e organizações próprias.
Em 29 de maio de 1982, no Auditório do Colégio Sion, em São Paulo, feministas de diferentes grupos encenaram um julgamento para sensibilizar para a discriminação de gênero. O Tribunal Bertha Lutz apostou na reprodução do modelo dos tribunais já difundidos na Europa, e personalidades como Aloizio Mercadante e Carlito Maia compunham o júri simulado. Havia apenas uma pessoa negra entre os jurados: Abdias do Nascimento.
Em 2020, 84,4 mil mulheres se candidataram como vereadoras no Brasil, mas apenas 6% foram eleitas. Nas prefeituras, elas formam os grupos menos representados, com 4%
Fonte: IBGE
No momento de seu parecer, ele olhou em volta para, então, dar início à sua fala: “Tendo em vista que não há nenhuma mulher negra neste júri simulado; tendo em vista que as minhas irmãs não estão aqui representadas, eu, neste momento, me faço cavalo de todas as minhas ancestrais e peço a elas que se incorporem e me iluminem.” E prossegue: “Porque nós, mulheres negras…”
Sueli Carneiro estava na plateia e relembra a cena no livro Continuo Preta. Foi o momento ápice do tribunal. Ao final do evento, Sueli vai até Abdias para agradecer, e promete que ele jamais precisaria fazer isso novamente, porque, em suas palavras: “Nós vamos chegar”. E chegaram mesmo.
Em 1983, ano em que foi nomeado em São Paulo o Conselho Estadual da Condição Feminina, o primeiro do país, mas ainda sem nenhuma mulher negra, Lélia Gonzalez criou o Nzinga Coletivo de Mulheres Negras. São Paulo ainda não tinha nenhuma organização semelhante e, então, provocadas pela radialista Marta Arruda, ativistas pediram uma reunião com a Comissão Executiva. Naquele mesmo ano, em 6 outubro, logo depois da reunião, Sueli Carneiro, Marta Arruda, Thereza Santos, Sônia Nascimento, entre outras, fundaram o Coletivo de Mulheres Negras.
As articulações renderam frutos e, em 1988, um novo julgamento foi encenado, desta vez na Faculdade de Direito da USP. O Tribunal Winnie Mandela homenageou a sul-africana, ativista na luta antiapartheid, e teve a sessão do Grande Júri realizada no dia 20 de novembro. Falaram Lélia Gonzalez, Benedita da Silva, Leci Brandão e representantes de diversas entidades dos direitos humanos. Ao longo do julgamento, foram apresentados dados e análises sobre educação, trabalho, saúde e violência. Uma juíza de direito condenou a Lei Áurea por sua ineficiência e o evento teve repercussão nacional e internacional, um marco para a história do feminismo interseccional.
SOBREVIVER É UM ATO POLÍTICO
Muito antes dos anos 1980, mulheres negras já se organizavam nos movimentos sociais e nas batalhas do dia a dia. Benedita da Silva, cuja atuação começou com o pioneiro Departamento Feminino da Associação de Moradores do Chapéu-Mangueira, lembra: “Foi uma verdadeira escola política. Principalmente para compreender que só com a sua própria luta as mulheres serão respeitadas”. As disputas do cotidiano e o direito à existência também marcam a trajetória de mulheres transexuais, travestis e pessoas LGBTQIAP+.
Nomes como Erica Malunguinho e Erika Hilton fizeram história na política brasileira, afirmando a urgência de um novo horizonte político. “As divisões [entre movimentos] permitem aprofundar as pautas, trazer as particularidades de cada grupo, mas não acredito que eles caminhem separados”, explica Hilton. Ela ressalta que a maior parte das pessoas que estão lutando “são mulheres, são negras, são LGBTQIAP+”.
Com mais de 50 mil votos, Erika Hilton foi a primeira mulher negra, travesti, ou transvestigênere — termo que criou para abarcar as “identidades que fogem do CIStema”, como define — eleita para a Câmara Municipal paulistana. Mas a luta não terminou ali. Ao conquistar este espaço, foi obrigada a lidar com a transfobia. “Tentam barrar o que fizemos e seguiremos fazendo enquanto comunidade até que a sociedade nos inclua, nos respeite e nos garanta direitos.”
MULHERES EM PÉ, FLORESTA EM PÉ
A luta pelo direito de existir nos convoca para a militância das mulheres indígenas, cuja história, ainda pouco documentada, se deu, até muito recentemente, longe dos holofotes e dos grandes centros urbanos. Submetidas desde a invasão portuguesa a enormes violências físicas, simbólicas, territoriais e culturais, até 2018 sequer tinham alcançado uma vitória no pleito. Joenia Wapichana foi a primeira mulher indígena eleita para a Câmara dos Deputados. Pioneira da causa indígena, milita desde 1997, quando se tornou a primeira indígena a se formar em Direito, pela Federal de Roraima. Em 2008, tornou-se a primeira a falar no STF, defendendo a Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
Mas Joenia não está sozinha. Caminham com ela, em suas lutas e contextos específicos, outras grandes lideranças. Telma Taurepang é uma das fundadoras do Parlaíndio, primeiro parlamento do movimento indígena do país, além de coordenadora Geral da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira. Sônia Guajajara, que, em 2022, entrou para a lista de 100 personalidades mais influentes do mundo da Time , é reconhecida por denúncias que já fez na ONU, no Parlamento Europeu e nas Conferências do Clima.
98% das candidatas negras sofreram algum tipo de violência em 2020
“Minha atuação sempre foi guiada por princípios do meu povo”, conta. Ela alerta para o perigo do individualismo, que gera crises sociais e o aumento do consumo, e nos convoca a “reaprender a vida comunitária”. E por falar em futuro, uma nova geração está ocupando seu espaço na cena. Txai Suruí, Artemisa Xakriabá, Samela Sateré-Mawé, Hamangaí Pataxó, entre outras, levantam suas vozes fazendo coro a falas como as de Sonia, que tem espalhado pelos quatro cantos do mundo que “a maior riqueza que o ser humano pode ter é o uso coletivo dos recursos naturais”.
Ela explica que as demandas pela demarcação dos territórios indígenas mobiliza mulheres, pois garante a um só tempo “moradia, cultura, segurança alimentar e um ambiente seguro para o crescimento dos filhos”. Vivemos uma emergência climática, mas também social. A violência de gênero é uma realidade de proporções epidêmicas no Brasil e, quando combinada à violência política, produz tragédias, como o assassinato de Marielle Franco. Porém, é apesar de tudo e também em resposta ao extermínio, que mulheres de todas as idades, etnias, culturas, cores, identidades e orientações sexuais se levantam todos os dias dispostas a fazer política. É para honrar as que foram assassinadas, que resistiram e lutaram, mas também é pela capacidade inabalável de acreditar que é possível trabalhar por um futuro melhor mulher, no qual a política seja, enfim, entendida como o substantivo feminino que é.
TODAS SÃO POLÍTICA
Para entender o necessário protagonismo feminino na política brasileira, é preciso compreender a abrangência das atuações dentro e fora do poder público. Conheça 12 figuras essenciais para chegarmos até aqui e sonharmos o amanhã
Lélia Gonzalez: Intelectual, política, professora e antropóloga brasileira. Seus escritos, fundamentais ao debate sobre o racismo no Brasil até hoje, articulam campos como história, filosofia, antropologia, sociologia, literatura, psicanálise, estética e cultura brasileira e africana. Foi uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado, do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras do Rio de Janeiro, do Nzinga Coletivo de Mulheres Negras e do Olodum. Participou da primeira composição do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, de 1985 a 1989.
Alzira Soriano: Ela foi a primeira mulher a ser eleita prefeita de um município na América Latina, a pequena Lajes, no interior do Rio Grande Norte, em 1928. O acontecimento inusitado teve repercussão até nos Estados Unidos e chegou a ser noticiado pelo jornal The New York Times. A notícia chamava a atenção para o fato da eleição de Alzira anteceder o sufrágio feminino, o que só aconteceria no país quatro anos depois, em 1932.
Xica Manicongo: Entrou para a história como a primeira travesti documentada no Brasil. Apesar de sua expressão de gênero ser lida pelo colonizador — ela foi sequestrada da região do Congo — como feminina, muito por conta dos trajes que usava, Xica recebeu um nome masculino, o qual recusava-se a usar. Em junho de 2022, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou um projeto de lei que regulamenta a nomeação de uma rua na Zona Sul da capital em sua homenagem.
Luiza Bairros: Entre 2011 e 2014, ela foi ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Brasil. Um dos nomes mais importantes do Movimento Negro Unificado, também integrou o Diretório Acadêmico da Faculdade de Ciências Econômicas da UFGRS, durante a sua graduação, em 1975. Em plena ditadura militar, ela atuou nas ações que buscavam rearticular a União Nacional dos Estudantes (UNE).
Antonieta de Barros: A primeira mulher negra a ser eleita para uma assembleia legislativa no Brasil era filha de uma lavadeira e órfã de pai, e teve uma infância muito pobre. Nascida em Florianópolis, em 11 de julho de 1901, conseguiu ingressar, aos 17 anos, na Escola Normal Catarinense, formando-se, em 1921, professora de Português e Literatura. Foi precursora da luta por representatividade negra no Parlamento brasileiro e contribuiu para as discussões sobre a participação da mulher em um espaço eminentemente masculino.
Marielle Franco: Socióloga com mestrado em administração pública, negra, mãe, filha, irmã, esposa e cria da favela da Maré, foi eleita Vereadora da Câmara do Rio de Janeiro, com 46.502 votos. No dia 14 de março de 2018, seu brutal assassinato em um atentado também matou o motorista Anderson Pedro Gomes. Na sua atuação, presidiu a Comissão da Mulher da Câmara, trabalhou em organizações da sociedade civil, coordenou a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e construiu diversos coletivos e movimentos feministas, negros e de favelas. Eternizou-se na história da política brasileira como símbolo de luta e resistência.
Carmen Silva: Baiana, 59 anos, mãe de oito filhos, retirante, dormiu nas ruas de São Paulo no início dos anos 1990 e tornou-se líder do Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC). Conhecida por representar reivindicações e apresentar soluções criativas, a ativista que sofreu com a violência do Estado ao ser presa injustamente atuou no filme Era O Hotel Cambridge, dirigido por Eliane Caffé, premiado pela Federação Nacional de Arquitetos e Urbanistas em função da abordagem de um dos temas mais urgentes das cidades brasileiras: o acesso à moradia pela população de baixa renda.
Tereza de Benguela: Heroína brasileira por excelência, “Rainha Tereza”, como ficou conhecida em seu tempo, viveu no século 18 no Vale do Guaporé, no Mato Grosso. Liderou o Quilombo de Quariterê após o falecimento de seu companheiro, José Piolho, morto por soldados. Sua liderança se destacou pela criação de uma espécie de Parlamento e de um eficaz sistema de defesa e autossuficiência agrícola. O quilombo resistiu da década de 1730 ao final do século. Tereza foi morta após ser capturada por soldados em 1770.
Dilma Rousseff: Primeira presidente mulher da história do Brasil, entrou para a política ainda na juventude, logo após o golpe militar de 1964. Fez parte da luta contra a ditadura, foi presa pelo regime, passou quase três anos em reclusão, de 1970 a 1972, período em que foi torturada. Reconstruiu sua vida no Rio Grande do Sul, onde cursou economia na Universidade Federal e teve sua única filha, Paula, que estava ao seu lado na cerimônia de posse no Palácio do Planalto, em 2010. Reeleita em 2014, sofreu impeachment em 2016.
Mãe Menininha do Gantois: Terceira ialorixá da história do Gantois — ou Ilê Iaomim Axé Iamassê —, ocupou o posto pelo período recorde de 64 anos. Uma das maiores e mais renomadas da história do candomblé no Brasil, eternizou-se pela política, pela arte e pela luta contra a intolerância religiosa. Descendente de escravizados, de família originalmente da Nigéria, foi uma voz de consenso diante de quem todas as mais velhas da Bahia se curvavam, segundo o sociólogo, antropólogo e babalorixá Rodney William Eugênio, doutor pela PUC-SP.
Margarida Maria Alves: Sindicalista e defensora dos direitos humanos, foi uma das primeiras a exercer um cargo de direção sindical no país. Após ser assassinada dentro de sua própria casa, sua trajetória de luta inspirou a Marcha das Margaridas, manifestação realizada desde 2000 por mulheres trabalhadoras rurais do Brasil. Ela liderou as reinvindicações pelos direitos trabalhistas no estado da Paraíba durante a ditadura militar e recebeu, postumamente, o Prêmio Pax Christi Internacional, em 1988.
Nise da Silveira: Reconhecida mundialmente por sua contribuição à psiquiatria, ela revolucionou o tratamento mental no Brasil, tornando-se o principal nome da luta antimanicomial. Foi aluna de Carl Jung e dedicou sua vida ao trabalho com doentes mentais, manifestando- -se radicalmente contra as violências praticadas em supostos tratamentos como a lobotomia. Pioneira, Nise ainda enxergou o valor terapêutico da interação de pacientes com animais, e encontrou em Dona Ivone Lara a parceira para fazer terapia por meio da arte.
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