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“Se você não pode contar com a família, não tem ninguém”

Luisa da Silva, 41 anos, explicita como o dinheiro e as moedas paralelas circulam dentro nas penitenciárias

Por Por Mariana Zancanaro | Isabella Marinelli, Ana Laura Pádua, Mariana Ramos e Débora Stevaux.
Atualizado em 9 jun 2017, 18h29 - Publicado em 22 fev 2017, 10h05
 (Débora Islas/CLAUDIA)
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Luisa* da Silva, 41 anos, mora em um bairro residencial de classe média em São Caetano do Sul, São Paulo. O “C” do ABC Paulista, ficou conhecido por ocupar o primeiro lugar no ranking de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil e sua rua é uma das mais movimentadas do bairro. A fama pela ausência de comunidades carentes, saúde pública de qualidade e educação para todos resulta em um custo de vida bem mais alto em relação a outros municípios da região metropolitana de São Paulo.

Ao entrar pelo portão do sobrado onde mora, enxerga-se um terreno grande, com parte da casa no nível da rua e uma escadaria que leva ao andar de baixo. Na sala de estar, dezenas porta-retratos dividem espaço com brinquedos, santinhos e outros detalhes. O ambiente habita o limiar entre aconchegante e apertado – não pela falta de espaço, mas pelo excesso de objetos.

Entre as fotos, as de seu menino, Felipe, que ainda está preso. Luisa narra o envolvimento no crime e também a suposta armação em que teria caído. O autor teria sido um policial militar, cujo filho participava dos roubos. Os crimes em questão eram assaltos de carros à mão armada, seguidos de falsificação de documentos – tudo isso no que a lei chama de associação criminosa. Segundo as acusações, ela seria a chefe da quadrilha e mandante dos crimes, além de responsável por falsificar documentação e receptar cargas roubadas.

Luisa diz que não pode revelar detalhes em razão do atual andamento do processo. Ela ficou presa por 11 meses e 12 dias enquadrada nos artigos do Código Penal: Art. 157 (roubo mediante ameaça ou violência), Art. 171 (estelionato: obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro), Art. 180 (receber, transportar ou ocultar qualquer proveito fruto de crime) e por último, Art. 288 qualificado (associação criminosa, com uso de arma de fogo).

No dia 11 de março de 2015, foi absolvida em um dos dois processos a que respondia com defesa particular. Isso, pois consta no Artigo 312 do Código de Processo Penal que qualquer pessoa poderá ter sua prisão preventiva decretada “como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.” No caso de Luisa, o juiz pode ter alegado a possibilidade obstrução de justiça, por meio de destruição de provas e risco concreto de fuga – já que ela instruiu o próprio filho a fugir. Enquadrada no Artigo 312, mesmo provando sua inocência, o Estado se reserva o direito de não pagar indenizações.

A realidade, porém, é que a lei é clara quanto à necessidade de “indício suficiente de autoria”, que, segundo Luisa, se fez valer a partir de um GPS e um adesivo SemParar encontrados em sua casa – já após o mandato judicial de prisão ter sido expedido.

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A prisão preventiva de inocentes não é exceção: cerca de 250 mil pessoas (40% do total) não foram culpadas de crime algum, segundo dados do Infopen de 2014. Só em São Paulo, a porcentagem de presos sem julgamento há mais de 90 dias chega a 31%. Vale lembrar que o Artigo 5º da Constituição Federal prevê a presunção de inocência. Ou seja, vale a máxima: ninguém é culpado até que se prove o contrário. O que vemos por aqui, no entanto, é a completa inversão.

O Pacto de San Jose da Costa Rica, assinado pelo Brasil em 1992, determina que pessoas presas em flagrante sejam levadas ao juíz para uma audiência de custódia o mais rapidamente possível. Mais de 20 anos da assinatura do pacto se passaram e o Brasil ainda alega dificuldades operacionais. Vale dizer, entretanto, que desde 2015 alguns estados começaram a implementação do procedimento. Além da possibilidade de responder o processo em liberdade, mesmo que ainda sob outras alternativas (como tornozeleira eletrônica, comparecimento ao juíz e proibição de saída da comarca), o encontro também é fundamental para denunciar possíveis torturas e maus tratos empenhados por policiais. Durante um ano a capital paulistana testou o plano piloto das audiências de custódia, dos 16.653 presos preventivos 7.576 obtiveram o direito de responder ao processo em liberdade. Baseado nisso, em maio de 2016 o Tribunal de Justiça de São Paulo publicou a Resolução nº 740/2016, na qual determina a ampliação gradativa das audiências de custódia por todo o estado.

No caso de Luisa, vale a explicação de que, segundo ela, seu processo foi duplicado em outra vara, com as mesmas acusações, apenas para que houvesse chance de condenação. Por ter sido absolvida no primeiro, ela ganhou o direito de responder o segundo em liberdade sem qualquer medida restritiva.

A prisão provisória

Durante o período em que ficou presa, majoritariamente no 7º Departamento de Polícia de São Bernardo do Campo, a paulista conheceu o funcionamento da prisão de perto e se diz “treinada pra tudo”. Branca, graduada em Economia e funcionária pública há 21 anos – ela é, sem dúvidas, uma exceção no perfil da maioria das mulheres encarceradas no Brasil. Não à toa, mesmo após o período de cárcere, não perdeu seu cargo público.

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Luisa, diferentemente de todas as personagens, não se identifica como ex-detenta. As referências são sempre sobre “elas”, outras, um todo do qual não faz parte. – “as presas” – não possuíam educação ou higiene, condenou posturas e contou de sua participação dentro da organização.

As cicatrizes, é claro, ficam. Os olhares desconfiados, as fofocas escondidas e as puxadas de tapete – que a levaram a pular de um departamento para outro na Prefeitura em um constante declínio de cargos.

Sobre o período em que passou no cárcere, conta detalhes – por vezes até perigosos – sobre o cotidiano de lá sem medo. Desde a hegemonia do PCC (Primeiro Comando da Capital), passando pela conivência policial e até os hábitos de ordenação das presas.

Quando chegou, ficou no chamado “setor”, espécie de administração informal da cadeia. Ali, fazia o papel de enfermeira, responsável por fazer curativos e distribuir os remédios de outras internas. Mais tarde, quando se “cansou da função”, mudou-se de cela, também chamada de “barracão”, e terminou seus dias de cárcere com tranquilidade e sem trabalhar.

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“Pagava para que fizessem por mim”, conta, sem embaraço, sobre momentos em que ofereceu recompensas para para que outras meninas, com condições de vida menos favoráveis, realizassem suas obrigações. “Nessa hora, se você não pode contar com a família, não tem ninguém”, explica ao mencionar que seus pais levavam roupas, mantimentos e até itens encomendados por outras detentas.

Em seu último dia, fez as malas e levou absolutamente tudo o que era seu. “Não gostava de ninguém ‘delas’ e não deixei nada para trás”, esbravejou.

O recomeço

Já do lado de fora, com o intuito de juntar dinheiro para o batizado da neta, ela e a nora, Raíza, começaram a vender doces caseiros na rua. Foi assim que ela se reergueu e abriu uma empresa de festas. Seguindo como boa parte das egressas, ela é autônoma, ou seja, não tem um trabalho formalizado – pois, embora seu negócio esteja prosperando, ele ainda está na informalidade.

Enquanto isso, Silva, que sempre esteve envolvida na política municipal, saiu candidata vereadora pelo PRB – Partido Republicano Brasileiro, em São Caetano do Sul, mas não conseguiu se eleger – teve apenas um voto.

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Ao sonhar com a abertura de seu salão de beleza feminino gourmet – onde as clientes poderão arrumar o cabelo e as unhas “enquanto tomam um champanhe ou cerveja” – viaja nos planos e reconhece que é privilegiada, mas o pensamento é rompido ao questionar-se sobre o destino de todas as custodiadas que conheceu. “Muitas voltarão para o crime”, sentencia.

*Nome verdadeiro preservado.

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