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Professores que estão combatendo a violência nas escolas públicas

Desrespeito na sala de aula, xingamentos, agressões físicas… A educação está sendo derrotada? Ainda não! Conheça professores que estão fazendo a diferença.

Por Da Redação
19 out 2017, 16h24
 (Daniella Paoliello/Gabriel Marques/CLAUDIA)
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Tinha tudo para ser mais um dia difícil na conturbada rotina da Escola Municipal de Ensino Fundamental Professora Pequenina Calixto, em Paraty, no litoral do Rio de Janeiro. E foi. A professora de artes Carlota Galvão, 46 anos, orientava uma turma do 6º ano quando percebeu que um dos garotos filmava as meninas com o celular. Carlota pediu o aparelho, mas o jovem não entregou. “Se você me der o telefone agora, eu o devolvo ao final da aula. Do contrário, vou recolher e só entrego a algum responsável por você”, disse com firmeza.

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(Daniella Paoliello/Gabriel Marques/CLAUDIA)

O impasse estava criado. Na negativa do aluno ao pedido, ela teria de tomar uma atitude mais dura contra um menino que, apesar de ter apenas 13 anos, atuava para a quadrilha que controla o tráfico de drogas na região. Os colegas em volta passaram a ameaçar Carlota.

“Somos irmãos dos que cortaram a cabeça e vamos te pegar lá fora”, disseram. Faziam referência a um crime ocorrido na semana anterior, numa favela próxima. William de Azevedo, 30 anos, fora decapitado porque teria beijado a namorada do chefe de uma quadrilha. A cabeça acabou exibida como troféu pelas ruas e usada como bola de futebol.

Carlota argumentou que aquilo seria tolice. Estava ali para ajudá-los a construir uma vida melhor e esperava que eles aproveitassem a chance. Um dos meninos começou a defendê-la e, finalmente, o que iniciara o conflito entregou o celular.

No embate, a educadora se manteve calma. Mas, assim que o sinal tocou, ela desabou na sala dos professores. “Eu não tenho estrutura para isso’’, desabafou aos prantos a professora que tem 18 anos dedicados ao magistério. “Vivemos com medo, sob ameaça o tempo todo.”

O episódio aconteceu em março, na maior escola municipal de Paraty. Mas poderia ter sido em qualquer outra cidade. Diariamente, milhares de educadores passam por situações semelhantes. E muitas terminam de forma trágica, com sangue, como aconteceu com Márcia Friggi, na catarinense Indaial, no dia 21 de agosto.

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Após retirar da sala um estudante de 15 anos que a havia desrespeitado, foi atacada a socos e pontapés e jogada contra a parede. Publicada no Facebook, a foto do rosto ferido da educadora despertou o Brasil para uma realidade estarrecedora.

A Prova Brasil, aplicada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), mostra que, em 2015, o quadro era sombrio: 4 714 professores declararam ter sofrido algum tipo de atentado à vida, 22 692 foram ameaçados por estudantes e 132 244 (ou 51% dos entrevistados) presenciaram agressões físicas ou verbais entre alunos.

A invasão do ambiente escolar pela violência se revela também nos relatos de docentes que viram, em suas turmas, jovens embriagados (13 015 relatos), sob efeito de drogas ilícitas (29 737) e armados (12 078 com armas brancas e 2 365 portando armas de fogo).

Em setembro, o jornal Folha de S.Paulo publicou um levantamento baseado em 178 boletins de ocorrência registrados por educadores no primeiro semestre deste ano. Ele mostrou que o estado de São Paulo tem uma média diária de dois professores agredidos em sala de aula. Em ao menos um em cada quatro casos, o aluno é apontado como o agressor.

Mais do que um número do Inep, a situação da mestra de Paraty é o retrato da vida real. E os problemas na Pequenina Calixto refletem uma cidade que, apesar de ter só 40 mil habitantes, está entre as 50 mais violentas do Brasil, com índice de homicídios de 60,9 para cada 100 mil habitantes, conforme dados do Mapa da Violência de 2016.

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Se não bastasse estar instalada numa zona conflagrada pelo crime, essa escola viu, no início do ano, o quadro de pessoal reduzir-se em 50%, pois a prefeitura demitiu os servidores não concursados. Alunos sem aulas por falta de professores vagavam pelos pátios sem inspetores. Tornaram-se comuns as agressões entre estudantes, o recrutamento forçado de jovens pelo tráfico e as ameaças a docentes e funcionários. Carlota procurou ajuda.

Pedagogia da emergência

Convidada por uma colega, ela se uniu a um grupo de educadores formado pela Escola Comunitária Cirandas, projeto sem fins lucrativos que se dedica à melhoria da educação em Paraty. Lá, ela foi apresentada à pedagogia da emergência, abordagem baseada na antroposofia e na pedagogia Waldorf que trabalha com o resgate emocional de jovens expostos a situações de risco. “No início, eu ouvia o que os formadores ensinavam e achava tudo muito fofo”, brinca.

“Não acreditava que aquilo pudesse funcionar na minha turma.” Até que ela decidiu pôr em prática o que estava aprendendo. Carlota via potencial em um menino de 15 anos que cursa o 6º ano. O jovem, porém, tumultuava o ambiente e se valia do fato de pertencer às gangues para escapar de punições. “Os formadores me orientaram a transformá-lo em líder”, explica. “Ele precisava chamar a atenção. Assim que conseguiu, tudo mudou. Participava das aulas e parou com as ameaças.”

No dia 22 de agosto, o trabalho iniciado pela professora foi afetado por uma mudança radical na rotina. Com problemas estruturais no telhado, a Pequenina Calixto foi interditada pela Defesa Civil. Redistribuídos entre outras quatro escolas do município, muitos estudantes deixaram as aulas. “Um menino envolvido com uma gangue não pode aparecer em região dominada por grupos rivais.

A evasão cresceu muito.” Ela leciona agora em três endereços. As turmas, que eram de 30 estudantes, minguaram para oito ou dez. Ou seja, quando a escola voltar a funcionar, a professora terá que recomeçar o esforço.

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A abordagem tem na prevenção uma das medidas de contenção. Segundo a pedagoga Telma Vinha, doutora em psicologia, desenvolvimento humano e educação pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a situação se agrava quando se tenta impor algo que o aluno considera arbitrário. “A agressão ocorre quando o jovem é mandado para fora da sala. É possível evitar que a situação chegue a esse ponto.” Telma lista quatro passos importantes para a prevenção:

• Mudança no planejamento para a aula fazer sentido para o jovem. “O comportamento de ruptura acontece quando há desinteresse”, explica. “Se a aula leva em conta a realidade dele e é interessante, o aluno participa e causa menos problemas.”

• Criação de alternativas positivas à violência – a única forma de se manifestar que ele conhece. O protagonismo e a liderança, aprendidos em peças de teatro ou em debates, ensinam a substituir a agressividade por outras formas de expressão.

• Desenvolvimento de habilidades sociais e emocionais para ensinar a ser justo,
a respeitar e a ser respeitado. “O jovem precisa saber identificar, regular e expressar suas emoções de forma a não magoar os outros”, diz Telma. “É legítimo sentir raiva, o que não pode é tocar o outro.”

• Discutir com o grupo questões de convivência e elaborar regras diante de cada dificuldade. “Em assembleias quinzenais, por exemplo, pode-se discutir crises, combinar regras e avaliar como elas estão funcionando”, sugere.

Leia mais: Violência é considerada algo normal por crianças mais pobres, aponta estudo

Essas técnicas preventivas fazem parte da rotina de Joaquim Araújo, 40 anos, que há 20 dá aulas de artes em Fortaleza. Responsável por uma turma de ensino médio na Escola Estadual de ensino Fundamental e Médio Jocie Caminha de Menezes, Joaquim usa a mediação diariamente. “O conflito, em si, não é ruim, porque nos ensina a lidar com a adversidade”, explica Joaquim.

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(Daniella Paoliello/Gabriel Marques/CLAUDIA)

“Nós precisamos saber trabalhar isso para evitar que o caso termine em agressões.” Sempre que um problema surge, o professor para a aula e estabelece um fórum. Sentados em roda – formato que ele adota como padrão nas aulas –, começam o debate. Quem assistiu à briga narra o que viu. “Enquanto esfriam os ânimos, as partes envolvidas, sejam dois jovens ou o estudante e o professor, veem como os outros perceberam a atuação deles”, conta Joaquim.

Em seguida, os que não agiram bem têm a oportunidade de explicar seus pontos de vista. “Eles notam os exageros que cometeram ao ouvir os demais.” Segue, então, o momento das reparações, em que as partes se desculpam, sem que ninguém seja exposto a humilhação. E estabelecem-se acordos para evitar a repetição do problema.

Graças a esse modelo, Joaquim não precisa lidar mais com ataques. “Não é um mar de rosas. Às vezes os meninos chegam de cabeça quente porque a situação do entorno é difícil”, diz. A Jocie fica na região do bairro Bom Jardim, o mais truculento de Fortaleza – a capital mais violenta do Brasil, segundo o Atlas da Violência divulgado este ano pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), com taxa de 78,1 homicídios para cada 100 mil habitantes. “Não podemos fechar os olhos para essa realidade.

Os jovens precisam sentir que nos preocupamos com eles e queremos ajudá-los”, afirma. Além da mediação, Joaquim planeja as aulas em conjunto com a turma para integrar a vida deles ao currículo. Para isso, recorre às técnicas do Teatro do Oprimido, desenvolvido pelo teatrólogo Augusto Boal (morto em 2009). Episódios do cotidiano da comunidade são interpretados. “Eles sentem as diferentes emoções envolvidas em um fato, aprendem a analisar pontos de vista diversos, enriquecem a capacidade de sentir e de olhar para o outro.”

A experiência de Joaquim começou a ganhar adeptos. Outros docentes passaram a adotar a prática da mediação com apoio da direção da escola. Para quebrar o paradigma da linguagem violenta, as salas de aulas foram batizadas com palavras que expressam gentileza. “Temos a sala do amor, a da afetividade”, conta. “É um processo lento, muitos colegas ainda resistem, mas os gestores estão abertos à mudança.”

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Não é caso de polícia

Telma Vinha discorda das abordagens que tentam transferir a responsabilidade para a esfera da Segurança Pública. Solucionar a questão, Telma insiste, é papel da escola. “Não adianta instalar câmeras, detectores de metal, aumentar o policiamento”, afirma.

“Enquanto a escola não mudar institucionalmente, não vai funcionar bem.” Para a especialista, as transformações na sociedade tornaram as relações mais horizontais e diminuíram o poder da autoridade.

A escola, porém, continua brigando por tudo: a hora de chegar, a hora de ir ao banheiro, a cor da meia que está diferente do uniforme. “Isso desgasta a autoridade, e o aluno perde o respeito por tudo, inclusive pelas regras que realmente importam”, defende Telma.

O docente, porém, não está preparado, não recebe formação nem respaldo para lidar com o conflito. “Ele fica preso a procedimentos antigos, como mandar para a sala da coordenação, suspender, expulsar”, diz Telma.

“Sem preparo, o professor acaba adoecendo.” Um levantamento da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo – maior rede do país, com 220 mil docentes – revelou que 136 mil afastamentos em 2015 por questões de saúde foram concedidos – 27,8% das licenças ocorreram por transtornos mentais, stress e depressão.

A vida é comunitária

Na periferia de Belo Horizonte, a Escola Municipal de Ensino Fundamental Anne Frank envolve seus 797 estudantes com a história e a rotina do Conjunto Confisco, onde está instalada. “Aqui sempre foi o lugar das assembleias do bairro, dos velórios, das missas”, conta a diretora Sandra Mara de Oliveira Vicente, 53 anos. “Fazemos questão de manter essa ligação porque ela é fundamental para o sucesso da escola.” Sandra, que chegou à Anne Frank há 26 anos, é uma educadora ativa.

Circula o tempo todo, prova a merenda, checa o estado dos equipamentos, conversa com a equipe, ouve o que os estudantes têm a dizer. “Temos conflitos, eles são parte da educação. O professor faz a mediação para construir, com toda a turma, uma solução.” A unidade lida com crianças em situação de risco. Algumas estão envolvidas com o crime, outras são vítimas de abuso.

“Tentamos acolher os alunos e suas famílias porque a escola precisa fazer diferença na vida deles, ser o lugar onde aprendem e se sentem seguros.” Para fortalecer seu papel na comunidade, a Anne Frank participa de uma rede de representantes do poder público no bairro, que reúne o batalhão da Polícia Militar, a Defensoria Pública, o Centro de Saúde Municipal e o Centro Cultural. “Em reuniões mensais, propomos atividades culturais e soluções para problemas do território”, explica Sandra.

Em sala de aula, projetos integram a realidade dos jovens aos conteúdos acadêmicos. Um deles, conduzido em 2016 por Moacir Fagundes Freitas, que leciona história, recebeu o Prêmio Nacional de Educação em Direitos Humanos, concedido pelo Ministério da Educação e pela Organização de Estados Ibero-Americanos. Intitulado Entre o Diário e a HQ: Estudantes Construindo a História de um Bairro, o projeto levou o 7º ano a pesquisar as origens do Confisco e a recontá-las no formato de história em quadrinhos. “Alguns jovens tinham vergonha de morar aqui”, conta Freitas.

“Iniciamos o projeto com a leitura de O Diário de Anne Frank, porque a gente trabalha com o ideário dela, que é a luta contra a violência, o preconceito, a discriminação. O nosso bairro não deixa de ser uma espécie de gueto”, explica.

Os alunos fizeram uma pesquisa de opinião entre moradores para saber o que eles pensavam sobre o lugar. Também identificaram dez mulheres que haviam participado da fundação do bairro e as entrevistaram. “A percepção deles foi se modificando”, relata o professor. “Quando procurávamos notícias que os jornais publicam sobre o Confisco, eles já estavam se indignando com a forma como o bairro deles era retratado na mídia.”

Na hora de construir a história em quadrinhos, Freitas conseguiu o apoio de dois quadrinhistas, que deram oficinas de desenho. Além do gibi, a turma fotografou o bairro. Das 700 imagens registradas, o professor escolheu 50 e montou a exposição Confisco pelo Confisco. A mostra ganhou um edital da Universidade Federal de Minas Gerais e foi exibida ao público no Circuito Cultural Praça da Liberdade, um dos pontos turísticos mais nobres de Belo Horizonte.

“Não vou esquecer a alegria dos estudantes ao ver seus nomes no painel”, relata o mestre. Anne Frank está livre de agressões? “Claro que não. Outro dia, um menino agrediu uma colega de sala e eu tive de mediar o conflito”, recorda o professor. “Educação é um processo contínuo, não acaba nunca. Os desafios vão e voltam. Sabemos disso e aprendemos a dialogar sempre.”

Leia mais: Tudo sobre Violência Urbana

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