A pandemia deixará o maior luto da nossa história
A Covid-19 é a principal causa de morte neste ano no Brasil. Com os ritos fúnebres proibidos, precisaremos descobrir uma forma de curar essa ferida coletiva
Bastou um toque do telefone às 2 horas e 12 minutos do dia 19 de abril para Ana Paula Dourado, 42 anos, atendê-lo. Era um pedido para o imediato comparecimento ao hospital. Sabendo que apenas a notícia da morte não poderia ser dada à distância, ela se levantou, passou uma camisa, uma calça e, finalmente, o jaleco branco do companheiro, o técnico de enfermagem intensivista Thiago Andrade da Silva, 35 anos. Ele estava internado havia duas semanas na UTI do hospital público de Jundiaí (SP) em que atendia infectados pelo novo coronavírus. As peças levadas por Ana Paula nunca seriam usadas. Não há troca de roupas para os mortos pela Covid-19. Assim que a morte é constatada pelos médicos, o corpo é guardado em um saco até ser depositado em um caixão lacrado, incinerado ou enterrado em uma cerimônia apressada.
Desde a chegada da pandemia ao Brasil, esse protocolo está na mente de todos os que temem pela própria vida e de seus entes queridos. Assim se deu com as milhares de vítimas fatais da doença – eram 34 021 até 4 de junho –, principal razão de morte neste ano no país. Engrossam a conta os casos suspeitos, que, para evitar riscos de contaminação, também precisam seguir o mesmo árido cerimonial. As pessoas mortas deixam seus amores em um luto que começa agora e ainda não sabemos quanto tempo irá durar nem como irá nos abater. Na semana seguinte à morte de Thiago, fazia um ano que Ana Paula havia perdido a mãe. “Eu apenas começava a me reerguer de um luto que me abalou profundamente, pois a morte dela me pegou de surpresa. E aí tudo se repetiu quando ele se foi”, diz ela, que é mãe de uma menina de 12 anos. O profissional de saúde – um dentre as centenas que morreram pela Covid-19 no Brasil até o fechamento desta edição – deixou ainda três irmãos, os pais e amigos (alguns cuidaram dele na UTI).
Estima-se que cada morte afete até dez pessoas. Sendo assim, a pandemia formará um rastro de milhões de enlutados no mundo. Agrava a questão o fato de as despedidas como as conhecemos estarem proibidas para evitar a disseminação da doença. “O suporte social e de afeto que há nos encontros seguintes à morte é importante para que se consiga dar conta da perda. Ao mesmo tempo, não há processo de adeus como o que se teria numa visita ao hospital”, explica a médica geriatra Ana Claudia Quintana, especialista em cuidados paliativos. O luto é, em geral, menos doloroso quando há o pleno entendimento de que a morte encerra um ciclo.
Após décadas de distanciamento do pai, com quem tinha uma relação conturbada, Marcella Sanches, 36 anos, o perdeu pela Covid-19 no início de maio. Acamado há cinco anos, após uma série de acidentes vasculares cerebrais, João Plinio Paes de Barros Júnior, 67 anos, não estava com suspeita de infecção pelo novo coronavírus quando teve diarreia (sintoma menos comum da doença). Foi então internado em uma ala comum em Santos (SP), como acontecia com frequência, dada a fragilidade de sua saúde. Sem a exigência de isolamento, a filha pôde visitá-lo. “Apesar da nossa relação complicada, eu quis estar com ele naquele momento. Por duas vezes, ele segurou a minha mão e me agradeceu; nada semelhante havia acontecido durante todo aquele tempo”, conta Marcella. Ele morreu dois dias depois de receber o diagnóstico de Covid-19, quando Marcella soube que também estava infectada. “Eu não tinha ideia de como a doença se desenvolveria, já que sou asmática, mas estava tranquila por entender que eu e meu pai tínhamos fechado nossa história da melhor forma, após tanto tempo buscando o porquê de nossa relação não dar certo”, diz ela, que já está recuperada.
10 pessoas são afetadas diretamente por uma morte – em uma pandemia, são milhões de enlutados
Para mitigar os efeitos negativos que a falta de um adeus, como o que Marcella teve, pode gerar – dificuldade de aceitação e sofrimento prolongado, por exemplo –, tradições são reinventadas. Um dos reflexos mais evidentes nesse sentido é a substituição das reuniões presenciais por celebrações online, que, em alguma medida, ajudam a marcar o luto. “Uma vez que os principais símbolos de morte, como os velórios, estão ausentes, precisamos buscar a concretude do que aconteceu de outras formas e não passar sem isso”, diz Tom Almeida, fundador do movimento inFinito, que discute morte e luto e, neste momento de pandemia, tem uma plataforma para auxiliar na realização desse tipo de reunião online. Também fechados para conter a disseminação do novo coronavírus, locais de culto oferecem celebrações online. “Os rituais para a morte existem em todas as culturas, porque eles auxiliam a família e a comunidade a se reorganizar. Na ausência deles, sentimos que estamos em falta com a pessoa que morre”, afirma a professora Maria Helena Franco, coordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre Luto da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Para não pular essa etapa, tão importante para a superação individual, as adaptações dos rituais são necessárias.
Ainda que a atual situação não tenha paralelos recentes, os ritos fúnebres já passaram por transformações relevantes ao longo da história. Durante a pandemia da Peste Negra que assolou a Europa, ocasionada pelas infecções bubônica e pneumônica, no século 14, época marcada pela cultura cristã católica, já não havia padres para realizar todos os funerais. Coube à população, então, criar os próprios ritos. “O problema é que, naquele momento, com tantas mortes ao mesmo tempo, elas acabaram perdendo significado, gerando uma espécie de crise existencial. Agora, voltamos a ter milhares de mortes e corremos esse risco”, diz a americana Brandy Schillace, editora da revista científica Medical Humanities e historiadora sobre a morte. Como forma de homenagear quem parte e para que as mortes não sejam ignoradas, memoriais online buscam retratar as histórias dessas pessoas – é o caso do projeto Inumeráveis, criado por Edson Pavoni com apoio de colaboradores voluntários, que faz biografias dos mortos com base nos relatos de pessoas próximas deles.
Na ausência dos rituais de luto, parece que estamos em falta com a pessoa que morre”
Maria Helena Franco, professora da PUC-SP
Embora as interações virtuais sejam capazes de mostrar que não estamos sozinhos, elas são insuficientes para a vivência comunal do ritual de luto, o que, para muitas culturas, é seminal. É o caso do axexê, rito fúnebre de religiões afrobrasileiras, como candomblé e umbanda, em que danças e música são fundamentais. “Por outros motivos, como o fato de uma cerimônia bastante tradicional ser cara, já que é preciso fazer oferendas aos orixás, há quem adie a realização por meses sem prejuízo para a homenagem ao morto. Isso poderia acontecer agora”, explica o sociólogo Reginaldo Prandi, professor emérito do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em tradições religiosas de luto. Não há uma regra sobre se os corpos precisam ser enterrados ou cremados, cabendo a cada terreiro decidir. Por isso, já foi pedido pela Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro-Ameríndia (AFA), de Salvador, que, caso a cremação se torne regra, os seguidores da religião possam ser exceção, ainda que os ritos não sigam em toda sua completude.
Também faz parte do entendimento do luto a proximidade com o corpo do morto, e esse pilar ainda se mantém indissociável da relação com a morte em muitas sociedades. Uma das tradições indígenas de luto mais conhecidas é a do povo Wari’, de Rondônia, que, até a primeira metade do século passado, tinha o hábito de comer os seus mortos. Como forma de mostrar aos parentes que o cadáver não era mais gente, pessoas da comunidade comiam pedaços dele até a família ser capaz de fazer o mesmo. Esse costume não é mais praticado, já que os Wari’ agora são predominantemente cristãos evangélicos, mas eles ainda choram pelas mortes de modo particular e mantêm contato com o corpo. “Chegam a deitar sobre o cadáver, mostrando que estão ali em sofrimento. Também entre os Wari’ e outros povos indígenas a proximidade com o doente é imprescindível; o parente não pode deixar quem padece sozinho”, afirma a antropóloga Aparecida Vilaça, professora do Museu Nacional e autora do livro Paletó e Eu: Memórias do Meu Pai Indígena (Todavia). É evidente que o comportamento oferece grande risco de exposição ao novo coronavírus, mas, ao mesmo tempo, não tê-lo significaria não honrar o morto e não passar por esse adeus de forma tranquila.
Como os principais símbolos de morte estão ausentes, precisamos buscar a concretude do que aconteceu de outras formas”
Tom Almeida, fundador do inFinito
Em comparação com a população das cidades, as precauções para evitar a disseminação do novo coronavírus representam uma ruptura ainda maior para os indígenas aldeados, tanto por seu modo de vida comunitário quanto pelo fato de que tratam diretamente dos doentes. Até 4 de junho, já haviam sido contabilizados, pela Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, 1 737 casos de indígenas aldeados infectados e 70 mortes, grande parte delas na região do Alto Solimões, no Amazonas. As milhares de mortes pela Covid-19 em todo o país não justificam que a situação indígena seja minimizada. Dadas a menor exposição a infecções respiratórias em relação à vida urbana e a evidente falta de estrutura hospitalar, esses povos correm enorme risco. Se a pandemia não for controlada, o impacto nessas populações pode ser semelhante ao dos períodos de conquista de territórios, em que doenças até então desconhecidas por eles (como gripe e varíola) dizimaram diversos grupos. “Se morre um líder indígena idoso para a pandemia, todo um conhecimento que é importante para a sociedade se perde”, diz Aparecida. Além do sofrimento para famílias e comunidades, as mortes pela Covid-19 representam uma perda para nossa cultura e geram um luto coletivo – capaz de abater mesmo quem não teve mortes próximas.
Não estamos todos no mesmo barco
Três meses após as primeiras mortes, é possível dizer que, embora no Brasil existam vítimas da Covid-19 de todas as raças e classes, a maioria são pessoas pobres e pretas. Os primeiros casos de infecção foram importados do exterior e tratados em hospitais privados. Com a propagação da doença, a mortalidade aumentou pelo interior do país e pelas periferias das capitais. Os bairros mais pobres de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Maceió e de outras grandes cidades concentram a maior parte das mortes pela Covid-19. Isso não quer dizer que os moradores deem menos valor à própria vida e ignorem os riscos. Paulo Cesar Silva, filho de 35 anos de Maria de Lourdes Silva, 55, alertava a mãe, diabética, de que ela precisava ficar em casa, em Capão Redondo, na periferia da capital paulista, e usar máscara para evitar o novo coronavírus. “A última vez que o vi foi quando eu fiz uma canja para ele; depois foi internado e não resistiu. Queria tirar os meses dessa pandemia do calendário”, diz ela, que não pôde ir ao enterro.
Esse fenômeno é, em certa medida, previsível. São geralmente essas as áreas com menor expectativa de vida, devido a fatores como acesso precário à saúde, alimentação deficitária e piores condições sanitárias. Pesa o fato de que, durante a pandemia, é mais complexo para o moradores desses locais seguir as regras de isolamento social. Devido à proximidade das casas e ao maior número de pessoas vivendo em limitados metros quadrados, os riscos de transmissão são amplificados. A informalidade faz com que precisem sair para trabalhar, já que o auxílio emergencial disponibilizado pelo governo federal para a categoria é insuficiente. Também não é raro que os que possuem trabalho fixo façam parte dos serviços considerados essenciais. Ainda que mantenham distância nas suas casas e comunidades, para chegar até o emprego passam horas em transportes públicos lotados. As orientações contraditórias entre os governos estaduais e federal sobre a efetividade do distanciamento social também entram na conta. “É muito cruel falar que os moradores de favelas e periferias são culpados pelas próprias mortes por não aderirem à quarentena. É a lógica de sempre, de culpá-los por uma situação de que são vítimas, como por terem mais mortes violentas”, afirma o professor Tiaraju D’Andrea, coordenador do Centro de Estudos Periféricos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
A última vez que o vi foi quando eu fiz uma canja para ele; depois foi internado e não resistiu. Queria tirar os meses dessa pandemia do calendário”
Maria de Lourdes Silva, de São Paulo
Por razões semelhantes a essas, as pessoas negras também morrem mais cedo. No caso da Covid-19, o Ministério da Saúde aponta que, desde o dia 18 de maio, os pretos e pardos passaram a ser a maioria das vítimas, 54,8%. A proporção é similar à composição da população brasileira, mas chama a atenção que os negros correspondam à minoria entre os internados com síndrome respiratória aguda grave – apenas 7% dos hospitalizados são pretos Isso demonstra que há menos acesso a tratamentos de saúde de qualidade para essa parcela da população. Na cidade de São Paulo, segundo medição da prefeitura divulgada no início de maio, pessoas negras têm 62% mais riscos de morrer de Covid-19 do que brancas. A taxa de mortalidade é maior tanto entre pretos quanto pardos.
Essa situação não é particular do Brasil. Nessa pandemia, as desigualdades em outros países também têm sido expostas. No final de abril, virou notícia o fato de que quase 100% dos óbitos pela Covid-19 em Richmond, capital do estado americano da Virgínia, serem de negros, que representam 48% da população do estado. Assim como no Brasil, o desequilíbrio em relação à saúde entre brancos e negros nos Estados Unidos, líder da pandemia em óbitos, é acentuado. “Isso diz muito sobre a vida e precisamos nos questionar o tempo todo por que um vírus atinge pessoas negras de forma tão dura”, diz a historiadora americana Kami Fletcher, presidente do Collective for Radical Death Studies, que reúne acadêmicos para entender como grupos minorizados são afetados e lidam com a morte. Esse perfil das mortes evoca o conceito de necropolítica, criado pelo intelectual camaronês Achille Mbembe, que se refere a como o Estado decide quais vidas valem mais ou menos e quem pode morrer. Não seria exagero afirmar que as maiores vítimas do novo coronavírus são, significativamente, mais um resultado das desigualdades do mundo e que o luto será especialmente feroz para essa população.
Ele se torna ainda mais dolorido quando nos confrontamos com a fragilidade do acesso ao atendimento – quantos vivem a angústia de saber que um familiar não recebeu tudo o que precisava, como um respirador? Também é duro quando os mortos não são devidamente respeitados. Para identificar o corpo da irmã, Daniele Machado da Costa, 41 anos, técnica de enfermagem morta em 27 de abril pela Covid-19, Tatiane da Costa, 27 anos, diz ter precisado entrar sem proteção em um contêiner frigorífico instalado do lado de fora do Hospital Regional Zilda Arns Neumann, em Volta Redonda (RJ). “Encontrei o corpo dela em um saco aberto, com vários outros ao redor, todos no chão. Foi muito rápido, mas uma situação horrível”, conta. Ela afirma não ter recebido boletins sobre o estado da irmã nem mesmo a imediata notícia da morte. Tatiane passou os dias subsequentes se recuperando da doença. A direção do hospital afirma, via assessoria de imprensa da Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro, que os corpos são trazidos por funcionários para identificação em uma área reservada da instituição e que isso teria sido feito na ocasião. Desde o final de abril, também mantém uma central telefônica para informar parentes.
Encontrei o corpo da minha irmã em um saco aberto no chão de contêiner frigorífico com vários outros mortos”
Tatiane da Costa, de Nova Iguaçu (RJ)
A família de Tatiane é de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, um dos municípios com mais mortes pela doença no estado. Tanto Daniele quanto Thiago, citado no início da reportagem, eram negros. Em vida, o intensivista questionava a desigualdade de oportunidades na saúde, que percebia ter pela cor de sua pele. As mortes pelo novo coronavírus não guardam apenas histórias de indivíduos; também expressam uma série de fragilidades sociais que precisaremos desfazer no luto pela pandemia.