Mulheres indígenas em defesa das florestas e dos povos originários
Três mil mulheres de 115 etnias se reuniram em Brasília para marchar pelos direitos de seus povos e pela preservação ambiental
O mês de agosto do ano passado marcou a primeira Marcha das Mulheres Indígenas do país, quando mais de 3 mil mulheres de 115 etnias, das cerca de 300 mapeadas nacionalmente, se uniram para discutir presencialmente as causas que as afligem. E são muitas as questões. Em comum, a defesa da conservação da natureza e a proteção dos povos originários. Originalmente publicados na edição de outubro de 2019 de CLAUDIA, os relatos ouvidos na Marcha continuam atuais – neste Dia da Luta dos Povos Indígenas, entenda o que continuam a reivindicar essas mulheres.
Quem passava por Brasília naquele momento presenciou cenas atípicas no epicentro do poder. Em vez dos engravatados, circulavam pelos arredores do Congresso Nacional mulheres com adereços de cabeça e colares. Dava para ouvir o som dos cantos indígenas e observar as pinturas de jenipapo e urucum que coloriam a pele das lideranças indígenas do país.
Apesar do pioneirismo do evento, as batalhas começaram há muito. Não é de hoje que os indígenas estão desamparados, mas ameaças ao direito à terra e o aumento da violência reforçaram a necessidade da mobilização. Algumas das participantes nunca tinham saído de suas comunidades. Enfrentaram dias em travessias de barco e ônibus. Para outras, o desafio foi ainda maior.
No final de julho, sem apoio de nenhum órgão público, os guerreiros mundurukus fizeram uma expedição a pé de cerca de 100 quilômetros para conter a ação ilegal de madeireiros e palmiteiros. Eles encontraram árvores cortadas dentro da Terra Indígena Sawré Muybu, no sudoeste do Pará. Isso explica a baixa no número de representantes dessa que é uma das maiores etnias do Brasil, com cerca de 14 mil pessoas. Os recursos destinados para a viagem até o local da marcha se esgotaram na operação. “Estamos em poucas, mas fizemos questão de vir para dar o recado”, diz Alessandra Korap, 35 anos.
Ela é importante articuladora e liderança para o povo munduruku. Tem papel fundamental na luta pelo território, bem como na defesa ampla dos direitos dos povos indígenas. Entre os enfrentamentos, denuncia a ação da indústria de mineração e dos garimpeiros ilegais. A exploração despeja rejeitos nas águas e, consequentemente, contamina e mata os peixes do Rio Tapajós, que alimentam os mundurukus. O Rio Jamanxim, que serviu de fonte para matarem a sede durante a expedição, também está contaminado. Ataques desse tipo têm aumentado em diversas regiões.
Apenas nos nove primeiros meses de 2019, cresceu 40% o número de invasões registradas em terras indígenas em comparação ao ano passado inteiro – 19 estados foram atingidos, de acordo com números do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). “Hoje, na aldeia, encontro igarapé, animais, mel, remédios naturais. Quando o branco chega, explora e vai embora. E nós ficamos ali para sofrer com as consequências do garimpo, da mineração, das hidrelétricas, da soja”, explica Alessandra, que relembra o dever do Estado de assegurar a terra aos indígenas.
A Constituição de 1988 estabelece o direito desses povos ao uso do solo pertencente à União. Atualmente, as terras indígenas representam cerca de 13% do território brasileiro, a maior parte delas na Amazônia. Apesar da garantia constitucional, o presidente Jair Bolsonaro já afirmou em declarações oficiais que não pretende homologar novos territórios. Nessas áreas, que deveriam ser preservadas e protegidas, moram 500 mil pessoas, conforme dados do último Censo, que é antigo e data de 2010. No total, há cerca de 900 mil indígenas no Brasil.
Embates internos
Nessa população, a movimentação feminina se tornou mais vigorosa nos últimos anos. A decisão das mulheres de se reunirem na capital federal é estratégica. “Mostra ao Estado que luta se faz com a união dessas guerreiras, das vozes, das cores. Queremos preservar os territórios, o útero da mãe Terra”, ressaltou na ocasião a estudante de serviço social Nyg Kuaitá, da tribo kaingang.
Nas aldeias, cabe à mulher manter vivas as tradições indígenas, segundo sua cultura. Elas ficam nas comunidades, cuidam das crianças, se responsabilizam pela comida, o que nem sempre é valorizado. É o que relata Edilena Krikati, 37 anos, do sul do Maranhão. “Somos guerreiras no dia a dia, mas isso não tem tanta visibilidade, não levam em consideração”, afirma.
Para ela, ser mulher e indígena no Brasil é muito difícil. “Temos os tabus nos nossos territórios e também sofremos com o preconceito e a discriminação da sociedade fora deles”, explica. Ela encontra dificuldades semelhantes às das não indígenas quando se vê em postos de liderança. “Já estamos falando de questões dos nossos povos, uma realidade que não é a de todos. E ainda sinto esse desafio de ser uma mulher líder e estar nos grandes espaços de discussão.”
A representatividade feminina indígena é inadiável. Auricélia Arapiuns, 33 anos, é vice-coordenadora do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns, na região do Baixo Tapajós. O conselho representa 13 povos, 70 aldeias indígenas em 19 territórios. Ela tem um posto de destaque que lhe permite assistir de perto ao enfraquecimento da predominância masculina.
“São as mulheres e os jovens que estão assumindo as frentes nos conflitos por direitos”, afirma. Isso também reverbera nas esferas de decisão política do país. Desde a redemocratização, foi apenas nas últimas eleições, em 2018, que vimos a primeira mulher indígena ser eleita para o Congresso. O posto é de Joênia Wapichana, deputada federal por Roraima.
Território e segurança
Vozes ativas em cargos de decisão poderiam mudar o cenário para essa população. O reconhecimento dos direitos desses povos garantiria a eles não só a manutenção de suas culturas mas também a segurança física. Afinal, em 2018, os assassinatos de indígenas aumentaram 20% em relação ao ano anterior, conforme estudo do Cimi. Célia Xakriabá, 29 anos, professora indígena dos xakriabá, a primeira de seu povo a concluir um mestrado, na Universidade Federal de Minas Gerais, teme a violência.
“Estamos fazendo uma denúncia contra o genocídio, o etnocídio e o ecocídio. A defesa da terra é importante, pois temos uma conexão com o nosso território. A nossa existência depende da mãe natureza; ela precisa estar saudável. Por isso, somos os guardiões da floresta”, afirma.
Célia tem muito em comum com Watatakalu Yawalapiti, 39 anos. Liderança no Xingu, ela também subverteu expectativas dentro da comunidade. “Eu me casei por amor, o que foi considerado um enfrentamento”, lembra ela, que se insurgiu contra a tradição dos casamentos arranjados. Hoje, virou inspiração para outras mulheres de seu território.
As duas se encontram na luta, que vai muito além dos encontros organizados, como a marcha. Permanecem na resistência, cada uma à sua maneira e em seu espaço. Juntas, são muitas; vivem espalhadas, mas atuam na mesma frente. “A luta feminina é por toda a humanidade. Não apenas pelas nossas causas, mas pela vida de todos. Estamos aqui em prol dos direitos de todos”, finaliza.