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“Movimento pela Mulher”: Corrida em São Paulo luta pelo fim da violência de gênero

"A gente trabalha tanto com isso que parece que está acontecendo com você, parece que o tapa na cara foi na sua, que quem está com medo de ser perseguida é você," disse a promotora Maria Gabriela Manssur, uma das organizadoras do projeto

Por Débora Stevaux (colaboradora)
Atualizado em 12 abr 2024, 09h18 - Publicado em 18 mar 2016, 20h16
Divulgação/Movimento Pela Mulher
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Segundo o Mapa da Violência Contra a Mulher, a cada hora e meia, pode-se ouvir um grito agudo, seja ecoando pela rua, casa do vizinho, laboratório da faculdade ou até mesmo pela própria casa. Esse grito, que soa como um alarme mórbido vem apenas para nos lembrar que no Brasil, não se nasce mulher, morre-se. Entre os anos de 2001 e 2011, estima-se que 50 mil mulheres tiveram suas vidas interrompidas apenas pelos simples fato de serem reconhecidas socialmente como pertencentes ao gênero feminino – isso torna o nosso país o quinto que mais mata mulheres em nível mundial. 

Em 2016, a Lei Maria da Penha completou uma década de existência, e embora seja considerada uma das leis mais modernas do Brasil, responsável por punir aqueles que violentam mulheres, ainda há um longo caminho pela frente. É no pique de percorrer essa estrada rumo à igualdade de gênero que a promotora de justiça Dra. Maria Gabriela Manssur – há duas décadas trabalhando pelo acesso das mulheres violentadas à justiça – está organizando a 2º edição da corrida  “Movimento pela Mulher”. Muito mais do que uma simples evento esportivo, o principal objetivo do projeto é levar a todos a reflexão sobre a violência contra a mulher. A largada será dada no dia 20 de março, domingo, às 7h da manhã, e parte do valor arrecadado será destinado à organizações responsáveis por ajudar vítimas que já sentiram na pele a dor de ser mulher. Vamos juntas?

Divulgação/Movimento Pela Mulher
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CLAUDIA: A lei Maria da Penha completa em 2016 dez anos que entrou em vigor. O que você acha que mudou para melhor de uma década pra cá e o que você acredita que permaneceu estagnado?

Dra. Maria Gabriela Manssur: Acho que muita coisa melhorou com a Lei Maria da Penha. Trabalhei como promotora em defesa das mulheres antes e depois da Lei. Acredito que uma prova disso seja a visibilidade que a violência doméstica ganhou depois da aprovação. A ela abriu as portas da violência que antes era tratada entre quatro paredes. Outro fator que merece ser citado é o empoderamento das mulheres depois da possibilidade do acesso à justiça, porque a mulher precisa se empoderar para ter coragem de denunciar algo que ainda é tão normalizado na nossa sociedade. A  medida prevê uma proteção integral à vítima, que vai além do processo criminal. Ela prevê a assistência social e articula uma rede social que assegura a defesa da mulher. 

Acredito que hoje as mulheres denunciem mais porque há um incentivo para que elas procurem ajuda legal, mas isso não é capaz de diminuir a violência contra elas, mesmo que a Lei Maria da Penha seja considerada uma das mais modernas do Brasil. Um dos nossos maiores desafios é a necessidade de investimentos para que o aparato jurídico a acompanhe. Outro desafio histórico, e esse não depende de investimento, e talvez este seja maior que o anterior, para fazer valer a palavra da mulher é preciso conscientização, porque a nossa palavra apenas por ser nossa é sempre colocada em dúvida. É por isso que a relação entre homens e mulheres é de desequilíbrio, e isso por si só já justifica as agressões para os agressores, mas esta precisa ser colocada urgentemente em equilíbrio.  

Como você acredita que o esporte pode ser uma forma de empoderar mulheres?

O esporte traz muitas coisas boas para o aspecto pessoal, é por isso que muitas mulheres começam a praticá-lo por questões de emagrecimento e saúde. Mas o esporte também clareia objetivos, cria pequenas metas, e é justamente isso que é capaz de empoderá-las e tornando-as cada vez mais forte, não apenas fisicamente. É uma sensação incrível, você passa a sentir um bem estar indescritível, sentir-se valorizada por si mesma e pelas pessoas à sua volta. E essa sensação é trazida tanto para a vida pessoal, quanto para a pública. Porque você passa a pensar que se consegue enfrentar 30 minutos de corrida, também é capaz de enfrentar uma situação de violência sem ser submissa. O esporte faz com que as pessoas, por exigir um estilo de vida minimamente saudável, se afastem dos fatores de risco que podem ocasionar um caso de violência, como as drogas, a bebida e a impulsividade. Indiretamente, o esporte é colocado como uma medida preventiva da violência doméstica, e é por isso que nós também tentamos inserir os homens no projeto. 

A gente trabalha tanto com isso que parece que está acontecendo com você, parece que o tapa na cara foi na sua, que quem está com medo de ser perseguida é você. Por isso que é muito importante para quem trabalha com esse tipo de crime, ter uma mente sã e um corpo saudável. É por isso que a gente quer democratizar o esporte para que todas as mulheres tenham acesso a algum tipo de atividade física. 

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No dia 20 de março, vai acontecer  a 2ª edição da Corrida Movimento pela Mulher. Quais foram os maiores desafios e as maiores conquistas do projeto até agora?

Um dos maiores desafios do meu projeto conseguir conscientizar empresas patrocinadoras e apoiadoras a olharem para uma mulher não só como um produto, mas como uma causa social e que isso também é muito importante para a imagem dela no mercado. Outro grande desafio é encontrar uma empresa que abrace a sua ideia, que entenda que aquilo é por uma causa social importantíssima. A corrida só consegue ser realizada através de doações, como água, isotônicos, som, grades e com a participação de voluntários, e todos nós sabemos que tudo isso tem um custo alto. Por isso a gente trabalha para convencer um maior número de empresas e órgãos públicos para conseguir fazer essa corrida com um menor custo e conseguir arrecadar uma grande quantidade de donativos para as ONGs. As doações funcionam como uma forma de incentivo destinada a essas organizações para que realizem cada vez mais projetos para combater a violência de gênero e empoderar mulheres. 

A minha maior conquista foi ter vencido o maior desafio, ter conseguido mostrar às empresas a importância dessa grande causa social. Um exemplo disso foi a Latin Sports que me apoiou. Mas mesmo que seja uma corrida social, não deixa de ser uma corrida técnica. Na primeira edição, participaram 2300 pessoas, o que foi muito simbólico para nós. Nesta edição esperamos esta mesma faixa de público, para que as pessoas possam correr com qualidade. A união de esforços foi a minha maior corrida. 

Os assassinatos de mulheres negras são mais do que o dobro de brancas no Brasil. Porque ainda existe esse abismo entre a violência sofrida entre as mulheres negras e brancas? Você acredita ser um exemplo de que ainda estamos em negação com as questões raciais? 

A mulher negra sofre dupla discriminação, primeiro por ser mulher e segundo por ser negra. Infelizmente nós vivemos num país que ainda há um preconceito latente contra os negros em geral. É muito triste dizer, mas no Brasil ainda há traços muito bem delineados de racismo.  A Taís Araújo e a Maria Júlia Coutinho são exemplos de pessoas públicas que sofreram preconceito. Essas mulheres, pelo simples fato de existirem, sofrem dupla violência.  

Por outro lado, eu acredito que as mulheres negras estão começando a conquistar espaço no campo acadêmico, financeiro e social, o que gera uma insatisfação por parte tanto dos racistas, quanto de seus companheiros. Porque essa violência se sustenta na dependência financeira e psicológica que as mulheres têm em relação aos seus parceiros, e quando elas contestam ou apresentam condições para romper com a opressão, eles se revoltam por perder o poder e a dominação garantido a eles por séculos. Essa é uma das causas mais comuns da violência contra a mulher porque está inerente à cultura patriarcal em que vivemos. E isso tem que mudar!

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Qual foi a declaração mais emocionante que você já recebeu de uma participante da corrida? 

Com certeza foi a história da Neide Santos, que acabou se tornando minha amiga. A Neide é de Capão Redondo e além de ser uma líder comunitária, está à frente do Projeto Vida Corrida. A história dela é muito inspiradora, além de ter sofrido violência de gênero quando ainda era uma criança, a Neide perdeu um filho e o marido na comunidade em que ela trabalha. Foi assim que ela descobriu no esporte uma maneira de enfrentar essas perdas e se sentir mais feliz. Foi assim através da corrida que a Neide conseguiu se empoderar, e fazer com que outras mulheres não só se interessassem em praticar esportes, como também passassem a ter mais voz na comunidade. 

Eu até me emociono quando falo isso, mas fico muito feliz de saber que eu consegui plantar uma semente no coração delas, a semente de que elas podem confiar na Justiça e quebrar o silêncio. Eu a conheci numa palestra na Universidade de São Paulo, e foi aí que eu percebi que enquanto eu passava essa mensagem para mulheres de bairros nobres, ela fazia exatamente a mesma coisa na periferia. A partir desse momento, nós começamos a nos reunir na USP e fizemos quatro treinões, dois na cidade universitária. É por isso que o projeto “Movimento pela Mulher” é uma construção conjunta de mais ou menos 3 anos. 

Eu gosto muito de contar sobre a Neide porque eu percebo que, com a nossa amizade, a gente conseguiu romper a ponte da desigualdade social, e é por termos rompido que vamos juntas. A Déborah Aquino também foi uma amiga minha que eu conheci na corrida. Foi com a ajuda do exercício físico que ela conseguiu amenizar os danos da quimioterapia e vencer o câncer de mama. A Paula Narvaez também é uma pessoa muito importante na minha vida que eu só conheci porque me interessei pela prática esportiva. Juntas, eu, a Paula e a Deborah organizamos a segunda edição da corrida, e é muito mágico unir forças em prol de uma causa tão fundamental. A protagonista dessa corrida não sou eu, nem a Deborah, nem a Paula, mas todas as mulheres que acreditam que elas possam usufruir de uma vida livre de qualquer tipo de violência. É por isso que a protagonista não sou eu, mas todas elas.  

O que te motiva a lutar por questões relacionadas a igualdade de gênero tanto no âmbito público, quanto jurídico?

Toda mulher merece uma vida livre de violência. É por isso que precisamos deixar um legado para as próximas gerações, para que elas não passem pela mesmas mesmas situações violentas que nós passamos. Eu quero deixar esse legado para a minha filha de 16 anos. que no começo não entendia muito porque eu trabalhava tanto. Na época que eu comecei a me envolver com o projeto, ela também não entendia muito o porquê de “feminista” ser uma palavra considerada feia pela maioria da sociedade. Naquela época, ela tinha vergonha de dizer isso, porque as pessoas à volta dela diziam que uma mulher feminista não se cuidava muito, não tinha “vaidade”, quando, na verdade, isso não tinha absolutamente nada a ver! Hoje ela tem esse discernimento, de que a feminista é uma mulher livre que pode se arrumar do jeito que ela quiser e ocupar o espaço que desejar. Hoje ela tem orgulho de dizer que é feminista. 

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Vamos supor que eu seja agredida hoje pelo meu companheiro ou que seja violentada de alguma outra maneira. Quais seriam os primeiros passos que eu deveria seguir após ter sofrido violência de gênero?

O primeiro passo é denunciar. A agressão precisa ser imediatamente comunicada porque a gente não sabe se ela pode se intensificar. Todo o feminicídio se inicia com um xingamento, com uma ameaça. Comunicar o que está acontecendo à família, às amigas, enfim, algu��m de confiança que esteja próximo é também muito importante. O meu conselho é ligar para a Central de Atendimento à Mulher, discar 180 imediatamente. Dirigir-se a uma delegacia também é importante, ou a qualquer órgão do poder judiciário, como o Ministério Público, Defensoria Pública, Coordenadoria dos Direitos da Mulher ou Associações que trabalham no atendimento das vitimas. A Lei Maria da Penha assegura que a vítima pode pedir  imediatamente uma medida urgente para o juiz. Mas de qualquer forma, o mais indicado é a Delegacia da Mulher, mas ela não funciona nos finais de semana e à noite, o que de fato é uma falha muito grave.  

Nós fizemos a recomendação de atendimento prioritário às mulheres nas delegacias ao Secretário de Segurança Pública, Alexandre de Moraes; porque uma mulher não tem “dia” para apanhar. E um caso que aconteceu no fim de semana? Ou tarde da noite, como é bastante comum? Ela precisa ser amparada em qualquer horário e em qualquer ocasião. E é justamente por isso que nós devemos permanecer muito atentas, porque qualquer ameaça é uma ameaça, tem que ser levada a sério, porque a gente não sabe no que isso pode se transformar lá na frente. 

Essa força necessária para denunciar é muito importante, porque esse grito ficou engasgado em muitas de nós por muito tempo, e quando ele saí, gera um impacto entre as mulheres mais jovens. E isso é muito positivo para as mulheres como um todo, porque é um dos motivos para que as mais novas consigam identificar muito antes que estão num relacionamento abusivo, interrompendo, assim o ciclo vicioso da violência de gênero. Denunciar mais cedo significa permitir que o Sistema de Acesso à Justiça e o Sistema de Proteção Integral à Mulher Vítima tome as devidas providências antes que seja tarde demais. 

Como funciona a aplicação da Lei Maria da Penha para mulheres trans? Porque recentemente, A 9º Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo determinou que as normas previstas na Lei Maria da Penha fossem aplicadas a uma transexual que diz ter sido ameaçada por um ex-companheiro. Mas o pedido foi negado pelo juiz de primeiro grau, sob justificativa de que a vítima era biologicamente do sexo masculino. Em segunda instância, a desembargadora relatora considerou que a lei deve ser interpretada de forma ampla, sem ferir o princípio da dignidade da pessoa humana. 

Na semana passada eu participei de um Congresso Nacional que reuniu vários promotores e juízes e essa questão foi levantada. Algumas pessoas falam que a Lei poderia somente ser aplicada em mulheres que já tivessem realizado a cirurgia modificadora, mas todas nós sabemos que além de tempo, esse procedimento necessita de condições financeiras altíssimas. É por isso que eu acredito que a medida deve ser aplicada de forma integral e sem nenhum tipo de exigência às mulheres transsexuais. E avalio que essa seja uma tendência do Ministério Público e da Defensoria Pública de São Paulo, porque essas mulheres já vivem numa situação de vulnerabilidade social. 

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Falando nisso…

A nossa editora de Atualidades conversou com a Dra. Maria Gabriela Manssur sobre agressão psicológica, vem ver! 

 

 

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