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A morte de um filho não é o fim

A família da primeira-dama paulista, Lu Alckmin, imaginou que ela não suportaria viver sem o filho, morto em um acidente aéreo. Ela conta como se reergueu

Por Patrícia Zaidan Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 28 nov 2017, 19h51 - Publicado em 28 nov 2017, 19h37
Thomaz e Lu Alckmin (Arquivo pessoal/Reprodução)
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No final do dia 1º de abril de 2015, a menos de 24 horas de perder Thomaz, seu caçula, Lu Alckmin, 66 anos, saiu de um compromisso de trabalho, mudou a rota, não foi para casa. Parou no apartamento em que morava o filho, de 31 anos. Conversaram por duas horas, se abraçaram sem saber que aquilo era a despedida.

Ninguém pode prever o fim de um jovem forte e cheio de vida. Muito menos a mãe, conectada a ele pela alma. Lu não escondia; tinha a mais profunda afinidade e identidade com Thomaz. Amiga, confidente, ela compreendia as aflições do caçula desde a infância hiperativa dele. Falavam-se todos os dias. “Dos meus três filhos, era o mais ligado a mim”, conta a mulher de Geraldo Alckmin, o governador de São Paulo. Antes de a visita terminar, Thomaz levou a mãe à garagem para mostrar o carro novo e possante, deixado à disposição dele pela empresa que o contratara como piloto de helicóptero. Convidou Lu para dar uma volta. A primeira-dama aceitou sem informar aos seguranças e à secretária particular (uma oficial da Polícia Militar), que a aguardavam na rua. A intenção era essa mesma, arrancar velozmente, voar baixo e deixar a equipe de dona Lu segui-los desesperadamente em manobras ousadas. Thomaz pisava fundo, a mãe ria, leve e cúmplice na pequena aventura que guardaria para sempre. Quando desceram, encontraram o staff de cabelo em pé, porém aliviado. Dona Lu fez o sinal da cruz na testa do seu menino, beijou-o, desejou bom sono, voltou para o Palácio dos Bandeirantes – sede do governo e sua residência – e dormiu descontraída.

No dia seguinte, 2 de abril, a caminho de Campos do Jordão (SP), onde passaria a Semana Santa, Lu olhou da janela do veículo que a conduzia. Estranhou que o céu lindo contrastasse com a terra sem brilho, que parecia chorar. Clicou no celular. A foto foi captada às 17h04. Nesse exato momento (nenhum segundo a menos, diz ela), despencava em Carapicuíba (SP) o Eurocopter, modelo EC-155, com Thomaz a bordo, de carona. O que aconteceu depois – o silêncio, a dor, a falta do filho, a peregrinação pela paulista Rota da Luz, de 218 quilômetros, parando só para comer e dormir – está relatado no livro Amor Que Transforma (Planeta), lançado em outubro. A CLAUDIA, Maria Lúcia Guimarães Ribeiro Alckmin conta, algumas vezes chorando, como passou a encarar a morte e o que a experiência de andarilha significou para ela.

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(Divulgação/Divulgação)

Sobre o que a senhora falou com seu filho no último encontro?

Amenidades. Eu ficaria fora nos feriados e decidi passar para ver minha neta, Júlia, que ainda não tinha completado 2 meses. Minha nora Tatá (a arquiteta Thais Fantato) havia saído para levar o bebê ao pediatra e, depois, jantaria na casa da mãe dela. Meu filho também seguiria para lá. Eu disse que na segunda-feira, dia 6 de abril, faria um jantarzinho em casa para comemorar o aniversário dele. Thomaz ficou contente, gostava de festas mais íntimas. Ele me mostrou o vaso onde plantara as mudas de ráfia que eu tinha dado – estavam lindas – e me contou como se via feliz no novo emprego de piloto. Finalmente tinha se encontrado. Falou de planos e em financiar, até o fim daquele ano, o apartamento em que morava. Thomaz quis mostrar o carro que passaria a usar a trabalho e sugeriu: “Vamos dar um perdido na sua segurança”. Eu topei. No carro, a gente ria muito. Parecíamos duas crianças olhando para trás e vendo minha equipe me seguir, apavorada.

 

Como soube da morte de Thomaz?

Saí de um compromisso de trabalho (é presidente do Fundo Social de Solidariedade) no centro da cidade direto para Campos do Jordão. Meu marido seguiria para lá à noite; meus filhos, Sophia e Geraldo Neto, chegariam com suas famílias, depois. Tatá me ligou preocupada. Disse que havia tentado falar com Thomaz muitas vezes e ele não atendeu. Eu estava tranquila, tentei acalmá-la. Lembrei que meu filho me contara que o helicóptero estava em manutenção e não podia voar por um mês. Ele não estaria no ar. Às 7 da noite, meu marido ligou e pediu: “Volta para São Paulo”. Imediatamente perguntei: “Ele está machucado?”. Eu me referia a Thomaz sem pronunciar seu nome. Geraldo apenas insistiu com um “Vem agora”. Pus o terço na mão e fui. No céu, vi uma estrela sozinha brilhando muito. Só podia ser meu filho. Meu marido me esperava na garagem. Ele me abraçou chorando, não precisou falar nada. Sophia e Geraldo Neto não tiveram coragem de descer para me receber. Subi. Perguntei aos meus filhos, ainda soluçando, se eles se recordavam do luto que tinha vivido quando perdi minha mãe. Eles disseram que sim. Havia sido traumático para todos. Então, prometi que eu agiria diferente. Que faria a vida continuar. Por eles, pelos meus seis netos e também por mim.

 

Que idade tinha quando perdeu sua mãe, Renata? O que aconteceu? Você se deprimiu?

Eu tinha 45 anos e não estava preparada. O curioso é que a morte de alguém mais velho, que está doente, vem na ordem natural das coisas. Perder um filho é inverter essa ordem. Mas eu reagi muito mal à morte dela, sofri 365 dias. Isso mesmo, um ano inteiro. Perdi tempo com tanta tristeza. Meus filhos sofreram. Eu cuidava deles, mas estava sem brilho. Tinha febre todas as noites, não aceitava ficar longe dela. Minha mãe era minha referência de amor, uma mulher incrível. Autodidata, aprendeu a falar várias línguas, sozinha, lendo. Às escondidas, devorava os livros de meu avô. Ele era intelectual, crítico de arte, mas achava que mulheres não deviam estudar, ter cultura. Eu era muito pequena quando meu pai morreu. Mamãe criou 11 filhos com garra; vendia produtos de limpeza para nos manter. Minhas irmãs mais velhas e eu não pudemos fazer faculdade. E os irmãos mais novos tiveram o curso pago pelos cunhados. Aprendi muito com minha mãe. Eu era exigente comigo mesma, queria acertar sempre, e ela, um dia me falou: “Filha, não se ache tão importante. Você não é tão importante assim, pode errar”. É verdade, ninguém é imprescindível. Sou primeira-dama, e isso não tem a menor importância. Vejo apenas como uma oportunidade de desenvolver o serviço social que amo. A amizade que eu tinha com ela era parecida com a que mantive com Thomaz. Muito intensa.

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No livro, há um texto de Sophia em que ela diz que algumas vezes se irritou porque a senhora não impunha limites ao caçula, permitia que Thomaz fizesse o que bem entendesse…

Thomaz foi uma criança hiperativa. Às vezes, a escola não está preparada para acompanhar crianças assim. Os dois mais velhos faziam as lições sozinhos. Eu ficava do lado de Thomaz o tempo todo. Ele não conseguia se concentrar para estudar, cumprir as tarefas. E, mais tarde, tinha dificuldade em se ver trancado em um trabalho. Foi assim até se tornar piloto. Os pais precisamos entender isso. Não podemos decidir que um filho se comporte como os outros. Também não devemos escolher a profissão deles ou querer que realizem os desejos que não conseguimos concretizar. Nós os colocamos no mundo, mas eles não são nossos. Eu compreendia Thomaz. Aos 20 anos, ele namorou uma moça do cerimonial do Palácio que tinha 26 anos e ficou grávida. Eles não se casaram. A chegada de Bella (Isabella, hoje com 12 anos) foi uma alegria para nós. Thomaz, ela e eu brincávamos de rolar no chão como três crianças. Eu fazia uma monstra, ela se divertia. Meu filho foi diferente desde sempre. Um tio perguntava para todos os meninos e meninas da família o que eles queriam ser. Um respondia que seria advogado, os outros, médico ou engenheiro. E Thomaz só repetia: “Eu quero ser feliz”.

 

Thomaz parecia se expor muito a riscos, não só no motocross, que praticava. Algumas vezes, os jornais noticiaram episódios como aquele em que sofreu uma tentativa de assalto; ou o que envolveu um segurança morto a tiros. Isso a preocupava?

Ele visitava a namorada quando o segurança foi atingido. Sofreu muito com o episódio. Aliás, todos sofremos. O que se aconselhava é que não ficassem no carro parado de madrugada. Meu filho, de fato, se expunha mais que os irmãos. Uma noite, Geraldo e eu voltávamos de um jantar, e Thomaz passou por nós de moto em alta velocidade. Eu mentalizei: “Vá com Deus”. Nunca ficava pensando coisas ruins, que ele iria se machucar. Era inquieto, mas tinha um enorme amor à vida dele e à dos outros. No Palácio, era amigo das cozinheiras, de todo mundo. Ele se sensibilizava. Aos 15 anos, carregava para o banho uma mulher de 80 anos, doente. Tratava-se da mãe da senhora que ajudou a criar Geraldo, que ficou órfão aos 10 anos. Quando Thomaz era pequeno, eu notava as dificuldades dele e fui me aconselhar com meu sogro, de quem gostava muito. Ele me tranquilizou. Disse: “Não se aflija, Lu. Thomaz é bom. O que uma pessoa precisa é ser boa”. Ele me ajudava com ideias no meu trabalho; gostávamos de muitas coisas parecidas; tínhamos um papagaio em comum, o Horácio, que está morando comigo.

 

De que maneira superou a morte de um filho tão querido?

Indo para o velório, eu disse para as pessoas que trabalham comigo: “Vocês me esperem por 30 dias. Esse é o prazo que preciso para reassumir minhas atividades”. Todos acreditavam que eu morreria, que não suportaria. Por um mês, fiquei o tempo inteiro com a família, com meus netos. Não tive depressão e me surpreendi com meu comportamento. Fui conversar com um padre, porque pensava: “Será que estou certa em compreender tão prontamente a partida de Thomaz? Será que estou ficando louca?”. Imaginava que me trancaria, perderia o humor, duvidaria de Deus. Mas, pelo contrário, eu chorava e, no momento seguinte, ria, brincava com as crianças. Choro ainda, mas de saudade. Não de revolta por tê-lo perdido. Falei dessa saudade com Jou Eeel Jia, com quem faço acupuntura. Ele explicou que Thomaz queria fazer coisas extraordinárias. Concluí que meu filho podia seguir fazendo o extraordinário por meio das minhas ações. Sempre penso: “Meu filho, é você quem está realizando isso através de mim”.

 

Nossa cultura não nos prepara para a morte. Temos dificuldade na ruptura, na despedida, depois em nos desapegar das coisas que nos lembram os que se foram. Como administrou tudo isso?

Não me afastei do caixão um só minuto; passava a mão na sua testa me despedindo. Deixei um helicóptero pequenininho, que ele amava, ir com ele para a sepultura. Alguns rituais são necessários. Há famílias que não tocam no assunto. Não é saudável; devemos enfrentar a morte. Descobrimos que, falando da pessoa que se foi, permitimos que ela continue vivendo de uma outra forma. Eu sinto meu filho em todos os lugares aonde vou. Mas, para compreender a partida precisamos entender muitas coisas. E agir também. Foi importante me desfazer das roupas dele, que podiam servir para os que não têm nada. Perguntei para os da família o que queriam manter. Bella quis ficar com um boné, que Thomaz não tirava da cabeça. Dei uma bota a seu Pedro, o caseiro do nosso sítio em Pindamonhangaba (SP), que era o melhor amigo de Thomaz e com quem desmontava motos. Uma vez, os dois fizeram uma geladeira virar máquina de pintar carro. Seu Pedro anda de pé no chão, não se acostuma com sapatos, mas achou bom ganhar as botas. Tirei tudo. Não seria legal manter o quarto de Thomaz montado em Pinda. Voltei de lá chorando de pingar, mas fiquei com o que é mais valioso: as boas lembranças.

 

 Muitas vezes, a tentativa de consolo mais atrapalha que ajuda. A senhora sentiu isso?

Nunca pensei que fosse precisar tanto de que rezassem por mim. Montei seis encadernações de cartas de solidariedade. Sou eternamente grata. Mas há, sim, profundo incômodo com aqueles que querem que você tenha forças. Às vezes isso não é possível. Muita gente marcava audiência de trabalho, mas, na verdade queira dar conselhos, dizer o que eu devia fazer. Eu não precisava; já havia me encontrado. Estava bem, mas vinham, falavam, falavam… acabavam me deixando mal. No fim, eu é que os consolava. É um desgaste físico e emocional. O outro tem de respeitar; cada um se cura de um jeito muito particular e no próprio tempo.

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Como a peregrinação entrou na sua vida?

O padre Rosalvino (Viñayo), que desde 2001 conduz romeiros a Aparecida (SP) pela Via Dutra, me pedia ajuda para tornar menos perigosa aquela viagem. Sou madrinha dos peregrinos e também me preocupava com os acidentes. Muitos morreram. Além do mais, quem consegue ter um encontro com Deus naquela rodovia barulhenta? Criamos uma rota alternativa à Dutra, que vai de Mogi das Cruzes (SP) ao Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida. Enquanto planejávamos a Rota da Luz, Thomaz dizia que, na inauguração, faria o trajeto de moto ou a cavalo. Eu nunca havia caminhado com os romeiros. Apenas os esperava chegar à igreja. Em 2016, quando a partida de meu filho completava um ano, fiz o percurso a pé. Havia uma caminhonete que dava suporte ao nosso grupo, de 40 pessoas, mas em momento algum precisei viajar nela. Fiz questão de percorrer 218 quilômetros caminhando. Não carreguei mochila, mas apenas uma bolsinha com barrinhas de cereal e água. Quase não tem banheiro, é preciso pedir para entrar na casa dos moradores. Para comer e dormir, parava em pequenas pousadas do caminho. Chegava suada, tomava um banho, e do corpo descia um caldo marrom. Mandava dois, três pratos de arroz e feijão – foi a comida mais gostosa que já comi na vida – e ia dormir em cama simples, mas com uma sensação maravilhosa. Os seguranças que me acompanhavam haviam pedido férias e pagaram do próprio bolso as hospedagens. Eles assumiram o espírito da caminhada.

 

A senhora não parece ter o preparo físico dos atletas. Seu corpo reagiu bem?

Eu não me perguntava se ia aguentar. Simplesmente, seguia. Chorava, rezava, meditava. Depois de 100 quilômetros, na altura de Redenção, senti uma enorme dor no joelho. Tinha uma pessoa que era massagista e me ajudou muito. Depois da massagem, acordei boa, às 2 horas da madrugada, e continuei a caminhar.

 

Por que tão cedo assim?

Fazia muito calor. Essa era a melhor hora para sair. Quando estava subindo a serra perto de Taubaté, ouvi o barulho da cachoeira. As lanternas das pessoas não conseguiam iluminar à distância, porém era possível sentir a força das águas. Nunca mais vou esquecer aquele momento. Eu me vi diante de Deus. Tenho de estar pronta para partir a qualquer momento. A morte não nos permite carregar nada. Não podemos levar nem mesmo aqueles que amamos. Deixei de pensar no futuro. Tenho que ser inteira no presente. É isso que interessa. Voltei desejando escrever o livro.

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