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Confinada, Selene carrega o mundo inteiro nas mãos

À convite de CLAUDIA, a autora de "Enterre Seus Mortos", Ana Paula Maia, escreve sobre os pensamentos de uma mulher encarcerada

Por Ana Paula Maia*
Atualizado em 8 ago 2018, 18h02 - Publicado em 8 ago 2018, 18h01
 (stevanovicigor/ThinkStock)
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É pela manhã que o sol contorna a imensa goiabeira, passando por cima do muro eletrificado, e, num estreito raio luminoso, toca o rosto de Selene, que está deitada na cama com a ponta dos pés apoiada no estrado de cima do beliche.

Todos os dias ela espera por esse raio de sol, que entra pontualmente nos dias de céu azul, por uma janela gradeada de apenas 30 centímetros por 30 centímetros, na cela que divide com mais três mulheres. Ele dura 40 minutos e, em movimentos imperceptíveis, passa milimetricamente do rosto de Selene para a parede até desaparecer.

Tudo transcorre devagar quando se está atrás das grades. A tortura de estar aprisionado se soma à tortura do vazio, da completa ausência do que fazer. Selene já contou quantas vezes seu coração bateu em uma hora. Já colecionou bitucas de cigarro que recolhia do pátio e dos corredores.

Costuma decorar nomes de países e capitais tendo como referência um antigo mapa mundial que uma presa anterior deixou esquecido na cela. Selene não recebe visitas. Nunca. Desde que foi presa, seu marido, mãe e irmãos jamais a procuraram. Não sente saudades. De ninguém. Sente-se vazia na maior parte do tempo.

Quando questionada sobre seus crimes, dá de ombros. Às vezes é vista chorando discretamente. Ninguém sabe se ela está arrependida. Ela não diz. Engole as palavras na maior parte do tempo. Fuma a maior parte do tempo. Faz faxina todos os dias na cozinha depois da hora do almoço. Esfrega as paredes e o chão com força. Sempre com força.

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Porque é assim que Selene faz tudo em sua vida. Com força. Os quilos a mais, concentrados na barriga e nos flancos, deixam seus braços pendulando sobre o corpo. Caminha fazendo esforço, assim como respira com dificuldade quando é acometida de bronquite. Não fosse pelo batom marrom-escuro nos lábios e pelos brincos grandes de argola, diriam que não tem vaidade alguma. É bruta: na alma, no falar, no caminhar, no comer.

Pariu dois filhos. Desde que foi presa, nunca mais soube deles. Já estão com 12 anos de idade. Gêmeos. Dois meninos idênticos. Para Selene, nem tão idênticos assim. Ela os diferencia não pela aparência, mas pela personalidade. Sente em um dos filhos o cheiro da morte. O mesmo cheiro que ela tem.

A família acredita que, se os meninos forem criados longe da mãe, não serão influenciados. Selene sabe que um dos seus meninos já está condenado, assim como ela, a não prestar. Pode ser carma ou genético. Não importa. Ela é a mãe. Ela sabe o que gerou dentro de si. Sabe o que há de bom e de ruim dentro de si.

Selene não tem amigos na cadeia. Prefere ser temida. Ao menos, tem a melhor cama da cela, com filete diário de sol, e ainda come as sobras do almoço quando faxina a cozinha.

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Enquanto folheia o mapa mundial, imagina o que existe além dos poucos e miseráveis lugares que conheceu. Seu dedo indicador trafega sobre as linhas delicadas e sinuosas que dividem países e continentes.

Confinada, Selene carrega o mundo inteiro nas mãos, traçando uma linha imaginária que atravessa fronteiras e a leva para todos os lugares. A porta da cela destranca. É a hora do banho de sol, de olhar o céu e esperar que o dia termine.

* Ana Paula Maia é escritora e lançou em março “Enterre Seus Mortos” pela editora Cia. das Letras e publicou também “Carvão Animal” pela Record

Veja também: 45% das mulheres presas ainda não foram condenadas, aponta relatório

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