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A festa do Menino Morto

Eu não vou com manifestantes ao Palácio dos Bandeirantes, no sábado, pedir que a PM continue matando garotos como Ítalo de Jesus Siqueira

Por Patrícia Zaidan Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 28 out 2016, 00h22 - Publicado em 9 jun 2016, 11h26
Montagem/Arquivo Pessoal
Montagem/Arquivo Pessoal (/)
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Dez anos e uma biografia de cinema. Que imensidade viveu Ítalo Ferreira de Jesus Siqueira. Tornou-se conhecido dia 2 de junho como o Menino Morto. Jornais, TVs, blogs passaram a chamá-lo assim. Também se referiram a ele como “o pequeno delinquente”.  Nem Pixote, de Babenco, e o Guri, de Chico Buarque, foram tão pródigos em marginalidade espetaculosa.

Todos vimos seu corpo tombado no sangue, dentro do carro roubado por ele, às 7 da noite. Aos 10 anos, de chinelos e bermuda verde, abaixou o vidro e trocou tiros com a PM enquanto dirigia. Isso na versão policial. E que agilidade exibiu naquela rua da Vila Andrade, região do Morumbi: como um diabo alado, Ítalo de Jesus, ao volante, assobiou, chupou cana, atirou três vezes e – não duvidem – pode até ter tirado uma selfie.

Era de personalidade complexa. Tinha dinheiro para torrar em lan house, pipas para empinar e uma caixa de engraxate. Polia sapatos no elegante Aeroporto de Congonhas; seus clientes portavam laptops, tablets, mil gadgets e… faziam muitas fotos. Aquele era o mundo de Ítalo. Como ele não teria um celular? Conseguiu um e passou a acessar o Facebook. O nome disso é sensação de pertencimento. Também corria de chinelos no charmoso Parque do Ibirapuera, que Oscar Niemeyer projetou para o uso democrático de todas as classes, de todas as gentes, de todas as raças. Em meio a tantas bikes exuberantes, Ítalo ia ficar por baixo? Pedalou uma subtraída de um desavisado. Tenho, logo existo. O Menino incluiu-se no domingo do parque – aquele era o seu mundo também. Que comportamento difícil de compreender!

Já havia abandonado a escola – porque a escola deixou de seduzir as crianças espertas da era digital, que, paradoxalmente, têm dificuldade de aprender. Morou com a avó, depois sozinho em um carro e em um abrigo. Fugiu. Notícias dos pais, quando chegavam, vinham do presídio ou da cadeia. Todos esses detalhes soubemos nesses sete dias em que a vida do Menino Morto foi devassada e exposta. Sua mãe, a empregada doméstica Cíntia (diz a mídia), fora detida por tentativa de furto e por furto e roubo. Ela está solta. Já o pai, Fernando, permanece preso por tráfico de entorpecentes. Ambos, certamente, foram Ítalos na infância. E o Menino se fez sozinho, se virou no nosso mundo de gângsteres, vetado para amadores.

Do trabalho em Congonhas voltava para casa, no Morro do Piolho (aquele mesmo, que sofreu dois incêndios), e via a polícia chegando, dando geral, jogando as pessoas na parede do ladeirão, com cada trabuco enorme, de última geração… trabuco high-tech. Que vida excitante! Nesse caminho de volta, um dia Ítalo entrou em um hotel. Ia saindo com umas coisas e… acabou recolhido pelo Conselho Tutelar. Não era lá o seu lugar nem aquela a sua história. Afinal, o Menino Morto queria ser cantor. Um MC como o MC Guimê. Um funkeiro de aparelho nos dentes. Muitas correntes, colares e anéis. Quem ia pagar? 

Ainda conforme as reportagens: foi pego por seguranças de um supermercado surrupiando prateleiras; entrou em um condomínio sem ser convidado pensando em roubar. De novo… Conselho Tutelar. Incompreensível a sua energia! Também era comunicativo, alegre, amigo dos amigos na comunidade, jogava futebol. Carregava as sacolas de uma velha sempre que ela precisava subir a ladeira vindo das compras. Um meninão comum e querido como tantos outros. Naquele seu mundo palpável.

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QUEM RESPONSABILIZARÁ O ESTADO?

O estado chegou tarde demais à longa e frenética vida do Menino Morto. Apeou de duas motos e uma viatura. Disparou… acabou! A cena policial fantástica, gravada em vídeo e exibida à exaustão, foi o ápice, o auge, a festa do Menino Morto, que terminou com um tiro de pistola na cabeça. Finalmente, olhamos para ele.

Do episódio restou seu companheiro, identificado nas matérias como Jponto. De 11 anos. Depois de perder o amigo na poça de sangue, Jponto nem pôde chorar. Passou horas depondo na polícia. Daria, naquela madrugada apavorante e desesperançada, a versão que as autoridades quisessem – como fez ao concordar com a performance do diabo de asas encarnada por Ítalo de Jesus.

Dias depois, Jponto contou na Corregedoria da Polícia Militar que ele e o amigo não tinham armas. A mãe do “comparsa” (como Jponto foi tratado) usava um blusão amarelo de doer, tendo nas costas as letras em azul: B-R-A-S-I-L. Mais oportuno, impossível. Ela é a encarnação de um país que pede socorro, uma nau sem rumo. A mãe do sobrevivente não quis falar com jornalistas. Estava sem chão, morta de vergonha. E de tristeza. Já o mirrado Jponto saiu encolhido sob o capuz vermelho e arrastando seus indefectíveis chinelos de pobre. O que será dele, que até aqui teve as mesmas e fartas oportunidades do Menino Morto?  

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Ele tem, como toda criança, direito à proteção do estado, de morar com dignidade, estudar, receber assistência para a saúde e o desenvolvimento. Mas se Jponto não ficar esperto, acabará entre os executados da PM paulista, a mais letal do país, que mata duas pessoas todos os dias. Só em janeiro e fevereiro deste ano, os policiais sapecaram 137. A maioria era preta e parda, jovem, do sexo masculino, moradora da periferia ou de favelas encarapitadas em bairro nobres, como é o caso do Morro do Piolho, no Campo Belo.

 

VISITA AO PORTAL DO PALÁCIO

Há vários Morumbis dentro do Morumbi. Aquele onde os dois garotos agiram não fica longe do que é sede do Governo do Estado de São Paulo. Existem o Morumbi das favelas e das mansões, o das celebridades e jogadores de futebol, o da casa da fazenda, que mantém senzala e igrejinha. Ainda o dos arquirricos, falidos, paupérrimos, remediados e distraídos. Vivo em um deles. Mas me nego a atender ao chamado dos meus vizinhos para ir neste sábado (11/6) ao Palácio dos Bandeirantes pedir que os PMs que sacrificaram Ítalo de Jesus continuem a apertar o gatilho.

O grupo levará pleitos para o governador manter esses policiais na corporação. “Não foi execução. Eles estavam trabalhando”, declarou a organizadora do evento. Ela pretende arrecadar dinheiro e bancar advogados para defender os protagonistas do assassinato. Eu prefiro uma roda que pressione o Estado a atacar noutras frentes para a sociedade nunca mais perder um garoto como Ítalo de Jesus, que até aqui – e aos olhos da multidão – é apenas o Menino Morto.

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