Grife brasileira gera revolta ao lançar coleção que remete ao nazismo
Um trench coat muito parecido ao usado pelos nazistas e peças estampando a Cruz de Ferro fazem parte da coleção "Noite de Berlim", da Lança Perfume.
Batizada de “Noite de Berlim”, a mais nova coleção da grife catarinense Lança Perfume gerou revolta por evocar o nazismo nas roupas. Diversas peças têm a estampa da Cruz de Ferro e há também um trench coat em estilo militar, que lembra muito aqueles usados pelo exército de Hitler.
A avalanche de comentários negativos fez com que a marca lançasse uma nota de esclarecimento em que explica a origem da Cruz de Ferro e defende que ela não foi criada pelos nazistas. Também atentam para o fato de que, até hoje, as forças armadas alemãs – o chamado Bundeswehr – são representadas por esse símbolo. De fato, as duas coisas são verdade. Mas isso justifica o uso desse símbolo em uma coleção de moda em 2018?
O militarismo alemão é um tema absolutamente delicado – até mesmo na Alemanha. E o motivo é bem óbvio: os horrores do passado nazista ainda reverberam com força nos dias de hoje. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha até cogitou acabar de vez com seu exército, tamanha a vergonha. Isso não aconteceu, mas o país mantém as forças armadas como uma instituição bastante tímida, por mais que seja a nação mais poderosa da Europa.
Em junho de 2017, a BBC lançou um artigo intitulado “Por que a Alemanha reluta em se tornar uma das grandes forças militares”, em que explica o motivo pelo qual esse assunto ainda é extremamente delicado naquele país. Como aponta o historiador James Sheehan – autor de livros como “The Monopoly of Violence: Why Europeans Hate Going to War” (“O Monopólio da Violência: Por que europeus odeiam ir à guerra”) e “Where Have All the Soldiers Gone?” (“Aonde foram todos os soldados”) -, os alemães não se limitam a ter vergonha do passado de seu exército, eles ainda cultivam uma grande desconfiança frente às forças armadas. Homenagear as forças armadas em uma coleção de moda é algo que dificilmente aconteceria por lá – por que então homenagear o militarismo alemão no Brasil?
E, voltando à Cruz de Ferro, é válido dizer que o seu uso é feito com muita cautela, mesmo pelo Bundeswehr. Na forma de medalhas pretas, a cruz era dada aos soldados nazistas como símbolo de bravura durante o governo de Hitler. Para se ter uma ideia do quanto isso é delicado para os alemães, a condecoração por bravura foi banida do exército do país no pós-guerra e só voltou a vigorar em 2009.
Naquele ano, quatro soldados receberam a honraria depois de terem salvado um colega no Afeganistão. Por ter de lutar ao lado dos Estados Unidos no Oriente Médio, o exército alemão fez pressão para que a condecoração fosse restituída e isso causou bastante dor de cabeça à chanceler Angela Merkel e companhia. Em 2008, um porta-voz do então ministro da defesa da Alemanha, Franz Josef Jung, chegou a dizer ao New York Times que a volta das medalhas em forma de Cruz de Ferro estava fora de cogitação.
Mesmo assim, depois de muita relutância, isso acabou acontecendo e a medida até hoje divide opiniões. Para boa parte da população, a Cruz de Ferro carrega uma conotação tão negativa que não faz sentido defendê-la, por mais que tenha sido criada muito antes da Segunda Guerra. A fim de suavizar o impacto negativo do símbolo, as medalhas hoje são douradas e não pretas com bordas brancas/prateadas, como aquelas utilizadas pelos nazistas – e usadas também nas roupas da Lança Perfume.
Frente a tudo isso, fica muito claro que a escolha pela temática do militarismo alemão é de mau gosto e denota uma profunda falta de sensibilidade histórica.
Apesar de ter deletado as fotos e vídeos da coleção nas redes sociais e de ter inclusive alterado o conteúdo de seu site, a Lança Perfume insiste em se justificar e em dizer que a coleção “Noite de Berlim” é baseada em um extenso trabalho de pesquisa. Só que a marca se esqueceu de pesquisar a respeito do valor agregado aos símbolos que marcaram um dos capítulos mais sórdidos da história da humanidade. Não por acaso, nem mesmo o governo e a população alemã se sentem confortáveis em reivindica-los. Faz sentido se apropriar deles em nome da moda?