Projeto Beleza no Cárcere leva brilho para vida de detentas trans
Além de prepará-las para o mercado de trabalho, o curso visa criar um espaço de acolhida e humanização para mulheres trans que cumprem pena
“A luta anti-cárcere é uma luta antirracista. Precisamos falar sobre o encarceramento em massa da mesma forma que falamos sobre o racismo estrutural”, diz a jornalista e maquiadora Juliana Zaroni, responsável pelo projeto Beleza no Cárcere.
A iniciativa nasceu a partir do incomodo de Juliana com as desigualdades que existem no Brasil, em especial com a população que vive em cárcere. Depois de se formar em jornalismo e com o nascimento de seu filho, ela sentia o desejo de se movimentar além do que sua profissão permitia.
“Comecei a estudar sociologia e política e, com isso, passei a me interessar por encarceramento em massa. A partir daí tive vontade de fazer algum trabalho nesse sentido. Paralelo a isso, eu atuava como maquiadora com coletivos trans e travestis e tive aproximação com esse universo. As as coisas foram se construindo, e pensei: porque não fazer um trabalho assim com mulheres trans encarceradas?”
Um post no Facebook foi o pontapé para que Juliana tivesse contato com os presídios de São Paulo para colocar em ação o seu projeto. “Estavam procurando uma maquiadora para fazer uma ação de um dia de beleza em uma penitenciária no Belém. Na hora entrei em contato, mesmo sendo difícil de entrar nesse ambiente, deu tudo certo e eu consegui”, conta.
Então, sempre que acontecia alguma ação, Juliana estava presente com Charles Bordin, ex-diretor da SAP (Secretaria de Administração Penitenciária). Cada vez mais envolvida nesse universo, o desejo de mudar a vida das mulheres que ali estavam só crescia. “Depois de um tempo visitando penitenciárias, dei a ideia do curso profissionalizante. Foi mais de um ano arrecadando maquiagens usadas, pelas redes sociais, tentando ver uma unidade porque tudo o que você vai fazer em penitenciaria é muito complicado, precisava ver um dia, voluntários. Mas as coisas foram se estruturando, tomando forma, e assim nasceu o projeto”, explica.
Sua conexão com pessoas trans acontecia de forma natural e Juliana costuma dizer que é algo de outras vidas. “Uma vez eu descia a General Jardim pra ir à faculdade, e por ali ficam muitas trans e travestis. Uma delas me parou, perguntando se eu estava indo estudar e começamos a conversar, do nada”, durante a conversa, a jovem disse que morava com a avó e que a mesma aceitava sua orientação de gênero, mas era contra a prostituição – por medo da exposição.
“Ela me disse que seu sonho era ser atendente da Sumirê. Aquilo foi um soco na minha cara, enquanto reclamamos da vida, o sonho de princesa daquela mulher era ser vendedora de uma loja de cosméticos. Isso muda a perspectiva, nos faz repensar o que é o ideal”, conta a jornalista.
Levando cor e brilho para um mundo cinza
Segundo uma reportagem do Fantástico, há cerca de 700 mulheres trans somente nos presídios paulistanos. Uma pesquisa do Governo Federal sobre a situação da população LGBT no sistema carcerário, publicada em fevereiro deste ano, apontou que é comum mulheres trans serem tratadas como homens dentro dos presídios.
O curso Beleza no Cárcere atua na cidade de São Paulo, nos presídios Belém, São Vicente e na Fundação Casa e também em Guarulhos, no presídio José Parada Neto. Todas essas unidades são masculinas, o que torna o encarceramento de mulheres trans uma questão ainda mais delicada.
O objetivo principal é do projeto é profissionalizar essas mulheres para que possam adentrar com mais confiança no mercado de trabalho quando saírem da cadeia. “Sabemos que a inserção delas no mercado de trabalho é muito difícil. Nesse aspecto, a área da beleza é mais aberta à diversidade. Com o curso profissionalizante, elas podem criar sua própria rede de clientes, de repente, atuar onde elas moram ou trabalhar em salões da sua região”, argumenta Juliana.
Mas além do cuidado com a vida profissional, a ideia do curso é também trazer humanização aos corpos trans que se encontram encarcerados. Como explica Juliana, para elas, a maquiagem acaba tendo um significado muito maior do que apenas deixar o rosto bem produzido. “Além de trabalhar questões como autocuidado e autoestima, quando estão bem maquiadas elas se parecem mais com uma mulher cis – que é o que chamamos de passabilidade. Quanto mais parecidas com uma mulher cis elas estiverem, isso significa não apanhar na rua, não morrer”, conta Juliana.
O curso começou com 24 alunos, entre homens gays e mulheres trans. Muitos deles não conseguiam concluir o curso porque a permanência dos mesmos dependia de uma série de questões como saírem da cadeia, transferência ou a realização de programas de disciplinas. “Não conseguimos controlas essas situações, então, no fim do curso, estávamos apenas com 10 pessoas”, esclarece a maquiadora.
A solidão também é frequente na vida das mulheres trans que vivem nas cadeias. Em alguns casos, a única visita que recebem é de Juliana com o curso, sendo então o único vínculo afetivo que possuem com alguém de fora. Os efeitos, além de ensiná-las algo novo e trazer uma nova perspectiva para suas vidas após o tempo de pena, também gera mudanças durante o período de encarceramento.
“Do tempo que começamos o curso, tivemos relatos de diminuição de automutilação, brigas, tentativas de suicídio e o relacionamento delas melhorou. Esse retorno vem dos profissionais da unidade”, conta. “É preciso ter toda uma sensibilidade pra entender aquele universo. A profissionalização é um dos objetivos, mas não o único”, elucida Juliana.
Pinceladas de Liberdade
Além de cuidar das mulheres que se encontram presas, Juliana tem o desejo de ampliar o projeto para além dos muros da penitenciária. “O momento mais delicado é quando elas saem da cadeia, porque muitas não tem onde morar, não tem emprego. Percebi que existe muita reincidência entre mulheres trans. As que eu conheci aqui fora, a maioria já teve uma passagem, então é muito difícil a inserção no mercado de trabalho”.
Pensando nos próximos passos dessas mulheres, surgiu a ideia de criar o Pinceladas de Liberdade, que visa profissionalizar com um nível maior exigência essas mesmas mulheres, mas agora, fora da cadeia.
“O objetivo é profissionalizá-las, mas também tratar toda a vulnerabilidade que elas enfrentam. Quando elas saem, precisam de um suporte pra poder caminhar. A ideia é formar e já fechar com um emprego”, conta a maquiadora. Com a chegada da pandemia, a ideia encontra-se apenas nos futuros planos.
A jornalista também fala com carinho sobre o quão transformador foi pra ela estar em contato com essas mulheres enquanto as ensinava maquiagem. “Tive uma revolução interna, como ser humano, da minha visão de mundo e das pessoas. A humanidade existe mesmo nos piores lugares, é apenas uma questão de dar espaço pra ela aparecer. Ninguém é totalmente bom, nem totalmente ruim. Por mais que elas tenham cometidos crimes, muitos casos bárbaros, quando estou ali estou despertando algo bom em cada uma delas”, reflete.
“Pra algumas delas o dia do curso é o mais aguardado, por receber um abraço sem conotação sexual, por ser escutada, olhada nos olhos. Aqui fora ninguém se importa, mas pra elas é muito importante. É um ambiente difícil, não é um mundo bonito. Hoje, eu já me acostumei. Há algo que transcende e entendo como uma missão espiritual. Eu posso estar acabada, mas quando saio de lá eu recebo muito mais do que posso oferecer”, revela Juliana.
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