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Antropóloga desmistifica a imagem da mulher usuária de crack em livro

"Tornar-se Mulher Usuária de Crack" conta a história das mulheres usuárias em Salvador, rompe com estigmatização e faz críticas às políticas públicas atuais

Por Gabriela Maraccini (colaboradora)
28 set 2020, 16h46

A antropóloga Luana Malheiro traz suas inquietações sobre a política contra as drogas e a respeito da forma como a mídia auxilia na construção do estereótipo desumano da mulher usuária de crack em seu novo livro. Batizado de Tornar-se Mulher Usuária de Crack: cultura e política sobre drogas, ele foi lançado recentemente pela editora Telha. Com o objetivo de romper o estigma, a obra tem a função de aproximar o leitor de histórias reais sobre a mulher dependente de crack e o que está por trás do uso da droga.

“A ideia é trazer o leitor nessa caminhada de mostrar como uma mulher entra no uso de crack, como ela encontra o crack, como é essa história. Porque o que nós mais vemos é essa coisa de ‘beijou, gamou’, ‘usei o crack e vou ficar viciada no primeiro uso’. Mas para além desses mitos, o que de fato estava acontecendo com a vida dessas mulheres?”, aponta Luana em uma conversa com CLAUDIA.

“Tornar-se mulher” é a provocação que a antropóloga faz logo no título da obra, fruto de uma pesquisa feita nas cenas de uso de crack do Centro Histórico de Salvador. “Tornar-se mulher usuária de crack é um caminho de traumas e doloroso e não podemos olhar para ele responsabilizando a mulher ou responsabilizando o crack.”

Capa do livro “Tornar-se Mulher Usuária de Crack”, da antropóloga Luana Malheiro (Divulgação/Reprodução)

Traumas esses são os reflexos de uma sociedade machista e racista. Maioria nas cenas de uso, as mulheres negras sofrem, além da violência de gênero, violências raciais, e o uso descontrolado e compulsivo da droga está estritamente ligado a esses abusos.

“É o estupro coletivo, estupro com discurso de humilhação, discurso racista, a retirada do direito à maternidade, agressão física…”, lista Luana. Para escrever o livro, ela acompanhou a rotina de 20 mulheres no Pelourinho. “Dessas, 18 mulheres foram para a rua na infância porque foram violentadas por seus parentes próximos. Elas vão para a rua encontrar uma outra família, estabelecer outros laços. Elas vão com traumas e lá encontram o crack.”

Desse total de mulheres entrevistadas, que Luana chama de “parceiras de pesquisa”, oito tiveram suas histórias contadas com maior detalhe no livro e, através delas, podemos entender o que leva uma mulher a usar crack. “A droga aparece na narrativa das mulheres como uma forma de viver uma vida que tem vários elementos de morte. É uma ideia de que ‘eu não consigo viver isso de cara, sem o uso da droga’. Então, qual é o momento em que essas mulheres abandonam o uso abusivo de crack? Quando conseguem abandonar situações de violência, quando estão afastadas de seu agressor, quando conseguem sair da situação de rua e acessar políticas públicas”, conta a antropóloga.

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Antropóloga Luana Malheiro contextualiza as histórias e situações de vida de mulheres usuárias de crack na região do Pelourinho, em Salvador (Julliano Falcão/Divulgação)

Outra consequência da desigualdade racial e de gênero, percebida por Luana, é a falta de oportunidades no mercado de trabalho lícito, fazendo com que muitas dessas mulheres se envolvam também no tráfico de crack. Ao contrário dos que pensam que elas comercializam a droga para sustentar o vício, a maioria dessas mulheres entram no mercado ilícito para sustentar os filhos.

“O aumento da presença das mulheres no mercado ilícito de crack é um resultado da feminização da pobreza. As mulheres estão mais pobres, elas não têm tido oportunidades de trabalho e estão sozinhas cuidando de seus filhos”, comenta Luana. “O mercado de drogas tem entrado como possibilidade real de vida e de sustentação para essas mulheres e essa é uma situação que existe na América Latina inteira”, completa.

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A retirada do direito à maternidade e o uso compulsivo de crack

Outra violação sofrida por essas mulheres é a retirada do seu direito de maternidade, apontada por Luana nas narrativas de suas parceiras. Durante sua pesquisa, a antropóloga percebeu que, ao descobrirem que estão grávidas, as usuárias passam a se organizar para terem o filho: diminuem o uso de crack, procuram serviços e redes de apoio. Só que o sonho de conseguir dar uma vida minimamente melhor para a criança e, também, mudar o rumo de sua própria, é destruído assim que elas chegam à maternidade na hora do parto.

“A profissional da maternidade tem que notificar o Conselho Tutelar quando mulheres em risco social chegam na maternidade. Essa notificação deveria, em tese, gerar do serviço de Justiça uma maior articulação para garantir moradia, o direito da mãe e do bebê”, aponta Luana. “O que tem acontecido é que o Conselho Tutelar entende só o direito da criança, separado do direito da mãe, e ela acaba tendo o vínculo corrompido. A mãe entra em mais um ciclo de violência e para restituir a guarda é muito difícil”.

Isso faz com que a mulher, que estava se preparando para dar à luz ao bebê e reduzindo seu uso de crack, retorne ao uso compulsivo para aliviar a dor de ter seu filho retirado pelo Estado. “Elas têm que viver um pós-parto completamente abandonadas, porque há uma rede que se organiza pelo bebê, mas não há uma rede que se organize por essa mulher”, explica Luana. “Ela entra em depressão pós-parto e volta para o mesmo cenário de antes, voltando a usar o crack. Nós precisamos resolver esses problemas estruturais, que já vêm se alastrando há um certo tempo, e garantir que essas mulheres tenham direito à vida, direito à maternidade, direito a acesso à política”, afirma.

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Possíveis soluções

Ao longo de seu livro, Luana também faz uma crítica às redes de apoio e às políticas públicas existentes para a mulher em situação de violência no país atualmente. Por meio dos relatos de suas entrevistadas, a escritora percebeu que as mulheres usuárias de crack não são contempladas pelos projetos existentes, nem mesmo pela Lei Maria da Penha.

“Tem um episódio no meu livro que uma parceira vai para a delegacia da mulher, conta sua história e, em seguida, é questionada por que está em um espaço de uso de crack. Depois, é informada que existe uma oferta de rede de proteção, mas que não estava disponível para ela, porque ela era uma mulher em situação de rua e usuária de drogas”, relata. “E aí essa mulher devolve uma pergunta para quem a atendeu: ‘Então, você está querendo dizer que eu não sou uma mulher?'”

Por isso, Luana, ao longo de sua obra, enfatiza que é necessária a construção de políticas públicas voltadas à violência de gênero que de fato sejam acessíveis às mulheres em situação de rua e usuárias de drogas. “A mulher acaba voltando para a rua apenas com uma medida protetiva, que não vai servir de nada porque ela não tem um domicílio. Ela volta para a rua, onde o agressor dela está, e ela é espancada novamente”, aponta Luana.

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Além disso, a antropóloga reitera a importância de políticas públicas livres do forte viés religioso que elas têm hoje em dia. “São serviços que trabalham com um tipo ideal de mulher e que vai tentar encaixá-la nesse tipo ideal religioso e isso é uma violência”, aponta. “Precisamos de serviços que acolham as pessoas em suas identidades e subjetividades”.

Tornar-se Mulher Usuária de Crack: cultura e política sobre drogas está disponível em pré-venda pelo site da Editora Telha

 

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