Fernanda Montenegro e Torres falam de reencontro na vida e volta à TV
Em "Amor e Sorte", nova série da Globo, as atrizes vivem mãe e filha com entraves ainda mais expostos na relação durante o isolamento
O convívio diário voltou para a vida de mãe e filha na quarentena. “Nós não morávamos juntas há muitos anos, embora convivêssemos na vida. Esse vírus desgraçado nos levou para o mesmo teto por quatro meses”, diz Fernanda Montenegro sobre o isolamento ao lado de sua filha Fernanda Torres, dos netos Joaquim e Pedro e do genro e diretor, Andrucha Waddington, na região serrana do Rio de Janeiro. “Me vi amparada diante de uma mulher que luta por sua vida, tem uma sensibilidade qualificada e talento. É ela, independente de mim. Como mãe, é uma comprovação de que ela é um ser humano livre”, aponta a nonagenária.
Entre essas redescobertas familiares, surgiu o convite de Jorge Furtado para as atrizes darem vida à Gilda (Fernanda Montenegro) e Lúcia (Fernanda Torres), personagens da série Amor e Sorte, da Rede Globo, que estreia na próxima terça (8). Atrás das câmeras, a equipe também era de casa. Diretor e marido de Torres, Andrucha Waddington, conduziu a direção artística do episódio junto de Pedro Waddington, enteado de Fernanda. Os filhos do casal, Joaquim e Antônio, também participaram da produção, que foi gravada integralmente no sítio da família. “A filmagem foi uma coroação desse encontro na nossa vida”, define Nanda, como é chamada pela mãe, para os jornalistas na coletiva de imprensa da produção.
As reações diante da pandemia são diversas e imprevisíveis. Torres conheceu uma versão da mãe diferente. “Ela é workholic. Quando veio a pandemia, passou a pensar muito no futuro, o que foi acalmando com os meses. Uma ajuda crucial também foi a troca diária com Andrucha. Tem gente que diz que genro não é da família, mas o meu marido virou. Ele é muito gentil, atencioso, alegre e uma figura importante pra nossa convivência ser harmoniosa. Eles têm uma ligação muito forte pelo trabalho, pensavam sempre em algo novo”, conta a atriz e também roteirista da série.
[Na pandemia], eu estou cansada e controlando o estado de ansiedade
Fernanda Torres
Para Montenegro, a quarentena foi marcada por altos e baixos, não necessariamente nessa ordem. “Houve um mês de saturação, como se estivesse sem saída. No segundo, fui me aquietando com música, natureza, banho de sol, gravações, convívio familiar e relendo Gilgamés (poema épico da Mesopotâmia) ”, comenta. O olhar da atriz captou também reparos necessários na casa de campo, que por quatro meses na pandemia tornou-se o seu lar fixo. “Era uma terapia ocupacional objetiva perceber que precisava consertar uma descarga ou bomba de água”, revela.
No episódio que protagonizam, as atrizes interpretam mãe e filha com uma relação abalada. As feridas são expostas na relação delas durante o isolamento, tornando-se urgente o processo de cura. Assim como as personagens, as Fernandas também tiveram que aparar suas arestas na vida pessoal. “Elas [Gilda e Lúcia] mudam quando param de brigar com a natureza e a usufruem, isso aconteceu com a gente e é uma homenagem”, afirma Torres.
Já que me aprisionaram, passei a pensar na minha própria grade
Fernanda Montenegro
Os 90 anos foram bem vividos, mas pouco notados, percebeu Fernanda Montenegro no isolamento. Estreitando o laço consigo mesma, pôde mergulhar em reflexões sobre a relação do tempo com a velhice. “Até a chegada do vírus, a vida ia. Mas, aprisionada, tomei a consciência de que tenho quase um século de vida. Seria tão bom se a bendita vacina aparecesse em setembro para uma nova vida, como um presente de Natal antecipado, porque não tenho muito tempo. Os que estão vivos na minha idade ou perto disso estão bem apreensivos, afinal gostaríamos de ver um mundo diferente antes de sair daqui para algum lugar ou lugar nenhum. Há esperança de que ainda vamos ter chances, a gente acorda e canta”, reflete.
Se o cenário obscuro da crise sanitária é desesperador, a realidade política é uma imbecilidade, define Montenegro. Sobrevivente da opressão do período da ditadura militar, a atriz sugere uma arma para essa jornada atual. “Deixe a imbecilidade se propor, estamos completamente vivos, não vamos renascer, porque não deixamos de existir. É só ter paciência e fingir que não estamos levando a vida que sempre levamos. Estamos produzindo com maior dificuldade, destrutividade e interferência, assim como aconteceu outras vezes na história. Não estou assustada, mas é questão de paciência. Nossa transcendência cultural é viva e latente”, afirma Fernanda, que define sua positividade como vertical e não passiva.
Com animal emprestado pelo vizinho, carrinho de terra para preparar a parte externa da casa, aparelho de sonografia e câmera, a família acumulou funções para dar vida ao episódio. O esforço foi válido, mas Torres alerta que “é impossível se manter com esse formato. O certo é que, na pandemia, quem mais sofre é o teatro”, considera sobre a ausência da plateia e a necessidade de ser presencial. Já para a Montenegro o lado bom da pequena equipe é ver de perto que a arte está no DNA. “É muito bonito você acompanhar seu campo de trabalho e sua inspiração de vida adiante nos netos, além dos filhos. É um amparo”, sente.
A celebração familiar durante os quatro meses no sítio foi na cozinha. Nada de pão ou bolo instagramáveis, o ápice para Torres foi fazer curanto, tradicional prato chileno, que ela conta o modo de preparo. “Você cava um buraco, acende uma fogueira, coloca folha de bananeira e um lençol com cordeiro e legumes dentro. Depois, é só fechar e deixar 12 horas cozinhando. Esse foi o auge da experiência culinária”, diz a atriz, que também voltou para a análise e faz uma espécie de diário da sua quarentena. “Decidi que só vou parar no dia que anunciarem a vacina, mas estou com medo de demorar mais dois anos”.
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