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“Devo muito ao público, mas é ruim não poder ser eu mesma”, diz Xuxa

Gerações cresceram assistindo à Rainha dos Baixinhos e agora acompanham pelas redes sociais outra fase da apresentadora, mais madura e arrojada

Por Isabella D'Ercole Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 21 out 2020, 13h41 - Publicado em 16 out 2020, 09h00
Foto em preto e branco da Xuxa
"Xuxa: o documentário" estreia nesta quinta-feira na plataforma do Globoplay com detalhes inéditos da vida pessoal e nos mais de 40 anos de carreira da apresentadora (Brunno Rangel/CLAUDIA)
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Gerações cresceram assistindo à Rainha dos Baixinhos e agora acompanham pelas redes sociais outra fase da apresentadora, mais madura e arrojada. Aos 57 anos, Xuxa não quer mais ser o que esperam dela, deseja a liberdade de fazer escolhas sem consequências. Mas, para isso, precisa perder o medo de decepcionar os fãs

 

Xou da Morgana Sayonara não teria o menor carisma, mas era assim que Maria da Graça Meneghel, a Xuxa, ia se chamar. O nome mudou de última hora por causa da promessa desesperada de seu pai após o médico tê-lo feito escolher entre a sobrevivência da mãe ou a do bebê.

Xuxa foi o apelido que a loirinha fofa ganhou do irmão Blad assim que chegou da maternidade. Em 1983, então modelo com carreira internacional e morando em Nova York, ela entrou no estúdio da TV Manchete, no Rio de Janeiro, para gravar Clube da Criança, programa infantil que foi ao ar em 6 de junho. O resto é história, uma intensa história.

Nascida em Santa Rosa, no Rio Grande do Sul, Xuxa carrega o título de Rainha dos Baixinhos e coleciona superlativos. Foi devido à venda de 2,6 milhões de cópias de Xou da Xuxa, seu segundo álbum, que inventaram o disco de diamante – antes, o reconhecimento máximo era o de platina.

Ela ainda bateria outras três vezes o próprio recorde. O Xou da Xuxa 3, com um de seus maiores hits, Ilariê, foi parar no Guinness como o disco mais vendido do mundo. Xuxa gravou ainda programas na Argentina, nos Estados Unidos e na Espanha – às vezes, em sequência, voando de um continente para o outro semanalmente.

A vida pessoal da cantora e apresentadora de 57 anos também é repleta de excessos – o que não significa que sejam exageros. Apaixonada por bichos desde criança, ela chegou a ter 54 cachorros ao mesmo tempo, fora macacos, pássaros, coelhos e até um jacaré.

xuxa-revista-claudia
(Brunno Rangel/CLAUDIA)
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O nascimento de sua única filha, Sasha, foi notícia no jornal televisivo de maior audiência do país, o Jornal Nacional, com direito a repórter de plantão na porta da maternidade e reportagem de quase dez minutos em pleno horário nobre.

Com tamanha exposição desde que se aventurou pela seara pública, Xuxa esteve no cerne de diversas polêmicas. Aguentou muita especulação sobre sua vida amorosa por ter se envolvido com homens famosos, como Pelé e Ayrton Senna.

Corajosa, foi à TV falar a respeito dos abusos sofridos na infância e jamais deixou de levantar bandeiras por seus valores, o que resultou em várias brigas, principalmente na internet, mas Xuxa não é de recuar. Entretanto, admite que já deixou de fazer e falar muitas coisas por medo de decepcionar os fãs.

Hoje, vê a vida de outra forma. No mês passado, lançou uma autobiografia, Memórias (Globo Livros), na qual fala abertamente sobre todos esses assuntos e conta situações inéditas. Um dos capítulos contém um relato de uma viagem bizarra aos Estados Unidos, com a promessa de fazer fotos, que virou praticamente um sequestro, encerrado após a interferência da secretária de um militar.

As fotos da capa de CLAUDIA e desta reportagem foram feitas da casa da artista, onde ela também atendeu à entrevista. A residência carioca tem um extenso jardim no meio da sala. Ali, pássaros voam soltos. Por isso, durante a ligação, era possível ouvi-los cantar, trilha sonora harmoniosa para uma conversa profunda e sincera. Ao final, restou a certeza de que Xuxa é autêntica, decidida e doce – coisa que aquece o coração de uma fã.

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Dizem que, para sobreviver ao mundo artístico, é preciso criar uma persona que proteja o seu eu verdadeiro da exposição. Foi assim com você?

Eu não criei um personagem, mas fazia o que mandavam, e isso talvez tenha levado a uma persona. “Bota essa roupa, é melhor que você se posicione assim, fale pouco desta vez.” Não deixa de ser um personagem. Tanto que, quando acabava um show e eu via todo mundo gritando meu nome, chorando, sempre desmontava. As paquitas me abraçavam, passavam a energia delas. Eu dizia que não era aquilo que as pessoas estavam vendo. Queria que gostassem de mim do jeito que eu era, mas tinha medo e vergonha de decepcioná-las. Uma vez, estava no ônibus da turnê, indo de uma cidade para outra, e pedi para parar e comprar uns quitutes, tipo maria-mole, bananada. Comentei que aqueles doces me lembravam de quando eu andava de trem, na infância e adolescência. Ouvi que aquilo não combinava comigo. A imagem que tinham de mim não era verdadeira, e eu me calava. Não conseguiam imaginar que eu era suburbana, interiorana. Eles me viam como uma rainha intocável. Obviamente, em casa, não usava minhas botas, mas camisetão. E, se me fotografassem daquele jeito, as pessoas se chocavam. Ninguém gosta da gata borralheira, só querem ser a Cinderela. Mas sempre soube quem eu era, minha índole não mudou. Nunca cheguei em casa e pensei que tinha feito algo que não queria. Pelo contrário, deixei de fazer e falar muita coisa.

xuxa-revista-claudia
(Brunno Rangel/CLAUDIA)

Nos últimos anos, você tem compartilhado nas redes reflexões de autoaceitação, principalmente em relação à idade. Por que decidiu tornar público esse processo íntimo?

Para mim, é natural dividir. Os fãs me pedem para voltar a fazer o programa da Xuxa, mas é ridículo uma mulher de 60 anos usando chuquinhas. Sei que a memória afetiva grita ao pensar nessa cena, mas só se for tirando sarro, brincando. A maturidade me fez ver que tem coisas que não me são mais permitidas e que eu não posso simplesmente fazer o que os outros querem. Nas redes, mostro o que acho legal assumir na minha idade. Se isso vai decepcionar as pessoas? Sim, mas vai agradar a outras também. Eu tenho certeza de que algumas ficam bastante chateadas ao me ver sem maquiagem, falando e fazendo coisas que não imaginavam que combinassem comigo. Pelos comentários, sabemos a quem agradamos ou não. Por exemplo, eu sou vegana há pouco tempo, mas não como carne desde os 13 anos. Sempre falei de bicho, só que, quando eu boto veganismo no meio, vejo as pessoas me xingando. Elas perdem as estribeiras. Acho que não querem se sentir assassinas e, não aceitando o mal que fazem, me ofendem. Se digo que a Amazônia está sendo desmatada pela agropecuária, os seguidores não querem assumir que dão força a isso ou que os bichos sofrem para estar no seu prato. Essa agressão é uma não aceitação. Eu não tinha informação suficiente para ser vegana, mas, agora que tenho, compartilho. Agrado? Não. Deixo de fazer? Tampouco. Já foi o tempo em que eu me calava ou ficava na minha. Não gostaram? Aí é que vou mesmo por esse caminho; faço dois ou três posts em vez de um. Se me desrespeitarem, vou desrespeitar também botando mais imagens, porque eu sei que isso atinge a conduta diária deles. Serve para tudo; política, religião, o que eu achar que está errado. Se um pastor diz que Deus não gosta de gay, eu não vou ficar calada de jeito nenhum. Se ouço um político falando que tem que bater em criança para educar, vou juntar todas as pesquisas que conseguir e mostrar quantas crianças morrem por ser violentadas e abusadas diariamente. Aquela personagem que sem querer aconteceu nos anos 1980, que falava o que as pessoas queriam e se vestia de maneira específica, está longe de ser esta de agora. Só vou fazer aquilo em que acredito. Aprendi com minha mãe a respeitar quem me respeita. Ela nunca me bateu, mas me avisava que, se alguém me batesse e eu não retrucasse, ia apanhar chegando em casa. Uma vez, uma menina me deu um soco no olho dizendo: “Eu odeio gaúcha”. Eu devolvi. Para mim, respeito gera respeito, amor gera amor, carinho gera carinho. Muita gente fala: “Não responde, Xuxa, engole”. Mas minha mãe não me ensinou isso.

No livro, quando você fala da relação com Junno, seu namorado, diz que Deus enviou uma pessoa que gosta de você como é, sem maquiagem, com cabelo raspado. Sentiu pressão estética em outras relações?

Nos meus outros relacionamentos, eu tinha menos idade, a pele era bonita, o corpo era melhor na minha visão e na dos outros. Mas sofria pressão. Quando a gente tem filho, deixa de se cuidar. Mesmo voltando a trabalhar um mês e meio depois do parto, eu queria cuidar da Sasha, e não de mim. Um dia, o Luciano [Szafir], pai da Sasha, chegou em casa e perguntou se eu não ia fazer as unhas, se não estava tomando sol. Acho que ficou meio decepcionado ao me ver daquele jeito porque notou que eu não estava me cuidando, algo que sempre adorei fazer. Tive vontade de responder um monte de coisas, mas não falei nada porque entendi o que estava acontecendo. Ele queria que eu olhasse mais para mim, talvez não tivesse gostado do que estava vendo ali. E devo ter tido outros relacionamentos assim, em que me viam acordando e não era o que esperavam. Mas o Ju gosta de qualquer jeito. Se eu acordo com o cabelo em pé, ele acha lindo; se eu engordo, me chama de gostosa; elogia a carequinha. A voz rouca é sexy e quando começa a voltar é a voz da Xuxa. Para ele, está tudo certo.

xuxa-revista-claudia
(Brunno Rangel/CLAUDIA)
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Tudo que envolve sua vida ganha os holofotes, assume grandeza, como o nascimento da Sasha, que foi parar nos jornais. Você acha isso excessivo?

Antigamente, eu via como um baita presente as pessoas quererem saber de mim. Eu não lia nada a meu respeito, não via por opção. Procurava me proteger. Sei de muita gente com estilo de vida parecido com o meu que fica bem doida acompanhando esses retornos. Acho que ninguém teve, até hoje, o espaço que eu consegui na TV nos anos 1980 e 1990. Só que eu não fazia ideia disso, o que foi bom, porque a fama dá uma pirada nas pessoas, o ego cresce, você vira quase uma entidade. Sou uma figura pública e me expor faz parte do meu trabalho. Hoje ainda enxergo esse lado bom e vejo o ruim também. A internet deu espaço para os haters. E tenho vários.

Você foi associada a termos como santa, rainha. Isso é um fardo?

Eu não quero decepcionar ninguém, mas estou longe de ser santa. Adoro o título de Rainha dos Baixinhos, quero que esteja na minha lápide quando eu morrer. Só que o que está atrelado a isso é pesado. Tenho que pensar em tudo que vou fazer, porque talvez as pessoas não entendam. Isso não é legal nem justo. Eu, aos quase 60, tenho que ficar refletindo se vou causar decepção. Uma vez, na Argentina, um cara falou: “Se você não tivesse feito foto pelada, seria uma santa”. Aquilo me chocou. É muito forte alguém olhar para você e achar que está acima dos outros, que é intocável. Fazemos isso com os nossos pais, acreditamos que eles nunca erram e, quando acontece, é uma decepção do cão. Sei que devo muito ao público pelo que sou hoje, mas também é ruim não poder ser você mesma. Não quero ser o que as pessoas imaginam para o resto da vida. Quando raspei a cabeça, foi uma comoção enorme, fui supercriticada. Tenho que pisar em ovos para não decepcionar. Sorte que realmente nunca bebi nem fumei, porque sempre trabalhei com criança, e que sou vegetariana há muitos anos. Então, essas bandeiras são legítimas, minhas, não pode falar que faço para me dar retorno.

Você revelou abusos que sofreu na infância na TV e retomou agora no livro. Esses episódios impactam sua vida até hoje?

Sim. Eu tomo de três a quatro banhos por dia, antes e depois de transar sempre. Demoro bastante para me sentir limpa. Vejo que ninguém mais faz isso. E tem questões no meu relacionamento que são difíceis. O Ju está me ajudando a virar a chave. Eu não gostava de que ele fizesse algumas coisas, porque me lembrava do namorado da minha avó tocando em mim, abusando de mim. Hoje, o Ju fala: “Quem está fazendo isso é alguém que ama você, não aquela pessoa”. Eu chorava no começo, mas não quero colocar essa barreira na minha vida. Aos poucos, vou avançando. Contudo, as marcas ficam e algumas nem devem ser tão conscientes. Não é algo fácil de trabalhar e talvez eu leve pra outra vida. Eu tentei tratar. Fiz terapia quando meus pais se separaram e a primeira coisa que falei foi do abuso. Só que escolhi a pessoa errada. Eu não conseguia dormir, e ela queria resolver isso. Aí, a sessão envolvia dormir e falar com umas almofadas quando acordasse, um processo interessante até. Uma vez, acordei e ela estava me tocando. Fui lá resolver algo e só piorou.

Foto em preto e branco da Xuxa
(Brunno Rangel/CLAUDIA)

Algumas pessoas recortam trechos de programas dos anos 1980 e criticam seguindo os conceitos do contexto atual. Fica chateada?

Não me choca tanto porque era um padrão da época, todo mundo estava fazendo. Nos dias de hoje, algumas condutas são consideradas erradas. Eu lembro que fiz uma abertura para o final de ano da Globo em que eu me pintava toda de preto. Era com o Grande Otelo, e ele falou que eu estava linda, elogiou. A gente não via problema, mas agora sabemos o que é apropriação cultural. No Xuxa Só para Baixinhos, fiz uma volta ao mundo apresentando diferentes culturas e me vesti de japonesa, com roupas africanas. Para mim, nesse caso, foi uma licença cultural para falar com as crianças. Muita gente discorda e eu respeito. Só é importante lembrar que naquela época não era visto dessa forma. Faz sentido que em 2020 algumas coisas dos anos 1980 sejam politicamente incorretas. Há quem fale que é mimimi, mas eu não concordo, porque é uma forma de abrir portas para outras coisas erradas.

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Uma polêmica que sempre ressurge quando se fala de Xuxa é o filme Amor, Estranho Amor. Você aproveita para abordar isso no livro e dar a sua versão dos fatos. Essa história deixa você abalada?

Esse filme é usado como uma ferramenta atemporal para me criticar. Geralmente isso parte de quem não sabe do que está falando. A coisa mais certa era esse filme ser distribuído de novo, porque é uma história real. Trata de uma menina de 15 anos, a minha personagem, vendida para um prostíbulo, para um político. Aí recortam só a cena em que ela transa com um garoto de 13 anos e ainda inventam que é a Xuxa, e não uma personagem de ficção. Aqueles que trabalhavam comigo na época tentaram esconder e foi a maior bobeira. Se tivesse chegado aos lares, saberiam que não é a minha biografia, mas cinema. Nunca fui prostituta, nunca fui doada. O problema é que as pessoas não assistem, e a mensagem fica deturpada. Para mim, é inadmissível, ignorância até, comentar o que não conhece. Podiam ver e aí criticar. Mas dizer que a Xuxa fazia filme adulto com criança é um absurdo. Eu posto alguma coisa de veganismo e lá vem a provocação: “Comer carne não pode, mas trepar com criança, sim”. Do que a senhora está falando? O filme não tem qualidade para ser exibido hoje, mas as pessoas que querem me ofender poderiam fazer uma vaquinha e trabalhar nessa fita para poder ver e entender que, no Brasil, meninos e meninas são trocados por uma camiseta, por um prato de comida. Existe exploração sexual infantil e com adolescentes, e ela é mantida por gente que tem dinheiro e poder. Um amigo comediante me contou uma história há três anos sobre um show que fez no interior. Quando acabou, um político disse para ele: “Estou com uma virgem aí pra você”. Essa é a realidade de muitas crianças e deveríamos estar discutindo isso.

Tem algum arrependimento?

Ter confiado em algumas pessoas. Confiei em muita gente errada: maquiador, figurinista, empresário. Eles pensavam: “Essa é fácil de enganar”. E realmente conseguiam. Mas não vou dar o nome de ninguém; senão, teria menos caráter do que eles.

Hoje, qual é a sua verdade, aquela que guia a sua vida?

Faça com o mundo o que gostaria que fizessem com você. Eu sempre me pergunto: “Se eu fosse esse bicho, como gostaria de ser tratado? E se eu fosse um funcionário, um fã?”. Vale para tudo, a forma de tratar as pessoas, a relação com minha filha, com o trabalho.

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