1 ano sem Elke Maravilha: muito mais que uma mulher extravagante
Nascida na Rússia, radicada no Brasil, poliglota, modelo, manequim, atriz, jurada. Atrás das perucas e da maquiagem houve uma história de vida fascinante
Talvez você só se lembre de Elke Maravilha como uma figura extravagante, usando perucas gigantescas, maquiagem carregada e roupas brilhantes. Se você viu o filme “Zuzu Angel” (2006), em que ela foi interpretada por Luana Piovani, tem ideia de que antes da personagem tresloucada ela foi uma manequim de sucesso.
Elke deixou “este plano”, como gostava de falar, no dia 16 de agosto de 2016, vítima de falência múltiplas dos órgãos, no Rio de Janeiro. Tinha 71 anos e, por causa do diabetes, seu corpo não reagiu bem a medicamentos para a recuperação de uma cirurgia de úlcera.
A história da russa com cidadania alemã radicada no Brasil é muito maior que essas pequenas informações. Vem saber mais sobre quem foi Elke Georgievna Grünupp, com declarações dadas por ela em uma entrevista de 2015, que até hoje não havia sido publicada.
Da Rússia para o interior de Minas
Elke nasceu em Leningrado, que hoje é São Petersburgo, na Rússia. Sua mãe, Ilse Lieselotte, era alemã. O russo da história era seu pai, George Grünupp, que foi para a guerra para impedir a anexação da Finlândia pela União Soviética. Venceu a guerra e perdeu a pátria: considerado traidor do regime soviético, precisou fugir com a família para não ser morto.
O destino escolhido foi o Brasil – mais especificamente Itabira, no interior de Minas. Elke tinha de cinco para seis anos de idade e lembrava com carinho do período na cidade. “Era tudo muito diferente. Todo aquele verde, aqueles pastos, aqueles animais. A gente falava russo e alemão dentro de casa, e as pessoas de fora obviamente não nos entendiam. Aprendemos português com a ajuda da escola e dos vizinhos, que eram muito gentis conosco.”
Na infância, a educação sobre homossexualidade e racismo
George era um homem muito direto e sem papas na língua, segundo Elke (ela teve a quem puxar, então). Quando a família chegou ao Brasil, ela viu negros pela primeira vez e ficou com medo. “Era medo do diferente, eu era muito pequena. Meu pai não gostou, disse que eram pessoas como nós e que era para eu deixar daquilo. Falei de novo e ele perdeu a paciência: me levou até a casa dos nossos vizinhos, que eram negros, e falou ‘Se vira!’. Foi a melhor coisa. Em cinco minutos eu nem lembrava mais o que era medo. Ele precisou brigar para me levar de volta para casa, isso sim”, contou.
Sobre homossexualidade, George nem esperou a filha espevitada demonstrar curiosidade. Levou-a para entender o assunto na natureza: “Tinha muito gado em Itabira, e há homossexualidade entre os animais. Então meu pai identificou casais homossexuais nos pastos e me levou para vê-los ‘namorando’. Ele disse assim: ‘Tem machos que preferem ficar com machos e fêmeas que preferem ficar com fêmeas. É assim na natureza dos bichos e dos humanos, porque nós também somos animais. Temos que respeitar todas as naturezas’. Por isso, cresci achando tão natural todo tipo de relacionamento. É tudo a mesma coisa.”
Modelo e manequim poliglota
Depois de passar um período no interior de São Paulo, Elke voltou para Minas com a família aos 17 anos. Ela ganhou um concurso de beleza e logo entrou no circuito da moda local, fotografando e desfilando. Nessa mesma época conseguiu sua cidadania brasileira. “Nada mais justo, eu já era mais brasileira do que russa àquelas alturas”, afirmou.
Um de seus maiores interesses na adolescência era aprender idiomas. “Cheguei à idade adulta falando nove línguas: russo, alemão, português, inglês, francês, italiano, espanhol, grego e latim”, enumerou. Mas por que grego e latim, Elke? “Ah, porque eles são a raiz de todo o resto. É sempre bom conhecer a raiz das coisas”, respondeu.
Esse interesse fez ela escolher a faculdade de Letras e rendeu seus empregos fixos de secretária trilíngue e professora de idiomas, porque modelar, até então, era “um bico”.
Foi só em 1969, ao ficar muito amiga da estilista Zuzu Angel, que Elke passou a se dedicar integralmente à carreira de modelo e manequim. Tornou-se top model e os trabalhos vinham um atrás do outro.
Na ditadura, o nascimento da Elke Maravilha
Tudo ia dentro da normalidade até fevereiro de 1972. Ao chegar ao Rio de Janeiro pelo Aeroporto Santos Dumont, Elke viu cartazes com a foto de Stuart Angel, filho de Zuzu, apontado como procurado pela polícia. Teve um acesso de fúria, arrancou um cartaz da parede com as próprias mãos e o rasgou. Nunca se arrependeu.
“Não tinha como eu me conter. A gente sabia que ele havia sido morto no ano anterior, na Base Aérea do Galeão. Eu não vi nada na minha frente”. Foi presa por desacato e obstrução da justiça (por supostamente prejudicar a busca de um foragido) e perdeu a cidadania brasileira.
Encarcerada no DOPS [Delegacia de Ordem Política e Social] por seis dias, Elke decidiu adotar uma atitude artística, por assim dizer. “Resolvi me fazer de louca. Cada vez que me avisavam que eu seria interrogada, eu tratava de passar um lápis bem louco nas sobrancelhas, fazer um bocão enorme com batom vermelho. Nos interrogatórios, às vezes eu me fazia de burra, às vezes de inocente, às vezes de espertinha… Eles não sabiam o que fazer comigo e acabaram me soltando.”
Ali nasceu a Elke Maravilha. “Percebi que não valia mais a pena levar as coisas a sério. O que aconteceu comigo foi uma loucura, a situação toda do Stuart e da Zuzu, a prisão… Criei a personagem debochada, carinhosa, que pode extrapolar de vez em quando. Enquanto fui jurada [dos programas “Cassino do Chacrinha” e “Show de Calouros”], sempre levei o trabalho de avaliar candidatos muito a sério, mas não fazia isso com uma cara fechada. Optei pela leveza, mas uma leveza extravagante”, justificou.
Elke também precisou pedir a cidadania alemã a que tinha direito, já que não era mais brasileira nem russa (foi considerada despatriada ao conquistar a cidadania brasileira). Dali por diante, passou a ser uma alemã radicada no Brasil.
E nesta condição trabalhou por aqui como atriz em mais de 30 novelas e filmes, entre eles “A Volta de Beto Rockfeller” (1973) “Xica da Silva” (o filme, de 1976), “Pixote, A Lei do Mais Fraco” (1981), “Memórias de um Gigolô” (1986) e “As Canalhas” (2013).
Oito casamentos e três abortos de Elke
“Sempre tive pressa de namorar”, disse Elke, em meio a risadas. Ela foi casada oito vezes – “nem sempre no papel, claro” – e engravidou três vezes, nos três primeiros relacionamentos, por ter sido enganada pelos parceiros.
“Eu nunca quis ter filhos. Nunca achei que eu tivesse condições de educar alguém como fui educada”, declarou. “Mas esses meus maridos queriam ser pais, e estavam comigo mesmo sabendo da minha decisão. Então o que eles faziam? Substituíam minhas pílulas anticoncepcionais por pílulas de farinha. Engravidei três vezes, abortei três vezes”, contou.
Para não ser mais enganada, abandonou as pílulas e passou a usar DIU. “Minha melhor decisão sexual, porque daí fiquei livre, livre!”
Perguntada sobre como se sentiu depois dos abortos, ela demonstrou muita calma. “Me senti bem. Foram decisões práticas. Eu não queria ter filhos, eu não saberia educá-los. É melhor não tê-los do que colocar no mundo para serem uns monstrinhos sem referência de mãe.”
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Último ato
Elke nunca teve medo da morte. Sobre esse assunto, disse que achava ter vindo de um tempo futuro para esta encarnação. “Eu sempre senti saudade de algo que já vivi. É difícil explicar… Mas a sensação que tenho é que, quando eu sair deste plano, vou voltar a um lugar mais à frente.”
Durante sua internação de quase dois meses antes de morrer, Elke pediu para o irmão, Frederico, que fosse enterrada com todo o luxo que merecesse. Por isso, ele escolheu para o velório, realizado no Teatro Carlos Gomes, no Rio, um vestido feito sob medida para o show “Elke Canta e Conta”. Ela também foi maquiada por amigos do jeitão extravagante de que tanto gostava, para voltar em grande estilo ao lugar que a esperava.