Suas figuras femininas de resistência estão nos museus e nas ruas – mas é nas escolas que ela enxerga uma possibilidade de construção de futuro
Banhar-se na Cachoeira do Grajaú, no Parque Nacional da Tijuca, no Rio, é um dos prazeres de Marcela Cantuária. Mas não é um prazer solitário. A força do coletivo atravessa a experiência da artista carioca tanto na vida pessoal quanto profissional – se é que tal divisão é possível para quem tem a paixão como ferramenta de trabalho. “Meus objetos de inspiração se dão por meio do contato com o outro, observando a realidade, sentindo os acontecimentos históricos, que são feitos coletivamente. É a água que eu bebo”, conta ela para CLAUDIA numa conversa regada a gargalhadas e um lacrimejar represado quando toca em episódios sensíveis.
Formada pela Escola de Belas Artes da UFRJ, Marcela passou por um ponto de inflexão na sua carreira em 2019, quando montou a individual Sutur|ar Libert|ar no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. Seus trabalhos já vinham chamando atenção na internet – impossível passar batido, por exemplo, pelas telas da série Mátria Livre, iniciada em 2016, com figuras femininas que lutaram contra o patriarcado, como a psiquiatra alagoana Nise da Silveira e a ativista ambiental hondurenha Berta Cáceres. Foi durante a correria de abertura daquela mostra, porém, que a artista tomou coragem para convidar artistas consagrados a conhecerem sua produção. “Tremendo que nem vara verde, mandei uma mensagem para a Adriana Varejão no Instagram. Ela responder que tentaria ir já fez meu dia, mas ela brotou na exposição! E comprou uma pintura minha”, comemora. Hoje, ela chama Varejão de “dinda” e tem duas peças suas na cabeceira da cama.
A porta que se abriu trouxe para seu clã de amigos-admiradores-apoiadores o fotógrafo Vicente de Mello, que clicou todo o seu portfólio, e os cantores e compositores Caetano Veloso e Marisa Monte, para citar alguns. “Quando o galerista me avisou que eles iam, fiquei maluca, falando sozinha no espelho, treinando. Quando você verbaliza algo sobre a pintura é mais um processo criativo. Então estava lá eu falando com eles, segurando a cerveja quente, pedindo a Deus para não desmaiar.” A memória cheia de hipérboles é típica da personalidade forte e expansiva de Marcela, que, na verdade, fala linda e inspiradamente sobre as pinturas. “A Marisa me puxou de canto e disse ‘Eu amei’. Como assim a Marisa Monte adorou meu trabalho?!”
Muitos frutos brotaram desse encontro: Marcela foi quem criou o conceito visual do álbum Portas, de Marisa. Durante o desenvolvimento do conceito criativo, até banho de cachoeira juntas rolou. O oratório com as pinturas do disco está na sala de pé-direito duplo da sua casa-ateliê, no Grajaú, por onde circula a gatinha preta Babalu. Recentemente, a felina ressabiada anda de olho no biombo que está sendo finalizado para uma mostra da Bombay Sapphire. “Preciso conviver com as obras, me entender com elas.”
Seu ritmo de produção é intenso e a abundância de sucessos inclui ainda uma mostra no Sesc Pompeia, em outubro, e a exibição no Masp da tela Margarida Alves (2020), uma homenagem à sindicalista paraibana que lutou pelos direitos humanos e foi assassinada. “Quero deixar um legado, algo que realmente faça a diferença no âmbito de mulheres pintoras. O que a pesquisa faz comigo é muito profundo, toca nesses assuntos da ordem do sensível, da luta, de mulheres que já morreram. É quase um ritual fazer essas figuras da Mátria Livre. Sem pretensão nenhuma, me sinto uma ponte entre o mundo dos vivos e dos mortos através do pincel”, afirma, visivelmente comovida.
A emoção se multiplica quando o assunto é o compartilhar dos saberes. “Sempre fui muito oficineira. Eu sou associada do pré-vestibular Só Cria. Poderia dar aulas de história da arte, mas prefiro estar no calor do fazer, com a mão na massa”, diz a artista de 31 anos. O gosto pelo ensino a levou longe. Com apoio do Instituo Inclusartiz, responsável também por apresentar a tela A Invocação do Passado na Velocidade do Agora, criada in loco por Marcela para a Feira Internacional de Artes de Madri, a artista viajou para o Piauí para dar oficinas (sempre elas), para crianças. “Não tenho medo de assumir minhas inseguranças. Cheguei lá e pensei: ‘vai dar merda, essas crianças nunca pintaram’. Só desenhei e elas vieram, encantadas”, lembra.
“Tenho pressa, quero deixar um legado, algo que realmente faça a diferença nesse âmbito de mulheres pintoras”
O alívio foi seguido de muito aprendizado. “Minha dúvida era fazer o trabalho social mais livre ou passando a técnica. Tentei explicar como se comporta a pintura, porque, no final das contas, é uma troca. Foi mágico.” As questões sociais e ambientais nos muros são obviamente relevantes, mas a sensibilidade da artista não deixa escapar a sutileza subjacente na experiência. “O que vem antes de tudo na pintura, além da disputa pela memória, é o afeto. O que movimenta a pessoa a criar é o amor, buscar imagens que ainda não existem nesse mundo.”
No clichê de “em toda criança há um artista em potencial”, Cantuária vê só verdade. “Elas não têm a preocupação com o que o outro vai pensar.” Sua própria infância, contudo, teve outras marcas profundas. “Sofri abuso sexual aos 6 anos. Já era meio tímida e aquilo mexeu muito comigo, fui me reprimindo, entrando no meu mundo. Nunca podemos normalizar isso, mas eu venci, maravilhosa.
“O que vem antes de tudo na pintura, além da disputa pela memória, é o afeto. O que movimenta a pessoa a criar é o amor, buscar imagens que ainda não existem nesse mundo”
Com 13 anos, por algum alinhamento cósmico, um vulcão entrou em erupção e eu só precisava me expressar.”A força juvenil não veio separada de outro monstro: a pressão dos colegas por um padrão estético. “Criança é um bicho ruim de zoar. Me chamavam de bigoduda, daí um dia peguei a Gillette do meu pai e tirei tudo. Minha mãe falou que não era assim, me levou numa depiladora. Por dez anos, toda semana ou de 15 em 15 dias, estava lá eu, nesse sofrimento”, conta.
Quando a paciência para esse ritual se esgotou, Marcela já tinha uma nova referência: Frida Kahlo. “Antes da faculdade, via aquela mulher bigoduda e não entendia. Ela foi ganhando força comigo à medida que ia me aprofundando na história, sobretudo na maneira como ela consegue unir o que seria um realismo mágico com a política”, comenta.
“Amo construir esse panteão de mulheres guerreiras. Tem algo mágico em criar imagens do universo feminino”
Junto com a arte, o interesse pelo universo místico surgiu como uma maneira de conhecer o seu mundo interno – e o externo. “Teve um momento da minha vida que até cobrei para tirar tarô numa festa. Montei a tendinha da cigana e a festa inteira fez fila, socorro, ‘será que a fitinha no umbigo vai segurar’, eu pensava.” Não segurou. Ela acordou sem voz e com conjuntivite, determinada a não mais cobrar pela atuação de sacerdotisa. Apesar disso, conhecimento foi fundamental para o desenvolvimento de Urutu (2022), oráculo de 38 cartas-pinturas feito em parceria com o fotógrafo Pedro Garcia. “Não é um baralho convencional. É um jogo divinatório, inspirado na literatura e na música, uma ferramenta de autoconhecimento coletivo, porque fala da ideia de Brasil.”
E qual seria a carta que representa o sentido feminino coletivo que CLAUDIA vislumbra? Marcela escuta com atenção genuína a pergunta, respira fundo, embaralha o oráculo e com a mão esquerda (a do coração) tira: A Cinza das Horas, uma referência à canção “Vambora”, de Adriana Calcanhotto. “É de uma poesia sem fim. Sinto que diz do momento ser agora. Escolhi uma ilustração de algo que a gravidade não puxa, quis inverter. O sentido feminino já está em curso, já está fluindo.” Na caminhada de Marcela, esse fluir aponta alguns destinos: uma enxurrada de exposições e um curso de formação de arte. “Imagino meu trabalho alinhado com a educação. A gente vai embora, não vai ver esse futuro construído. Mas deixa semente, a história não é estática.”
*Fotos: Priscilla Haefeli (No Title); Stying: Lize D’Elia Moutinho; Beleza: Fernanda Costa; Cabelo: Carolina Carvalho; Concepção Visual: Kareen Sayuri.
Assistente de fotografia Felipe Viveiros; Assistente de styling Camila Chrispim; Acervo Made in Brechó