Organização comandada por mulheres cria jogos para ensinar política
Os jogos da Fast Food da Política abordam temas como direitos das mulheres e presença feminina na política e estão disponíveis para download gratuito
Em 2015, as manifestações pró e contra o impeachment da então presidenta Dilma Rousseff fortaleceram a polarização política no Brasil. Foi no meio de uma dessas passeatas, em Brasília, que Júlia Carvalho percebeu que era necessário falar de política de uma forma mais simples e descomplicada, especialmente para gerar reflexão sobre as reivindicações que aqueles manifestantes faziam. Assim, ela e alguns colegas, que estavam fazendo uma viagem por todo o Brasil, criaram alguns jogos de tabuleiro simples, inspirados em clássicos como Twister e Cara a Cara, mas com a política como tema central.
Naquele cenário de muitas incertezas, fervor e indignação, a pergunta central era se os manifestantes de fato conheciam as consequências legais de suas solicitações e, através dos jogos, o grupo conseguiu aprofundar o debate e fazer as pessoas perceberem que nem sempre os resultados que mais tarde seriam desencadeados estavam de acordo com aquilo que elas inicialmente acreditavam.
Os primeiros jogos criados, ainda na época das manifestações, foram o Três Esferas – onde as pessoas deveriam ligar órgãos públicos com o governo responsável por eles (Federal, Estadual ou Municipal) – e o Monte seu Governo – em que os participantes tinham opções de políticos para montar seu “governo ideal”. A resposta foi tão boa e as reflexões geradas tão pertinentes, que Júlia resolveu seguir com o projeto que, posteriormente, foi chamado de Fast Food da Política. Hoje, a organização é composta por 4 mulheres – Júlia, a fundadora; Thays Esaú, vice-presidenta; Bruna Quirino, analista financeira; e Gabrielle Nascimento, analista administrativa – além de alguns outros associados.
“O nome Fast Food é porque os jogos eram rápidos e nasceram nas ruas. Também eram tabuleiros enormes para chamar atenção nas manifestações. O resultado foi tão bom porque o elemento lúdico do jogo permite que as pessoas dialoguem e se desarmem. Elas se sentem livres para arriscar e errar, o que não seria tão aceito em outros contextos”, explica Thays Esaú em entrevista a CLAUDIA.
O projeto cresceu e, atualmente, a Fast Food da Política conta com mais de 20 jogos e tem como objetivo principal democratizar a educação política e ajudar a população a entender como podem participar ativamente das políticas públicas brasileiras. Afinal, compreender as regras é fundamental para poder modificar o jogo. “Hoje, além da linha de ‘jogos tradicionais’, como o Três Esferas e o Três Poderes, que explicam as bases da política brasileira, também há jogos que explicam o sistema eleitoral, questões de gênero e até outros que foram feitos em parceria, com foco nos imigrantes e na Justiça do Trabalho”, conta Thays.
Foco nas mulheres
Depois das primeiras criações, as 4 amigas logo perceberam que não não há como falar de política sem falar de mulheres. Assim, decidiram criar uma linha de jogos voltada especialmente para questões de gênero. A Molho Especial possui cinco jogos – Direitos e Silêncios, Mulheres na Política, Jogo das Vozes, Feminismo Indefinido e Queda do Patriarcado – que abordam assuntos como direitos ao divórcio, direito ao voto e aborto.
“Não dava para não abordar esses assuntos nos jogos, afinal, o país se ergueu em cima de corpos femininos. Corpos negros e periféricos. Para essas mulheres, o respaldo da lei chegou bem depois do que para as mulheres brancas e de elite e isso precisa ser falado. Apesar disso, algumas das leis realmente mudaram o funcionamento da sociedade, como a Lei Maria da Penha que tornou a violência doméstica um assunto público, e as pessoas precisam entender como elas funcionam, quais as burocracias envolvidas para que sejam fortalecidas”, aponta a vice-presidenta.
Para Thays, os jogos são ainda mais importantes porque a nossa Constituição não é acessível. Cheia de termos técnicos e difíceis de entender, as leis ficam nas mãos de quem domina esse tipo de vocabulário e, assim, somente essas pessoas podem mudá-las. Outro ponto importante é que, além das leis escritas, a Fast Food da Política faz questão de abordar o que chama de “regras invisíveis”, ou seja, hábitos e regras que são normatizados, apesar de não serem defendidos ou repreendidos por lei.
Além de disponíveis em versões físicas que podem ser compradas por um valor simbólico de doação, os jogos da Fast Food da Política estão disponíveis para download gratuito no site. Basta baixar o PDF, recortar as cartas e tabuleiros, ler o manual de instruções e também um material com sugestões de questões a serem discutidas depois da partida. O Direitos e Silêncios, jogo que fala sobre as legislações da mulher brasileira, possui uma versão completamente online e gratuita aqui. A cada rodada, a jogadora receberá 5 cartas aleatórias, cada uma representando um direito das mulheres brasileiras. O objetivo é montar uma linha do tempo com essas cartas, arrastando para a parte de “Não existe” as que você achar que ainda não foram formalizadas legalmente.
Ao jogar, percebemos que muitas das coisas que acreditamos serem leis não foram formalizadas até hoje e outras, que parecem completamente absurdas e retrógradas, possuem respaldo legal. Thays conta que a única pessoa que ela conhece que conseguiu acertar todas as cartas do jogo foi sua mãe. “É um processo muito demorado produzir o jogo. Eu já joguei com todo o tipo de pessoa, de familiares a acadêmicos, e ela foi a única que acertou tudo. Ela é do interior de Minas, então muitas dessas regras e leis que achamos absurdas ela via de perto e conhecia”, conta.
Ampliando os horizontes
Além de todo trabalho de pesquisa e produção dos jogos, a Fast Food da Política também oferece as Jogatinas, que são encontros para jogar os jogos online ou presencialmente, cursos sobre sistema político, gamificação da política e métodos de criação dos jogos. Além disso, desde 2016 a empresa atua em parceria com Escolas de Governo e os jogos são utilizados por vários professores como uma forma lúdica de abordar temas densos na sala de aula.
Os jogos feitos com empresas parceiras também são um destaque. Junto com a Vote LGBT, criaram o Direitos e Preconceitos e o Fogo no Parquinho, que mostram um pouco da realidade das pessoas LGBTQIA+ no Brasil, especialmente os direitos que já foram conquistados e os muitos outros que ainda são negados. Com o Centro de Apoio ao Imigrante (CAMI), a Fast Food desenvolveu jogos especiais sobre as mulheres imigrantes, direitos da criança, do adolescente e do trabalho.
“É muito legal ver isso tudo acontecendo. Dá trabalho, porque nós pensamos muito em como queremos que as pessoas se sintam ao jogar, o que queremos que elas questionem, pensem depois da partida, mas ver que várias pessoas estão olhando para esse elemento lúdico como uma ferramenta educacional é muito gratificante”, afirma Thays.
Financiamento
Durante a pandemia, as doações diminuíram e as trocas físicas – como cursos, mentorias e encontros – também tiveram que parar. Por isso, quatro meses depois do início da quarentena, a Fast Food da Política criou uma campanha de financiamento recorrente, para que o projeto siga de pé. A arrecadação funciona através de assinaturas mensais, com valores que vão de R$ 20 a R$ 100. Os apoiadores recebem resumos das atividades a cada dois meses, para que possam acompanhar onde o dinheiro está sendo aplicado e participam de sorteios de jogos impressos.