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Representatividade nas telenovelas: afinal, quem se vê por aqui?

70 anos após a chegada da TV ao Brasil, a teledramaturgia brasileira ainda não é capaz de espelhar a diversidade racial do país

Por Gabriela Teixeira (colaboradora)
Atualizado em 18 set 2020, 20h14 - Publicado em 18 set 2020, 19h00

Faça um teste: ligue a TV, preferencialmente no horário nobre, e observe os atores das novelas que estão no ar. Conte quantas pessoas brancas e quantas não-brancas compõem o elenco. A discrepância é gritante, certo? Lamentavelmente, se nestes 70 anos da televisão brasileira, as telenovelas parecem tentar acompanhar, a passos lentos, o avançar de algumas pautas sociais em seus enredos, quando se trata de representatividade, elas parecem ainda estar presas ao século passado.

A primeira vez que uma atriz negra protagonizou uma novela foi em A Cabana do Pai Tomás (1969), quase duas décadas após a chegada do sistema televisivo no país. No papel de Tia Cloé, a atriz Ruth de Souza fez história, enfrentando preconceito até entre as próprias colegas de elenco: algumas atrizes brancas não queriam que seus nomes viessem após o dela nos créditos.

Mas afora o protagonismo de Ruth, a obra, baseada em livro homônimo de Harriet Beecher Stowe, também deixava e muito a desejar quando se tratava de representação. O protagonista masculino, Pai Tomás, um escravo negro, era interpretado pelo ator branco Sérgio Cardoso, em um caso de blackface que gerou manifestações de repúdio entre parte da classe artística da época. Ironicamente, mesmo em uma produção centrada na história de pessoas negras, o espaço para elas era limitado.

Tantos anos depois, pouca coisa mudou, como mostra levantamento produzido pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Das 162 telenovelas exibidas pela TV Globo entre os anos de 1984 e 2014 e analisadas pelos pesquisadores, apenas 10 apresentavam mais de 20% de seu elenco principal composto por atores e atrizes pretos ou pardos. Tratando-se do total de protagonistas assim classificados, a porcentagem era ainda mais ínfima, de 8%, e extremamente contrastante com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada em 2014 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que apontava que 53,6% da população brasileira era composta por esses dois grupos.

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Ruth de Souza e Sérgio Cardoso em ‘A Cabana do Pai Tomás’. Foto: (Reprodução/Reprodução)

Ainda de acordo com o estudo do GEMAA, uma maior representatividade de pretos e pardos também depende de fatores sociais e geográficos: as novelas menos brancas são aquelas cuja trama, geralmente, é ambientada nas regiões Norte e Nordeste do país e em locais como favelas, cortiços e zonas rurais. E aqui entra a questão dos papéis oferecidos.

Apesar de ter uma carreira mais focada no cinema, Sol Menezzes, 25 anos, explica que seu maior desafio enquanto atriz é encontrar oportunidades de interpretar personagens que qualquer mulher, independentemente de sua raça, poderia fazer. “Sempre que recebo um papel penso ‘Eles querem uma atriz negra ou uma atriz?’. Quando é simplesmente uma atriz, geralmente é uma atriz branca, que entendem como normal. Quando precisam de uma atriz negra, é para a empregada, a prostituta, a passista. Nada contra nenhuma dessas profissões, mas não somos só isso”, diz.

Para ela, representatividade é ter a chance de ver pessoas parecidas consigo em posições de sucesso e compreender que também pode alcançar aquele lugar. “É o que brancos têm. Eles crescem vendo mocinhas, galãs, médicos, todas essas classes representadas por pessoas brancas e entendem que podem ser tudo na vida. Já as pessoas pretas têm representatividade onde? Nos trabalhos subservientes. E não precisa ser assim, temos pessoas negras ricas, de classe média, com mestrado e doutorado, dando aulas fora do país. Esse tipo de representatividade também é necessária, não só a do sistema que quer nos ver no lugar de submissão e pobreza”.

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Problema estrutural

O apagamento atinge também minorias raciais, do mesmo modo como ocorreu há 51 anos, em A Cabana do Pai Tomás. Exemplos recentes são as novelas Sol Nascente (2016) e Novo Mundo (2017). A primeira era protagonizada por uma família de descendentes de japoneses, mas os personagens de destaque foram interpretados por Giovanna Antonelli e Luis Melo, que não possuem ascendência oriental.

A escolha voltou a gerar polêmica recentemente, quando foi revelado que a personagem de Antonelli havia sido inspirada na vida da atriz Danielle Suzuki, que também era a primeira opção para assumir o papel, mas acabou preterida. Já em Novo Mundo, apesar da existência de um núcleo indígena na trama, atores nativos não foram contratados.

Da etnia xavante, Miguelito Acosta, 56 anos, chegou a tentar o teste para o papel do cacique Ubirajara (Allan Souza Lima), mas só recebeu silêncio da produção. “Não entraram em contato comigo ou com os outros atores indígenas para dar qualquer satisfação. Só quando vimos a propaganda da estreia da novela na TV foi que soubemos que não fomos contemplados. E o pior: colocaram um ator não-indígena para desempenhar o papel para o qual nos testaram. Será que nenhum de nós era capaz de interpretar o papel de cacique?”, questiona o ator.

Em 22 anos de carreira, e fazendo principalmente vilões, ele conta que já chegou a se candidatar para fazer personagens sem background étnico específico, mas que é difícil exercer qualquer papel que não seja de indígena. “Isso alimenta a ideia de que atores não-brancos não são capazes de interpretar qualquer personagem, o que não é verdade. Pode observar: não aparece indígena na TV, a menos que seja em filme ou novela de época”, aponta. “É como se nós fôssemos o povo do passado”.

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Uma das primeiras atrizes brasileiras de ascendência asiática a ter destaque nas telinhas, Cristina Sano, de 59 anos, afirma ter tido sorte de não ter atuado em papeis que reforçavam esterótipos, ainda que para isso, tenha sido preciso dizer alguns nãos. “Muitas vezes tive que explicar que uma mulher da minha idade, nascida no Brasil, não falaria com sotaque japonês. Mas muitos diretores foram compreensivos. Em Bebê a Bordo, do Carlos Lombardi, eu fazia a Grega, uma punk despachada que não comia sushi, mas lasanha. O Lombardi subverteu todos os estereótipos sobre os orientais, o que achei maravilhoso!”

A inconstância de trabalhos também é um obstáculo. Dada a falta de contratação, os atores são forçados a buscar sustento em outras frentes. “Todo ator quer ganhar pelo seu trabalho e quando isso não acontece, ou se muda de área ou se procura outros meios ligados à arte”, diz ela, que também é roteirista, escritora de livros didáticos e consteladora sistêmica.

Tendo começado a trabalhar em uma época em que praticamente não haviam atrizes e muito personagens com o biotipo oriental, ela diz não ter encarado isso como empecilho, mas sim como a oportunidade de ser a primeira de muitos, pois acredita que a tendência da humanidade é evoluir.

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“A inclusão de diversas etnias amplia a percepção de aceitação e integração das pessoas na sociedade. A obra audiovisual, especialmente as novelas e séries, possui um grande alcance nacional e internacional e o fato de haver atores de diferentes etnias presentes nela reforça a mensagem urgente de que o mundo precisa ser mais inclusivo.”

Mas, se como acredita Cristina, há espaço para todos, a realidade mostra que as chances de uma pessoa não-branca chegar a ocupar esses espaços ainda são pequenas. Isto porque a criação dessas oportunidades depende do despertar para a ausência delas, mais fácil de acontecer quando o apagamento é sentido na pele.

Tanto Cristina quanto Sol e Miguelito afirmam ter conhecido poucos ou quase nenhum negro, indígena ou descendente de asiático que integrasse as equipes produtoras da teledramaturgia. “A contratação de atores não-brancos é só a ponta do iceberg”, diz Sol. “Lá dentro, estão produtores, diretores, autores, todos brancos. São eles que delimitam como cada personagem será. E autores brancos não escrevem papeis para atores não-brancos. Dentro de uma produção, o ator é apenas um funcionário, o que importa é quem está fazendo a produção acontecer”. O xavante completa: “A falta de profissionais indígenas nesta área impacta demais a representação das nossas etnias. Pois quem é índio, conhece muito bem a peculiaridade do seu povo, a sua cultura e tradição.”

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Assim, não é raro que esses grupos de atores se unam para fundar seus próprios espaços. Sol, por exemplo, faz parte do Coletivo Preto e do Segunda Black, dois projetos fundados para dar visibilidade para trabalhos de artistas negros e criar as oportunidades não fornecidas pelo mercado. Miguelito, por sua vez, se articula com os colegas por meio de um grupo no WhatsApp, onde repassam informações de trabalho.

Já Cristina é integrante do Coletivo Oriente-se, nascido justamente em razão de Sol Nascente. “Desde 2014 conversávamos sobre a realização de obras teatrais ou audiovisuais, mas com a novela, decidimos iniciar um movimento que já estava latente. Nada contra os atores, mas a prática do yellowface gerou um estranhamento geral, não só na comunidade japonesa”, ela conta.

E se a representação adequada é fundamental, sozinha ela não é o bastante. Para Sol, está mais que na hora de falar também de proporcionalidade. Em uma produção de cinema com dez protagonistas, ela exemplifica, é suficiente colocar um único protagonista negro? “Somos a maior porcentagem da população e se coloca só um negro? Se representatividade e proporcionalidade não andarem juntos, não avançaremos”, conclui.

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