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Conheça a escritora que escreve cantando — e encanta o Brasil

Autora do premiado Louças de Família, a escritora gaúcha também reflete sobre a influência do território entre o Brasil e o Uruguai na sua literatura

Por Paula Sperb
16 nov 2025, 05h00
Autora do premiado Louças de Família, a escritora gaúcha também reflete sobre a influência do território entre o Brasil e o Uruguai na sua literatura
Autora do premiado Louças de Família fala sobre novo livro, a influência do território entre o Brasil e o Uruguai na sua literatura e a conexão entre as palavras e a música (Divulgação/CLAUDIA)
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A voz de Eliane Marques soa como música enquanto fala sobre seus livros. A relação com as melodias é tão íntima que a escritora canta enquanto conversa com CLAUDIA. Oh, berimbau/pedaço de arame, pedaço de pau/juntou com a cabaça virou berimbau, entoa a gaúcha, no ritmo dos tambores do Olodum.

O romance premiado que resgata a memória afro-gaúcha

Seu celebrado Louças de Família (Autêntica Contemporânea, 2023) venceu o Prêmio São Paulo de Literatura, 2024, na categoria “melhor romance de estreia”. Nele, Eliane narra, com voz singular e inventiva, a trajetória de uma família afro-gaúcha. A personagem Eluma, tia da narradora Cuandu, trabalha como doméstica na casa de uma família tradicional — e branca. Com a morte de Eluma, a narradora tece uma trama de memórias ancestrais.

A linguagem da fronteira: o portunhol como identidade

Na obra, abunda um léxico específico da região da fronteira entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai. Eliane é natural de Santana do Livramento, cidade gaúcha no limite entre os dois territórios. Por isso, a linguagem do livro é repleta de termos em espanhol.

“Sou passiva diante dessa linguagem. Não sou eu que escolho. Ela já habita em mim desde antes do meu nascimento, quando eu estava na barriga da minha mãe”, diz.

A autora se refere ao chamado “portunhol”. Na fronteira, o termo, popularmente usado para identificar falantes do português que se arriscam em um espanhol improvisado, não tem cunho pejorativo. Ao contrário. Na região em que Eliane nasceu, “portunhol” é parte da identidade fronteiriça, com falantes que sabem tanto o português como o espanhol, mas que adotam uma terceira forma como dialeto.

“Doble chapa”: entre dois países e duas línguas

“Apenas com a saída da fronteira, quando tu passas a olhar de fora aquilo que tu mesma dizes, que tu te dás conta que tu és habitada por essas duas línguas, por esse portunhol. Só assim te dás conta de que tu és ‘doble chapa’”, explica. Os “doble chapa” são tanto aqueles que possuem dupla cidadania — brasileira e uruguaia — como aqueles cuja identidade cultural foi moldada pelos dois países.

Uma dicção única: neologismos, espanhol e memória afro-gaúcha

Somado aos neologismos como “minhatia”, “expaimeu”, os termos em espanhol tornam a dicção da narradora de Louças de Família inconfundível. Tal linguagem estabelece um diálogo direto com poemas de Oliveira Silveira (1941-2009). O poeta afro-gaúcho é especialmente lembrado neste mês de novembro, pois idealizou o Dia da Consciência Negra, celebrado nacionalmente no dia 20. Ainda que proposta por um gaúcho, a data não era feriado no Rio Grande do Sul até ser oficialmente incluída no calendário brasileiro em 2023.

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Louças de Família
Seu celebrado Louças de Família (Autêntica Contemporânea, 2023) venceu o Prêmio São Paulo de Literatura, 2024, na categoria “melhor romance de estreia” (Reprodução/Reprodução)

Palavra cantada: quando a música estrutura a escrita

Com sua literatura, Eliane joga luz sobre a história ancestral da população negra sul-rio-grandense, comumente apagada das narrativas. Foi ao falar sobre seu novo livro, Guanxuma — com lançamento programado para 2026 pela Autêntica Contemporânea —, que a escritora cantou a música Berimbau. Não raramente, as músicas regem a cadência dos escritos de Eliane. Foi o que aconteceu com uma cena específica de Guanxuma.

“Essa música entrou para o livro, na parte em que a personagem Eufrásia está lutando capoeira”, revela.

Corpo, movimento e escrita: a autora que corre ao som do samba

A própria autora já praticou a arte marcial e não abre mão da rotina de exercícios físicos. Eliane corre diariamente na Redenção, como é chamado o Parque Farroupilha, em Porto Alegre. As corridas são embaladas por sambas nos fones de ouvido. “Um dia estava assim, muito para baixo, escrevendo. Tocou um tambor e me levantou, né?”, conta sobre sua relação com a música influenciando o processo criativo.

Cada personagem tem uma trilha sonora

No próximo livro, a personagem Celestina também tem sua própria trilha sonora. Dona Celestina, me dá água pra beber/Se você não me der água/Vou falar mal de você, canta novamente durante a entrevista. A música da vez é Caxambu, de Almir Guineto.
A Celestina do romance cuida de uma cacimba de água. Ela é uma rainha Ginga, descrita com o requinte de seus trajes típicos.

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Moda, ancestralidade e poder: roupas como narrativa

As roupas, aliás, são objeto de atenção da escritora, seja na pesquisa para o livro seja no cotidiano. Em Louças de Família, há descrição de trajes deslumbrantes e vívidas. Em Guanxuma, as vestimentas tradicionais do século XIX no Rio Grande do Sul das culturas bantas, dos indígenas, dos libertos, receberam um cuidado especial.

“Eu simplesmente adoro moda. Esse gosto pelo bem vestir também é algo ancestral”, diz. “Minha mãe era uma mulher muito chique. Ela andava sempre maquiada, bem vestida, de salto alto, perfumada. Lembro que ela tinha uma cômoda com vários perfumes. Criança, eu abria, usava os perfumes. Mas comecei a me maquiar, digamos assim, com mais de 25 anos. Porque aquilo não era algo que parecia importante para mim. Mas, na verdade, era. O que eu fazia era reprimir aquilo como se fosse algo fútil e não é”, conta.

Fronteiras ancestrais

Na sua rotina de cuidados, agora a maquiagem é tão essencial quanto suas tranças. Ela frequenta o salão Tranças África. “Quando estou lá, é mais do que me trançar. Porque ali escuto o português de Angola. Eu escuto as músicas que tocam por lá, palavras que elas utilizam que não há no ‘pretuguês’ do Brasil, mas há no pretuguês angolano”, descreve.

Ela compara a experiência com aquela vivida pela personagem de Americanah, livro de Chimamanda Ngozi Adichie. “No salão onde ela vai, tem mulheres da África, da América Central. Ela fica ali falando, sendo ouvida e trançada”, diz. Antes de falar sobre a cena, Eliane abre parênteses para elogiar a autora: “Maravilhosa, com roupas de estilistas da Nigéria, sempre divina”.

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Entre poesia, direito, tradução e psicanálise

A gaúcha também publicou livros de poesia como Poço das Marianas (Escola de Poesia, 2021), vencedor do Prêmio Minuano, 2022, com poemas bilíngues em português e espanhol, e se alguém o pano (Escola de Poesia, 2015), que conquistou o Prêmio Açorianos, 2016 e Relicário (Grupo Cero, 2009).

Psicanalista e tradutora, ela é formada em Direito, área em que também tem mestrado. Depois de vencer o Prêmio São Paulo de Literatura, passou a participar de eventos literários. Eliane é auditora do Tribunal de Contas do Estado-RS, mas está em licença para terminar o livro.

Entre as leituras que a marcaram, cita nomes como Buchi Emecheta, autora da Nigéria, o marfinense Ahmadou Kourouma e o também nigeriano Chinua Achebe, autor de O Mundo Se Despedaça. “Esse livro me introduziu na literatura africana de um modo completamente irrevogável”, diz Eliane, sempre em busca de novas fronteiras.

Trecho inédito

Guanxuma tem lançamento previsto para maio de 2026, mas você já pode ler um pedacinho em primeira mão:

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Ao pressentir nas vísceras a presença de Eufrásia e Sebastião, kiama pareceu pedir amparo. Lançando-lhes um bufo, sacudiu os cornos meneou o rabo castigando‑se pelos flancos. Com a saliva, feito água da chuva, encharcou os buracos da pele deles. Dos braços. Água da chuva, a dádiva das divindades. E o bafo que escapou da boca-kiama tocou as argolas de ouro de Eufrásia. Desde então ela entendeu a expressão ouro purificado pelo fogo. E se apressou em saldar as dívidas de nascimento. Apressa-te em saldar as dívidas de nascença, ouviu não sabe de onde, uma dívida que gera marés feito mar e, à vazante, deixa a marca nas areias fósseis. E toco-toco, kiama também ouviu. Tinha bom ouvido. Mas. Perseguido pela turba mugrenta, toco-toco, pulou pro lado esquerdo. Toco-toco. O casal permaneceu impávido no meio da redoma de amor quebrada pela quentura bafenta. Sebastião padeceu duma indomável aflição. Foi invadido por um perfume de gardênias manchadas de menga que, num esforço, aprisionou na laringe. Eufrásia apertou os dedos dele, com força, deixando liberto apenas o polegar. Ela quis correr, quis ter raiva de seu ofício de lâmpada pequena, de suas mãos miudezas que sustentavam nada além das tarefas múltiplas de sempre. Ambos tiveram vontade de jogar tudo ao chão, tudo sobre o ponto riscado. Paft. Espatifado o tabuleiro. Paft. Espatifado o cântaro. E água. E kituutis esparramados. Oferecidos à bolsa faminta da terra. Uma oferenda. E a fuga abençoada. Seria uma boa oportunidade pra fuga. Retornar ao sítio que foi trono pra ele e pra ela, onde rainha ou súdito, escravizador ou escravizada, nunca saberiam se na obediência ou no mando radicava a calamidade. Eufrásia carregaria o banquinho. Lule, o amoroso. E a fútu. Sebastião a acompanharia com suas bochechas sujas de pão molhado. São as bochechas que fazem grande o rosto. Hum hum. São as bochechas. No entanto, permaneceram envoltos na polvadera enquanto a turba, em seu alarido, perturbava, e muito, a calada solidão do deus kilumbu.

Outro dia, pra frente, mbazi, naquele mesmo cruzo, se perguntaram do que quiseram fugir se alforriados havia anos.

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