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Clóvis de Barros escreve sobre sua filha em livro. Leia trecho exclusivo

O livro lançado hoje, 27, junto com Júlio Pompeu, traz ensaios de ficção e não-ficção

Por Da Redação
Atualizado em 27 ago 2020, 17h44 - Publicado em 27 ago 2020, 11h00

O jornalista Clóvis de Barros lança hoje, junto com o filósofo Júlio Pompeu, Tesão de Viver – Sobre Alegria, Esperança e Morte (Planeta). O livro mistura histórias reais e de ficção contadas em narrativas diversas, com ensaios que vão do cômico ao trágico. Aqui, Clóvis revela de antemão e com exclusividade para CLAUDIA trechos inspirados na filha.

 

Mal absoluto

Mas, como dizíamos, N. Macieira completara 4 anos. Ah, sim. Era esse seu nome. Desde o 5 de maio de 2002. Na verdade, desde muito antes. O consenso entre os pais nesse ponto nascera lá no primeiro teste da farmácia.

Em meio a doenças típicas da idade, naquele fatídico ano de 2006, caiu prostrada e seriamente enferma.

A combinação de sintomas constrangeu Alessandro, pediatra de todos os dias, de dentro de sua camisa de linho branco com casas vinho sustentando os botões, a enunciar dos diagnósticos, o pior: síndrome de Kawasaki.

Um vírus. Exclusividade de indivíduos dessa idade. Contraído não se sabe bem como. A literatura médica não é conclusiva, informou o doutor em fórmula que confere à ignorância alguma nobreza.

Se ficar como está, de boa, morre em dois anos. O vírus, é claro. Não a menina, tampouco o pediatra. É o quanto dura sua vida. E, nesse caso, tudo termina bem. Como se nada tivesse acontecido.

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Mas o danado pode resolver aprontar. Pôr-se em agitação. Exercitar-se. Desencubar, como se diz. Quando isso acontece, os danos são devastadores. Em especial para o coração de quem lhe dá abrigo. Não há sobrevida. Um vírus letal, portanto.

Meio dopada, meio sem entender, N. Macieira dirigia o olhar para a tela da TV. A alma sofrida da menina eclipsava toda percepção do mundo.

Que me perdoem os relativistas de plantão. Tantas vezes cobertos de razão. Estes que teimam em problematizar, opondo sempre algum “depende” ao argumento do interlocutor. Se fosse para apontar alguma certeza que não depende de nada, dessas impossíveis de discutir, não hesitaria em sugerir-lhes o sofrimento de uma criança. Eis o mal absoluto. Inquestionável. Sem concessões.

Unguentos amortecedores

O pai a fitava de longe. Seu pensamento o consumia. Arremessando-o do temor à esperança. E com mais força ainda, em sentido contrário. Aos tombos e fraturas sem unguentos amortecedores ou palavras de anteparo. A leitura enlouquecida de milhões de depoimentos na internet abastecia a mente de dados, empurrando com seu peso a gangorra dos afetos mais pra baixo do que pra cima.

Ali não havia dúvida. Corpo e alma conservam-se imbricados à morte. Trabalhando em parceria tão fina que acabam constituindo unidade. O pensar e o sentir não passam de formas diferentes de manifestação da mesma substância. A mesma tristeza que agride o corpo, retorcendo suas células, turva a mente com conteúdos monstruosos.

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E não há soberania de um sobre o outro. Entre o pensar e o sentir. Tampouco vassalagem. Parecem mesmo correr em paralelo. A cada unidade de tristeza corresponderá algum devaneio obscurecido. Tanto quanto o inverso. Na alegria, sempre mais rara, acontece o mesmo. A potência em alta empurra a mente para o imaginar mais agradável, o pensar mais otimista.

Entre as coisas da mente e as sensações do corpo, não há que buscar anterioridade de causa e efeito. Por isso, nem o pensar controla o sentir, desmentindo os mais ingênuos moralistas, nem o sentir controla o pensar, negando as mais firmes suspeitas de todos os doentes apaixonados por indivíduos que não lhes dão a mínima bola.

Proposta de 20 × 1

No cume da dor e do desalento, o pai pensa, crendo dialogar. Oração, como dizem muitos. Por que uma força superior, dessas que tudo podem, não opera uma singela substituição de corpos e não transfere o tal vírus da filha para si próprio? Por quê?

Ante a ineficácia da primeira proposta, o pai dobra a aposta. Faz mais. Multiplica por vinte. Sim. Vinte crianças com o mesmo tipo de vírus. Sugeria a transferência de todos os danosos animaizinhos de seus corpos para o seu próprio. É claro, com a inclusão da filha no seleto grupo.

Ali, aquele pai ganhou em sabedoria. Trouxe para a consciência o que a sua própria estava a protagonizar. Pensou sobre o próprio pensamento. Refletiu a respeito da própria reflexão. Em plena consciência da consciência. Que já indicava o terceiro degrau. Num recuo sem fim. Rumo ao abismo sem chão.

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A vida do pai não era, naquele momento, para ele próprio, o bem de maior valor. Portanto, concluiu o sofrido genitor, há valores que superam o valor da vida. No caso, a vida da filha.

Paradoxal. Afinal, para que esses supervalores possam ter algum valor, é necessário estar vivo, não? Pelo menos para identificá-los. Fazê-los triunfar. Para escolher morrer em nome de algo, é preciso estar vivo. É em vida que a vida poderá ser preterida. Estranho que qualquer coisa supere em valor a sua condição. Se dela depende.

Sócrates, Jesus e o suicida

Sócrates foi preso. Condenado à morte. Teve a oportunidade de fugir. Mas, ainda em plena vida, preferiu a condenação. Optou pela cicuta. Em nome de uma ideia de justiça. De cidade justa. De certa dignidade que requer respeito às leis dessa cidade. Incompatível com toda fuga.

Jesus, a supor só um fiapo de divindade, poderia ter aniquilado seus detratores. Escolheu deixar-se crucificar. Foi em vida que decidiu morrer por todos nós. Em nome do amor. Pela humanidade. E de sua salvação. Tanto para o grego como para o judeu, a justiça e o amor valiam mais do que seguir vivendo de qualquer jeito.

O suicida encontra na própria vida, e não mais na cidade e na humanidade, o valor que supera a sobrevida. Um valor de eliminação do negativo. E como menos com menos dá mais, entende a solução escolhida como superpositiva. Ao abreviar a própria existência, troca o sofrimento avassalador da vida vivida pelo fim do sofrimento. Abre mão da dor já instalada pela morte, onde, supõe-se, não haja nenhuma.

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É claro que, ao matar o corpo que sofre, mata todo o resto junto. A admiração pela esposa, defensora pública, aguerrida e idealista. O amor pelo filho que mora na Holanda e trabalha com entretenimento. A compaixão pela irmã mais velha, de quem sempre fora provedor.

Abre mão também da amizade mais duradoura. Daquela camaradagem tão antiga quanto a própria lembrança. Do companheiro de futebol de botão e das experiências inaugurais na tia Olga. Do Corcel de todo sábado. Da rua Batatais. Da major Diogo. Do Heróis do Mar. Da parceria para tudo que um dia coloriu a vida.

Como abrir mão do Narduzzo, do Moretzsohn, do Gordo, do Joel?

Naquele instante, somando tudo, noves fora, o suicida acha que compensa. Que vale mais a pena. Que vale mais. Que vale. Pela eliminação. Pela extinção do ruim. Do insuportável. Do inaguentável.

Cala-boca no bichinho

O pai de N. Macieira a queria viva. E oferecia a própria vida em troca. Sofria também. Como todo suicida. Mas não cogitava morrer por causa disso. O fim do próprio sofrimento era irrelevante. Pensava, sim, em salvar a filha. Morreria por amor. Porque para um eu como ele, o outro pode valer muito. E a vida deste, mais do que a própria.

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E o leitor sabe disso. Faria igualzinho a esse pai. Sem tirar nem pôr. Se alguém ameaçasse aquele que você ama, também se poria na frente. Para receber o golpe em seu lugar. Ofereceria o próprio corpo em escudo. Receberia a bala que não lhe era destinada.

N. Macieira curou-se. Seu vírus permaneceu dormente. Jamais se saberá por quê. Se o interlocutor do pai, piedoso, vendo seu desespero, resolveu dar o cala-boca no bichinho sem cobrar-lhe nenhum sacrifício adicional.

Ou se, na ausência de interlocutor real, de avaliador externo ou de força transcendente com incidência sobre microanimais, as coisas deram seu próprio jeito. E, em meio às infinitas relações de causalidade, na complexidade abissal da vida e do mundo, tudo seguiu seu fluxo como só poderia ser. Zombando de todas as estratégias. Mas de um jeito igualzinho ao esperado pelo pai, pela mãe, pelos irmãos e, com certeza, por N. Macieira ela mesma.

Amabilidade que não luzia amiúde

Era aniversário. N. Macieira já deixara longe nos calcanhares os tempos de 4 anos. E Kawasaki já era dado curricular. Troféu de superação. Uma vitória a mais sobre mundos entristecedores. Pediu ao pai para celebrar em casa mesmo. Queria mostrá-la aos colegas.

Pedidos assim era sempre ao pai que os dirigia. Porque dele tinha certeza de arrancar, vez sim e outra também, a completa aprovação. Com efeito. Aquele bonachão era um entusiasta de todas as suas ideias. Ia além da simples permissão. Viabilizava. Aplaudia. Garantia os bastidores. Radicalizava, às vezes. Mas nunca deixava dar ruim.

Vieram 39. Só o Fujita, que conhece pássaros como poucos, não pôde comparecer. Morrera uma tia em Tupã. Ele teve que acompanhar os pais. Estava inconsolável. Não pela morte da tia, de quem ele nem lembrava direito. Mas por faltar no níver de N. Macieira. Eram muito amigos os dois. Confidentes até.

Quanto aos demais, chegaram quase juntos. Era sempre assim, quando vinham direto da escola. Naquele dia, quiseram subir todos no primeiro elevador. O que não foi possível. Ocasião de atrito físico entre os que já estavam no seu interior e os que faziam questão de se juntar a eles. Só uns quinze resistiram vitoriosos.

Entre eles, dona Nerly, a primeira a entrar. Moradora quase centenária do 141, cuja amabilidade não luzia amiúde no trato com os demais condôminos. Ameaçou, esganiçada e previsível, no aconchego bem justo dos corpos febris, fazer reclamação formal ao síndico. Aquilo não ficaria assim. Recebendo em devolutiva estridente apupo.

Os outros, empurrados e chutados pra fora do elevador, não queriam consentir com o fechamento da sua porta. Mas acabaram se conformando em subir no próximo. Uns dois minutos depois.

Criança é como água

Não conheço onde vive o leitor. Refiro-me a não ter ideia das dimensões da sua morada. Mas na casa de N. Macieira, ali mesmo na rua Itacolomi, quase na avenida Higienópolis, 39 criaturas a mais, assim de supetão, dava pra notar suas presenças.

O pai lembrou-se de um poema que lera num livro de filosofia. Poetisa húngara, ou seria búlgara, não tinha certeza. O refrão dizia, a crer no filósofo que se servia do exemplo, que criança pequena é como água, ocupa todos os espaços.

Acuado, trancou-se no quarto. Mas a poetisa parecia ter mesmo razão. Todos os espaços. E N. Macieira solicitou-lhe também aquele quarto para a brincadeira. Cheio de zelo para não entristecer a filha, sobretudo naquele dia, pergunta onde ela esperava que ele ficasse.

— Sabe, não quero atrapalhar o jogo de vocês, de jeito nenhum.

Ao que ela de pronto respondeu:

— Você não gosta tanto da padaria? Vai pra lá e leva o celular. Quando acabar eu te chamo.

Tudo isso dito com doçura de intuição cirúrgica. Sabia conduzi-lo pela ponta do nariz. Com direito a papaizinho lindo, no final.

Ameba cheia de amor

O leitor de estilo mais centrado nas próprias prerrogativas se impacienta e pergunta:

— Que espécie de ameba passaria três horas de sábado à tarde no balcão do bar de uma padaria tomando um café emendado em outro, à espera de que uma criança o autorize a voltar para sua própria casa?

Pois esse tipo ideal de frouxidão nas relações familiares, espécie de paradigma de acefalia e falta de autoridade, cujos desejos e pretensões cabem sempre no frasco de formato escolhido pelo outro, esse é mesmo o pai de N. Macieira.

No retorno ao lar, descadeirado pelo banco sem encosto, foi recebido pela filha. E essa, porque ama aquele pai só menos um restinho de régua do que a mãe, dispara sem dó:

— Adorei minha festa, papai. Graças a você, me diverti demais. Meus amigos também gostaram muito.

Já teria bastado para umedecer-lhe os olhos. Mas a menina não se deu por achada e prosseguiu:

— Aliás, eu queria te dizer outra coisa: eu adoro ser sua filha.

Vixe. Aí o coitado desabou. Teria ficado uma semana penso no balcão para ouvir aquela declaração outra vez. Foi para o quarto e só saiu na manhã seguinte. Com a cara inchada. De quem vivera até ali apenas se preparando para alcançar aquele estado de ameba. Deformada em devoção e carinho. E pronto para tudo repetir. Só pra ver a filha sorrir outra vez.

Conversando sobre notícias ruins com as crianças

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