Bela Índigo: o brilho e o talento de Liniker
Liniker busca honrar a si mesma e aos seus desejos. Nesta conversa, ela conta sobre o momento atual da carreira ao celebrar conquistas históricas
Liniker reluz. E para além das roupas de paetês e acessórios com cristais brilhantes. Seu sorriso é o mais resplandecente, daqueles de quem se reconhece no melhor momento da sua vida até aqui (e sente que o futuro guarda boas revelações). Ela retorna aos palcos e aos abraços do público com seu primeiro álbum solo, Indigo Borboleta Anil, lançado em setembro de 2021, num movimento de retomada e de balanço, na turbulência de viver uma pandemia sem precedentes. “Eu estou livre, liberta, de fato feliz. É o disco no qual mais pauto meu desejo em si. Até usando uma analogia política, é o disco no qual me sinto alforriada”, diz ela, fazendo o gesto de soltura com as mãos. Em turnê nacional, ela conta que, no próximo ano, vai rodar o mundo com o álbum – no YouTube Black Voices, a cada semana é possível acompanhar registros audiovisuais com versões exclusivas de seis faixas (a primeira foi a envolvente ‘Baby95’).
O álbum, co-produzido por ela ao lado de Júlio Fejuca e Gustavo Ruiz, foi uma ferramenta de cura que somou-se à chegada de outras possibilidades, como o protagonismo em Manhãs de Setembro, produção brasileira da Amazon Prime Video que fez a artista reacender sua chama da atriz – aos 18 anos, ela deixou Araraquara, no interior de São Paulo, para mergulhar “no fundo do oceano” e estudar na Escola Livre de Teatro, em Santo André. “Sempre quis fazer cinema. E essa série é um cometa. É a primeira vez que vejo a história de uma mulher trans com família, amigos, emprego, vida para além do estereótipo de uma pessoa trans no Brasil que já vimos audiovisualmente”, comenta. Nos episódios, acompanhamos a personagem Cassandra na busca de realizar o sonho da independência ao viver com música em São Paulo (a segunda temporada chega no próximo semestre). O elenco ainda reúne Seu Jorge, Ney Matogrosso, Karine Teles e Gustavo Coelho.
Desde seus primeiros mergulhos na arte, a mulher que queria ser estrela de cinema foi levada por outras marés. Diz que foi raptada pela música, num gesto “de repente, mas que era pra ser”. E era mesmo. Em 2015, ela ganhou projeção nacional com o grupo Liniker & Os Caramelows, lançando o EP Cru. Mais tarde, vieram Remonta (2016) e Goela Abaixo (2019), indicado ao Grammy Latino.
“Acredito na minha ancestralidade como estímulo à mudança. É se conectar com um lugar sensível, de memória, intuição e poesia”
Hoje, aos 26 anos, Liniker conserva fidelidade enleada na potência mais transformadora da vida: aquilo que nomeamos de amor. Abraça sua fé – ela é candomblecista – porque sabe que, sem isso, não é possível viver. “Acredito na minha ancestralidade como estímulo à mudança. É se conectar com um lugar sensível, de memória, intuição e poesia.” Ela recebeu a CLAUDIA para uma conversa honesta. Em seus olhos, era possível ver todas as Linikers em uma só. Afinal, talvez a gente mude justamente para abraçar quem sempre fomos e permanecer.
A faixa Antes de Tudo, em Indigo Borboleta Anil, foi escrita quando você tinha 16 anos. O que mudou de lá para cá?
Foi a primeira música que escrevi na vida. Ela veio num momento que precisava lembrar quem eu era, sem tanta violência racial que atravessou minha vida. A minha criança interior falando “não esqueça de onde você vem, o que você quer ou não, quais os desejos para o seu futuro”. É uma canção profética, veio para ser bússola desse momento de carreira solo.
Como foi o processo de elaboração do álbum?
Estava um pouco perdida emocionalmente, precisando me reencontrar. Fazendo essa ponte com “Antes de Tudo”, era a música falando: esse tempo todo você está trabalhando para as pessoas, ganhando seu dinheiro, tendo reconhecimento. Mas também chegou a hora de olhar para si e colher os louros. O corpo está no presente, a gente precisa cuidar do agora. O disco nasce na intenção de cura, e ele é meu. Por mais que eu seja a compositora dos outros dois, pela primeira vez sinto que me peguei no colo, que pude escolher.
Você tem 680 mil ouvintes por mês no Spotify, mais de 970 mil seguidores no Instagram, a versão de Baby 95 ao vivo teve mais de 50 mil views no YouTube em poucos dias. Os números te assustaram alguma vez?
Eles não me assustam porque, de fato, gosto da qualidade do que eu produzo. Porém, me assusto quando faço um recorte comparado com artistas brancos, sejam homens, mulheres ou não binaries. O Brasil é extremamente racista, machista, misógino, classista. O fato de eu ter esse tanto de gente sendo uma pessoa trans é uma glória? Sim. Deveria ser maior? Deveria. Tudo que eu tenho hoje foi uma construção de quase oito anos. E eu não tenho um milhão de seguidores no Instagram. Existem os que fazem uma música, aparecem uma vez, e, de repente, têm três, cinco milhões [de seguidores]. Quando a gente vai ver na balança da racialidade e na política, essas pessoas, muitas vezes, estão lá porque são brancas, não porque são talentosas. Fico feliz pelas minhas conquistas, mas existe um boicote social e da indústria. Agora, eu sinto que está mais cotidiano ver pessoas negras abundantes, por mais que ainda seja pouco.
Sobre a vida de atriz: o que podemos esperar da segunda temporada de Manhãs de Setembro?
A próxima temporada segue no conflito familiar, mas com um elenco novo. O público deve se emocionar mais do que na primeira. E o que me faz gostar da série é que ela não te dá os sentimentos de forma mastigada, você precisa prestar atenção, como na vida. Não dá para definir alguém sem ter mais de um ponto de vista. A Cassandra não é vilã, boazinha, mocinha. Ela é humana.
Você está na capa da CLAUDIA pela segunda vez. O que isso significa para você?
A CLAUDIA foi a primeira revista grande em que fui capa [em 2020], na data tão importante do Dia da Mulher. Poder voltar nesse novo momento, mais à vontade, é um presente. Estar aqui é conseguir quebrar as barreiras de estereótipos de onde estão pessoas negras e trans. É muito bom estampar a capa falando sobre vitória e conquistas. Se fosse depender da sociedade, eu sempre estaria sendo a história de superação, de “como é ser uma pessoa trans e uma mulher negra?”. Eu tenho outras coisas para falar, discos para indicar, conheço demais culturas, viajo o mundo.
Qual sua relação com a política, para além do voto em outubro?
Meu partido é a cultura e, dentro disso, não tem como não ser política. E torcer para que esse desgoverno se rompa. Quero que a gente volte a brilhar um pouco; consiga comer direito; tenha outras projeções; veja as pessoas bem, com moradia, sendo felizes e com esperança. É muito importante entendermos que políticas públicas são uma das chaves de mudanças.
Angela Davis disse que “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. O que você, Liniker, sente que está movimentando no mundo?
Acho que estou movimentando o que eu não vejo ainda. Sei que minha música chega a lugares e pessoas que nunca vi, é essa sensação de movimentar desejo, coragem, esperança, sonho, coisas que a gente nem tem palavras. E quando olho para o lado, vejo que não estou sozinha, têm muitas políticas e pensadoras negras, não só no Brasil. Sou da mesma geração da Djamila Ribeiro, Grada Kilomba, Linn da Quebrada, Luedji Luna, Tássia Reis, Erica Malunguinho, Erika Hilton e de tantas outras. Fico com a sensação de que estamos abrindo mares, literalmente.
“Estou tentando ver o amor numa lógica em que não quero mais achar que ele só acontece a partir do sofrimento. Quero viver uma abundância de amor”
Como é seu processo de autocuidado físico e psíquico, de amor próprio?
Terapia, cuidados espirituais e manutenção de vitalidade e força. Ter tempo para mim é uma das coisas que mais reivindico. Quero ter qualidade de vida. Estou a fim de cuidar de mim. Amor próprio não tem que ser uma obrigação, mas é uma prática. E a partir do momento que você conhece e se relaciona com isso, não dá para voltar atrás. Não sou uma pessoa que se ama propriamente todos os dias. Mas é um lugar de exercício.
Em Tudo Sobre o Amor, Bell Hooks fala sobre o amor como uma decisão. O que você pensa sobre ele?
Sou canceriana, então o afeto e as relações são uma força motriz muito grande, tanto pelo que escrevo quanto pelo que vivencio. Estou tentando ver o amor numa lógica em que não quero mais achar que ele só acontece a partir do sofrimento. Quero viver uma abundância de amor. Quero poder ser amada, beijada, tocada, e tocar com tesão. Tenho amor pelas minhas paixões, que me deixam em lugares ora confusos, ora brilhantes. E isso é estar viva.
FOTOS Caia Ramalho
STYLING Dani Ueda
BELEZA Artur Figueiredo
CONCEPÇÂO VISUAL Kareen Sayuri