13 de maio não é dia de negro?
A escravidão nada mais é do que uma ferramenta do sistema capitalista e o racismo continua sendo constitutivo desse sistema moderno
E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome.
Carolina Maria de Jesus, livro Quarto de Despejo.
Eu tinha chegado à conclusão que eu não iria escrever nada sobre o dia de hoje. Nada de textos no Facebook, story no Instagram, nem comentar com amigos próximos. Já estava muito bem estabelecido para mim que o dia de hoje não carrega significados festivos e celebrativos, muito pelo contrário. Conversando com meu pai pela manhã, quando ele percebeu o dia que era hoje, ele me disse que fazia questão de esquecer essa data, “quando eu era menino eles me falavam na escola: é neguinho se não fosse por essa data, era pra vocês estarem urrando hoje”. Como não escrever algo sobre hoje depois desse depoimento? Há memórias traumáticas que o trabalho do tempo não dá conta de apagar, e pensando em sofrimentos e lutas coletivas, há saberes e reflexões que devem ser compartilhados, por isso resolvi escrever.
Hoje fazem 132 anos da Lei n.º 3.353 de 13 de maio de 1888, conhecida como Lei Áurea, que oficializou a extinção da escravidão no Brasil. Numa rápida pesquisa no Google e na boca de muitos brasileiros e brasileiras seria um dia para vangloriar a Princesa Isabel. Uma mulher assinar uma lei, em um mundo patriarcal que as invisibiliza das histórias oficiais, ainda mais em 1888, não é algo comum de lermos na história política do país, mas isso não a faz protagonista desse dia. E inclusive, afirmar isso é compactuar com a invisibilidade da luta de várias personalidades negras. A abolição acontece em um contexto que a libertação já estava em curso, o Brasil foi o último país do Ocidente a abolir a escravidão e o faz por questões econômicas, políticas e por pressão de uma luta intensa e incessante de muitos negros e negras. Vou exemplificar e nomear para não esquecermos: Adelina, Maria Firmina dos Reis, Luís Gama, José do Patrocínio entre muitos outros. Além de várias revoltas e levantes como a Revolta das Carrancas de 1833, a Revolta dos Malês de 1835, A Greve Negra de 1857. Mas a liberdade não é concedida se não é permitido condições mínimas de sobrevivência e de inserção na sociedade, por isso a ideia de uma falsa libertação, já que não houve emancipação.
132 anos é algo muito recente se pensarmos o quão desumanizante e extremamente violento e genocida foi o regime escravista que durou por mais de três séculos. Um sistema que deixou raízes profundas, uma “herança maldita”, nos padrões mentais e institucionais brasileiros marcados por serem racistas, autoritários e violentos, que continuam desumanizando, objetificando e descartando corpos negros
Pensando em alguns dados atuais,
50,7% das mortes de crianças de até 5 anos, por causas evitáveis em 2017, foram de crianças negras. (Ministério da Saúde)
65% da população negra estava desempregada em 2018 e apenas 29,9% dos cargos gerenciais foram exercidas por pessoas negras. (Estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, do IBGE.)
65% das pessoas privadas de liberdade são negras. (Depen)
A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no país. (Atlas da Violência 2017)
61% das mulheres que sofreram feminicídio no Brasil eram negras. (Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019)
O Movimento negro durante todo o século XX, e ainda hoje, transforma o 13 de maio de uma data oficialmente idílica em um dia de crítica, luta, reflexão e denúncia do racismo. Mas também seria ingênuo justificar que o racismo atual só tem como origem a escravização do passado. A escravidão nada mais é do que uma ferramenta do sistema capitalista e o racismo continua sendo constitutivo desse sistema moderno.
Pensando então na contemporaneidade, no contexto de pandemia, crise política instaurada não há pouco tempo e avanço da extrema direita, é fundamental pensar que só é possível termos algo próximo a tão sonhada liberdade em voga desde 1888, e termos algo próximo a um Estado democrático de direto, se houver uma denúncia não só ao racismo, mas também ao capitalismo e ao neoliberalismo. Mas para o início, a tomada de posições antirracistas são inevitáveis, como exemplo, a implementações de ações afirmativas no mercado de trabalho – para além do âmbito público, pensando também à nível privado; políticas de saúde que atenda as especificidades da população negra; ações contra a violência religiosa às religiões de matriz africana; e uma educação que consiga, na prática, abranger e emancipar toda a diversidade da população negra, que é multifacetada.
Por fim, hoje não é um dia de comemoração, temos – nós pessoas negras e também as pessoas não negras – um longo caminho pela frente.
*Elisa Hipólito do Espírito Santo é antropóloga graduada pela UFMG e mestranda em Antropologia na USP.
Todas as mulheres podem (e devem) assumir postura antirracista: