Idade da carne: vacas velhas ganham status de luxo na gastronomia
Diferentemente do que se tinha como senso comum, a carne de vacas mais velhas não é necessariamente dura; pelo contrário, pode ser uma verdadeira iguaria
O nome é curioso e pode remeter a uma característica negativa quando trata-se de carnes. Porém, a carne de vaca velha nunca foi tão valorizada e o motivo disso está no segredo de sua qualidade. Sim, as vacas velhas estão ganhando cada vez mais destaque no mundo da gastronomia. Essa tendência, que pode parecer contraintuitiva à primeira vista, se deve a uma série de fatores que conferem características únicas e altamente apreciadas a esses cortes.
Esse movimento acontece a partir de um gado tipicamente abatido após seis anos de idade, quando a carne atinge um perfil único de sabor e textura, principalmente devido ao processo de maturação conhecido como dry aging.
O que torna a carne de vacas velhas tão especial?
Diferentemente do que se tinha como senso comum, a carne de vacas mais velhas não é necessariamente dura. Pelo contrário, quando bem preparada, ela se torna mais rica em sabor e textura.
O segredo da vaca velha de qualidade está na junção de muitos fatores. “Começa com uma boa genética. Após um ciclo de vida favorável que essa vaca tenha passado, sem muito estresse, em pastos de qualidade e com diferentes capins para seca e cheia, prevendo todas as estações do ano”, detalha Jean Clini, idealizador do Urus Steakhouse, restaurante instalado em São Paulo que serve cortes de vacas velhas desde 2017.
Clini começou essa jornada no Mato Grosso, estado conhecido por sua produção de gado de alta qualidade, e em 2022, trouxe o conceito para a capital paulista. A grande estrela do Urus é a carne de vaca velha criada 100% a pasto, o que confere uma carne rica em nutrientes essenciais, como o ácido linoleico conjugado (CLA) e antioxidantes como a glutationa.
A iniciativa de se especializar nas vacas velhas veio do desejo de fazer algo contrário às tendências do mercado. “Não queria criar mais do mesmo, mas sim trazer ao consumidor brasileiro as mesmas carnes que são consumidas nos melhores restaurantes de carne da Europa. Sempre tive um paladar muito elaborado para carnes, em especial depois de toda minha vivência nos EUA e Europa, tenho a certeza de estar entregando uma carne no potencial máximo do gado disponível no Brasil. E como sempre digo: paladar não retrocede.”
No início, o principal desafio foi preparar o mercado para entender o conceito e lidar com o preconceito com as vacas abatidas mais tardiamente. “Principalmente dos produtores, pelo desconhecimento, até o consumidor final, que dependendo da idade desconhece esse processo, que era muito utilizado na década de 1980 e 1990. Esbarrava na falta de conhecimento de maturação, e assim a carne lá atrás ficou conhecida como ‘carne dura'”, relata sobre o início da empreitada.
“No Brasil, a ‘carne de qualidade’, como conhecemos hoje, foi trazida por um fast food internacional, que fez uma propaganda massiva em torno desse hambúrguer, diferenciado pela maciez, no começo dos anos 2000. Cabe a nós, restaurateurs da carne, ensinar e mostrar que existe algo novo e de qualidade superior disponível para esse cliente”, complementa.
O processo e características da vaca velha:
- Marmoreio: Com o passar dos anos, as vacas desenvolvem um marmoreio mais intenso, ou seja, uma maior quantidade de gordura entre as fibras musculares. Essa gordura é fundamental para a maciez e o sabor da carne, conferindo uma textura mais suculenta e um sabor mais complexo.
- Maturação: A carne de vacas velhas se beneficia de um processo de maturação mais longo, que intensifica os sabores e torna a carne mais macia e saborosa.
- Sabor: A combinação do marmoreio e da maturação resulta em um sabor mais profundo e uma experiência gastronômica mais rica.
- Raridade: Por ser um produto menos comum e com um processo de produção mais longo, a carne de vacas velhas é considerada uma iguaria e, portanto, mais valorizada.
Entendendo o método grass-fed
O método grass-fed, ou alimentado com pasto, é uma novidade no Brasil e está conectado à carne de qualidade. No Urus Restaurante, o gado é criado 100% a pasto, por no mínimo 36 meses, em um manejo sustentável. O gado recebe suplementação à base de silagem, com núcleo de minerais e cereais produzidos na própria fazenda. Esse processo resulta em uma carne com intensificação de sabores, refletindo a memória muscular do animal criado em condições naturais.
Segundo Jean, o método utilizado no seu restaurante é um modelo de criação que prioriza o bem-estar animal e a sustentabilidade ambiental. O processo não apenas resulta em uma carne mais saborosa e nutritiva, mas também contribui para a preservação dos recursos naturais, utilizando práticas de pastoreio que evitam o desgaste do solo e reduzem a necessidade de fertilizantes e pesticidas.
“Após esse processo, vem o causa mortis, que deve ocorrer sem estresse, onde a carcaça somente sairá do frigorífico após 72 horas ou, em alguns casos, até mais, pois precisamos controlar o PH da carne. Quando a carcaça está com o PH controlado, ela é refrigerada na temperatura certa e enviada para desossa”, resume o empreendedor. “No restaurante, possuímos uma câmara de maturação especial, onde efetivamos vários controles dessa carne para que ela tenha as fibras rompidas e mature por, no mínimo, 21 dias, para a raça Caracu, e 14 dias para o Angus. Assim, garantimos o real e máximo potencial da carne, sem que haja alteração dos sabores de dry aged“, explica.
O empresário explica que esse processo não é uma “receita pronta” para obter uma carne de qualidade, afinal, cada raça tem suas características próprias, que se moldaram ao longo do tempo.
“O Caracu, por exemplo, tem uma concentração de ferro muito maior do que o Angus, sendo assim uma carne mais terrosa, que resulta em um sabor mais pronunciado, especialmente nas partes dianteiras e dorso do animal. Porém, ela tem 1,5 pontos a menos de marmoreio do que o Angus, portanto, é necessário um processo muito mais complexo de controle de temperatura, umidade e de mais tempo para que haja a quebra da fibra e, consequentemente, uma maciez maior – ao qual o mercado brasileiro está acostumado”, explica.
Segundo ele, no Brasil é mais comum o consumo de novilho precoce: “Porém, a vaca velha, se o processo de maturação for feito corretamente, traz muitas vantagens em relação a esse novilho, em termos de complexidade de sabor”.
Jean Clini enfatiza ainda que esse é um processo demorado, caro e que demanda muita atenção e investimento para que haja um equilíbrio perfeito entre a maciez e sabor. “Após 20 anos de projeto, temos a certeza que conseguimos aproveitar o potencial máximo da carne de nossos animais”, conclui.
Urus: a primeira raça bovina domesticada pela humanidade
O Urus, também conhecido como Auroque, se destacava pela sua imponência e robustez e deu origem a todas as raças bovinas domesticadas existentes hoje. Embora extinto desde 1637, suas características sobrevivem nas raças mais aclamadas da Europa, incluindo as raças ibéricas, reconhecidas pela alta qualidade da carne.
No restaurante homônimo, comandado por Jean Clini, diversos fatores determinam essa qualidade, incluindo a raça bovina, o processo de criação (grass-fed), o sistema de abate e a maturação controlada da carne. “Esses elementos são cuidadosamente combinados para garantir a maciez, suculência, cor e marmorização ideal de cada corte servido”, pontua o empresário.
Mudança de percepção
Além da tecnolgoia, alguns fatores têm colaborado para essa mudança de ponto de vista sobre a vaca velha. Alguns deles são:
- Pesquisa e desenvolvimento: Estudos e pesquisas na área da pecuária e da gastronomia têm demonstrado os benefícios da carne de vacas velhas.
- Consumidores mais exigentes: Os consumidores estão cada vez mais interessados em experiências gastronômicas diferenciadas e estão dispostos a pagar mais por produtos de alta qualidade.
- Sustentabilidade: A utilização de animais mais velhos para o consumo pode ser vista como uma forma mais sustentável de produção, pois diminui o desperdício de alimentos.