Como a quarentena pode ensinar nossos filhos a serem mais solidários?
A quarentena pode ser um momento para pararmos e darmos mais atenção para os membros da nossa família
E as pessoas ficaram em casa
E leram livros
E ouviram
E descansaram
E se exercitaram
E fizeram arte
E brincaram
E aprenderam novas maneiras de ser
E pararam
E ouviram fundo
Alguém meditou
Alguém orou
Alguém dançou
Alguém conheceu sua sombra
E as pessoas começaram a pensar de forma diferente
E pessoas se curaram
E na ausência de pessoas que viviam de maneiras ignorantes,
Perigosas, sem sentido e sem coração,
Até a Terra começou a se curar
E quando o perigo terminou
E as pessoas se encontraram
Lamentaram pelas pessoas mortas
E fizeram novas escolhas
E sonharam com novas visões
E criaram novos modos de vida
E curaram a Terra completamente
O poema acima foi escrito pela irlandesa Kitty O’Meara durante o isolamento que realiza em sua casa, nos Estados Unidos. Depois de ser compartilhado nas redes sociais, o texto viralizou e Kitty passou a dar entrevistas para jornais e revistas do mundo inteiro. E acho que não é à toa que o poema fez tanto sucesso. Sua mensagem é muito forte e tem muito a ensinar a nós, adultos, e a nossas crianças.
Como já disse em outros textos da coluna, acredito que a quarentena pode ser um bom momento para olhar em volta e pensar na forma como nos relacionamos uns com os outros. Podemos começar essa reflexão pelas ações de solidariedade que temos visto no Brasil e no mundo nesses tempos de isolamento social. Se você abrir os jornais ou buscar na internet por “solidariedade na quarentena”, verá diversos exemplos de pessoas que têm dedicado tempo, recursos ou até mesmo o seu know-how para ajudar o próximo.
Nas últimas semanas, vi alunos fabricando máscaras para doar para hospitais, refugiados da Síria oferecendo marmitas de graça para pessoas em grupos de risco, voluntários se mobilizando para levar cestas básicas para os mais vulneráveis, pessoas que se colocam à disposição para fazer compras para idosos, professores de ginástica dando aulas na internet, artistas fazendo lives no Instagram, entre tantas outras ações.
Essas pessoas dispostas a ajudar são cidadãos comuns, de idades variadas, que fazem a diferença a partir de pequenos gestos. E essa mensagem pode ser de grande aprendizado para as nossas crianças. Os jovens são muito movidos pelo exemplo. Quando veem que uma pessoa ajudou um hospital inteiro apenas doando máscaras, eles se dão conta de que não são apenas os adultos ou as pessoas com status e importância que podem fazer algo pelo outro. Eles mesmos podem ser agentes da transformação.
Esses processos podem começar em casa, por meio de conversas dos pais com os filhos. De maneira natural e despretensiosa, os adultos podem trazer exemplos de solidariedade que viram ao redor do mundo. Na mesa do jantar, por exemplo, o pai pode, descontraidamente, perguntar: “Vocês viram a notícia de que uma família de refugiados da Síria está distribuindo marmitas para pessoas em grupo de risco?” ou “O que você achou da ação daqueles estudantes, que fabricaram máscaras para doar para hospitais
Quem sabe, a partir de uma conversa como essa, eles não se sintam inspirados a fazer algo positivo pelo mundo? Talvez não tenham ações práticas agora, durante a quarentena. Mas esse bate-papo pode ser a semente, ou seja, o pontapé inicial para que comecem a pensar sobre o assunto e, no futuro, decidam fazer algo para o próximo.
Onde queremos estar?
No meio de tantos memes, vídeos e mensagens que recebi em minhas redes sociais nas últimas semanas, um dos conteúdos que mais me marcaram foi um gráfico sobre como diferentes tipos de pessoas reagem aos desafios que estamos enfrentando. De acordo com o diagrama, muitos indivíduos ainda se encontram no estágio da zona do medo – estão constantemente irritados e contra o mundo todo; outros estão na zona de aprendizagem – confiam no sistema e não tentam ficar no controle, pois entendem que nem tudo está em suas mãos; e, por fim, há as pessoas na zona de crescimento, aquelas que, no meio dessa confusão, conseguiram encontrar um propósito e ajudar o outro. Estas estão conseguindo se transformar e transformar os outros – e acho que é esse último grupo que deve servir de inspiração para os nossos filhos.
Ao mesmo tempo, nem sempre precisamos ir muito longe para fazer uma boa ação. A quarentena, como eu já disse nessa coluna, pode ser um momento para pararmos e darmos mais atenção para os membros da nossa família – conversar mais, trocar experiências, fazer exercícios físicos, jogar jogos de tabuleiro, dar risadas, assistir a lives ou acessar cursos gratuitos juntos… Além disso, a criança pode fazer uma videoconferência com os avós, que estão se sentindo sozinhos, isolados; convidar o pai ou a mãe para uma pausa no trabalho diário, em home office; se oferecer para criar um lanche para a família, dando uma folga aos pais na cozinha; ajudar o irmão mais novo, que talvez esteja estressado porque não consegue resolver uma questão da lição de casa.
Nós, adultos, certamente podemos inspirar os jovens e mostrar a eles que todas as ações – pequenas ou grandes – podem ser significativas na vida dos outros. “Lembra-se daquela vez em que você ligou para o seu avô? Ele ficou muito feliz, não é? O que acha de fazer isso de novo algum dia?” ou “Sua mãe parece um pouco desaminada. O que podemos fazer para que ela se sinta melhor?”. Pense nesses incentivos dentro de casa.
Pequenos gestos de afeto fazem toda a diferença na vida de uma pessoa. Imagine a felicidade de um avô ao ver o rosto do neto no vídeo? A alegria de um pai que está há dias trabalhando sem parar ao receber uma atenção especial do filho?
Acredito que, quando a quarentena acabar, nós não voltaremos apenas “ao normal”. Temos em nossas mãos a oportunidade de retornarmos diferentes, melhores do que antes. E podemos fazer isso aproveitando o isolamento para inspirar os nossos filhos, para que eles possam contribuir com um mundo pós-quarentena mais solidário e humano.
Quem sabe, no final, a previsão de Kitty não estava certa desde o início?
E quando o perigo terminou
E as pessoas se encontraram
Lamentaram pelas pessoas mortas
E fizeram novas escolhas
E sonharam com novas visões
E criaram novos modos de vida
E curaram a Terra completamente.
Stéphanie Habrich é Diretora Executiva do Joca. Franco-alemã que cresceu no Brasil, Stéphanie é formada em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas, com Mestrado em International Affairs pela Columbia University, em Nova York. Atuou 8 anos no mercado financeiro em Nova York e no Brasil, em bancos como Deutsche-Bank e BNP Paribas. Fundadora e Sócia-diretora da Magia de Ler, organização que produz o Jornal Joca, primeiro e único jornal do Brasil voltado para jovens e crianças.
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