Além de Frida Kahlo: Cruise 2024 da Dior resgata raízes mexicanas
O desfile da maison também trouxe referências à Leonora Carrington e Tina Modotti, além de enaltecer saberes manuais tradicionais da cultura do México
Poucos dias antes da apresentação da Cruise 2024, Maria Grazia Chiuri publicou uma foto no Museu Frida Kahlo em seu perfil pessoal no Instagram. Ao lado do clássico muro azul com o registro Frida y Diego vivieron en esta casa 1929-1954, a diretora criativa da maison dava um spoiler do que seria visto nos domínios do antigo Colégio de San Ildefonso, fundado pelos jesuítas em 1588, na Cidade do México – e foi onde Frida e Diego se conheceram. Ela, que costuma mergulhar profundamente nos detalhes das inspirações de suas coleções-destino, já era aguardado que ela trouxesse nomes de mulheres locais como principais fontes de referência. Frida, sem dúvida, é uma das maiores. E Maria Grazia adora artistas.
Inúmeras vezes, a estilista declarou ser um sonho revelar uma coleção no México. Na Cruise de 2019, ela já tinha trazido algumas referências mexicanas. Antes dela manifestar seu desejo, a maison francesa já carregava uma herança do período de Christian Dior, quando a marca apresentou sua primeira coleção no Palacio de Hierro, uma das grandes lojas de departamento do país. Antes disso, em 1947, Monsieur Dior batizou como “México” um dos vestidos do New Look.
A cultura mexicana, com suas crenças, sejam religiosas ou relacionadas ao período Asteca, sempre manteve o costureiro e fundador da grife intrigado – e curioso. Com Maria Grazia não foi diferente. Inclusive, tive sorte de conseguir casar tais coincidências para justificar uma viagem tão encantadora.
Diferente de Marc Bohan, que levou um desfile de Alta-Costura para o hotel Camino Real, em 1972, com uma construção de imagem que pouco remetia aos ares mexicanos, e John Galliano, com seu Inverno 2002 que trabalhou a Couture inspirada em uma viagem aos Estados Unidos e México, mas que trouxe mais dos índios norte-americanos e do glam hollywoodiano, a estilista romana mostrou com maestria como combinar Dior e México.
Além de Kahlo, há uma lista de outras artistas femininas, rebeldes e à frente do seu tempo, como a fotógrafa italiana radicada por lá Tina Modotti e a pintora-escritora-escultora surrealista Leonora Carrington – que viveu boa parte da vida na Cidade do México, apesar de ter nascido na Inglaterra. A segunda tinha um interesse genuíno pelo tarô, tal qual Monsieur Dior. Há uma atmosfera mágica e mística inexplicável.
Já na coleção, o explicável. É evidente que Maria Grazia concentrou suas forças no trabalho manual, no artesanato e nos tecidos com bordados e aplicações que remetem às vestimentas tradicionais – com destaque para o famoso huipil. A modelagem varia das estruturas amplas às relaxadas, com plissados e uma série de transparências, que, como sabemos, desde a época de Valentino, é uma assinatura da diretora criativa.
Assim como a presença do jeans, que alguns surgem com a mesma sequência de bordados conforme a tradição local, conjuntos de alfaiataria e peças com estampas inspiradas na natureza mexicana, como a borboleta. Do lado do heritage da Dior, a jaqueta Bar surge revisitada com materiais texturizados, de veludo ou ainda com mais bordados. O vermelho, que tem história na maison ao longo dos desfiles desde o período de Monsieur Dior, também teve aparições em visuais monocromáticos – para dar impacto durante as apresentações com mais de 100 looks (truque infalível para despertar o público na época).
Uma maneira genuína de celebrar valores culturais, da moda e do luxo. Enquanto há quem questione a repetição dos padrões estéticos de Maria Grazia para a Dior, vale lembrar que a moda está completamente distante do movimento efêmero das tendências. Esta Cruise 2024 da marca é um exemplo. A profundidade em nível de pesquisa é algo a ser respeitado e não questionado por falta de “novidade”. A combinação entre o legado da casa fundada por Christian Dior é intocável – e usada diariamente, de forma incansável, por todos os nomes criativos da marca (de Kim Jones a Peter Philips passando por Victoire de Castellane e Cordelia de Castellane). A sensibilidade que Chiuri, primeira diretora criativa mulher da maison, encontrou para valorizar uma cultura tão rica é tão Dior. E a chuva, que caiu ao longo da passarela, só mostra que há fenômenos incontroláveis – e que, nas fotos vistas pós desfile, criou um efeito de brilho espetacular nas roupas.