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Juliana Borges

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Juliana Borges é escritora, pisciana, antipunitivista, fã de Beyoncé, Miles Davis, Nina Simone e Rolling Stones. Quer ser antropóloga um dia. É autora do livro “Encarceramento em massa”, da Coleção Feminismos Plurais.

Dá pra ser ativista e postar foto de biquíni?

Nós mulheres estamos mesmo em um nível tão perfeito de igualdade de direitos para brigar em rede social sobre ficar alheias ao mundo?

Por Da Redação
Atualizado em 15 out 2019, 20h14 - Publicado em 15 out 2019, 18h46
 (Reprodução/Getty Images)
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Há poucas semanas, uma polêmica rondou a Internet: uma famosa reclamou que estava muito difícil viver no Brasil porque tudo era sobre ativismo, que ela não podia postar fotos dos filhos porque tinha que falar da Amazônia e citava outra famosa para dizer que essa última vivia mandando mensagens em grupos de whatsapp sobre questões ativistas. Eu queria falar sobre poesia e escrever um poema que fiz esta semana, de tanto amor que senti e vivi na minha última viagem, quando conheci o Equador e por lá me apaixonei. Eu queria falar sobre como eu me senti emocionada quando vi que em uma loja de quinta nos Estados Unidos havia mais de vinte e tantos tons de base, compreendendo toda a diversidade de peles femininas – e masculinas também, porque sei que tem as monas e manos que gostam de make. Mas não dá. A polêmica recente, que vou chamar de “polêmica do biquíni”, foi justamente sobre isso: sobre o que a gente até quer falar, mas que o mundo acaba nos puxando para outros temas.

Olha, eu queria deixar bem explícito: eu adoro praia. E eu posto sim fotos de biquíni no meu Instagram. E, ao mesmo tempo, posto fotos de minhas palestras por aí sobre feminismo. Não é que eu ache que postar foto de biquíni seja pouca coisa. Em uma sociedade que determina padrões para o nosso corpo, postar foto de biquíni pode ser uma coisa bem importante para diversas meninas que se sentem mal sobre seus corpos todos os dias. Mas acho que, no fundo, a discussão era sobre o direito ou não de ficar ignorante em relação ao mundo. Na lata! E eu acho, de verdade, que direito a ficar alheio ao mundo pode até ser um direito – no pleonasmo mesmo. Mas a questão é se a gente deve ficar alheio ao nosso entorno. E daí que pensar sobre isso me levou a uma outra reflexão: nós mulheres estamos mesmo em um nível tão perfeito de igualdade de direitos para brigar em rede social sobre ficar alheias ao mundo?

Não perca o que está bombando nas redes sociais

Eu até acho que uma parte vai avaliar que a gente está sim em um nível bem considerável de igualdade de direitos. E eu não vou ser absurda e dizer que não temos direitos nenhum. Mas eu queria contar sobre um encontro que eu participei: de mulheres de toda a América Latina e Caribe que se reuniram para trocar e discutir os Sistemas de Justiça no continente e seus impactos em nossas vidas. O encontro aconteceu no Equador e reuniu centenas de mulheres de praticamente todos os países latino-americanos e caribenhos. E a gente foi conversando sobre nossas realidades em nossos países. O que mais me tocou foi o relato de uma mãe indígena boliviana. Sua filha foi espancada pelo namorado. Após voltar para casa do hospital, ela teve uma hemorragia e veio a óbito, deixando uma filha pequena. Hoje, a netinha é o que move aquela senhora. Mas ao denunciar o agressor, o mesmo não foi processado por feminicídio. Segundo o Sistema de Justiça daquele país, e os sistemas de saúde, a filha daquela senhora faleceu em decorrência da hemorragia e não dos ferimentos que provocaram a hemorragia. O agressor segue livre. E há uma voz em lágrimas e sofrimento lutando para que seja feita justiça.

Verdade, eu não posso negar que as mulheres estão no mercado de trabalho, que a gente pode ir em uma balada dançar com as amigas. Mas podemos todas? Aliás, quem teve que lutar pelo direito de acessar o mercado de trabalho, já que mulheres negras e indígenas sempre trabalharam na história do nosso país? E todas nós podemos ir em uma balada dançar com as amigas? A gente ganha o mesmo que um homem quando a gente exerce o mesmíssimo trabalho? As pesquisas mostram que não. As pesquisas mostram que mulheres recebem 30% menos do que um homem exercendo o mesmo tipo de trabalho, nas mesmas horas de trabalho. Se a gente fizer o recorte racial, a coisa piora: as mulheres negras chegam a receber 70% menos do que um homem branco exercendo a mesma função e o mesmo número de horas trabalhadas. Isto são dados oficiais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o IPEA, um dos mais reconhecidos e sérios do país.

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Um dado assustador para nós: segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, o Brasil ocupa o quinto lugar no ranking mundial de feminicídio. Uma mulher é assassinada a cada duas horas no nosso país. E houve um aumento de 12% no número de registros de feminicídios. É verdade que o número pode indicar um avanço na padronização dos casos, já que o número de homicídios dolosos de mulheres diminuiu 6,7% – estes são dados do Monitor da Violência, uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Mas não te assusta o fato de sermos uma das nações mais violentas contra as mulheres? A gente alcançou mesmo a igualdade e não tem mais pelo que lutar quando os números mostram que a gente ainda sofre violência pelo simples fato de sermos mulheres, de sermos mulheres negras, de sermos mulheres indígenas, de sermos mulheres muçulmanas, etc?

Daí eu volto para a “polêmica do biquíni”. A gente super pode e deve postar foto de filho, gato – eu apenas amo os gatos e o cachorro de casa e estamos, eu e minhas irmãs, pensando em adotar um peixe –, cachorro, pernas para o ar e afins. Mas dá para gente simplesmente só falar disso? Porque, amiga, como não falar sobre a violência contra as mulheres quando qualquer uma de nós pode passar por isso? Eu gosto muito de uma socióloga chamada Heleieth Saffioti e ela tem um estudo maravilhoso sobre violência contra as mulheres. Neste estudo, ela apresenta a violência contra nós como das violências mais democráticas: ela atinge mulheres de todas as cores, credos, idades e classes sociais. Mas ela também mostra que conforme vão se combinando as nossas diferenças, por exemplo se você é uma mulher negra ou indígena ou cigana, há gradações nesta violência e nas possibilidades que temos de sair dela, de nos livrarmos e nos protegermos dela. Certamente, uma mulher que tem seu próprio emprego e autonomia, que tem um grau de instrução maior, tem moradia digna, etc., que se compreende inteira em si mesma, terá maiores condições de romper com a violência que sofre diferente de outras mulheres em situações muito precárias de vida. E a questão é: a gente que está um pouquinho melhor, e isso é bastante volátil também, pode não ser solidária com as outras mulheres? Poder até podemos. Mas a gente deve? De novo: essa violência pode atingir qualquer uma de nós.

Então, assim, para fechar a coluna de hoje, mas não o debate: posta a foto de biquíni sim. Mas posta também que você não aceita violência contra as mulheres, que você não aceita abuso sexual e infantil, que você não quer que destruam a natureza e poluam os rios, porque tudo isso é sobre você também, é sobre estar aqui e querer dignidade para você e para todo mundo, é sobre ter empatia e ser solidária, é sobre viver em um mundo melhor. #BiquíniSim #ViolênciaNão

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