O dia que desativei todas as notificações do meu celular
Para a escritora Juliana Borges, o documentário "O dilema das redes" abre um debate público necessário sobre a regulamentação das gigantes da tecnologia
São Paulo, 18 de setembro de 2020
Nessa semana, resolvi assistir um documentário recém-lançado pela Netflix: O dilema das redes. Produção de Larissa Rhodes e direção de Jeff Orlowski, o documentário é uma paulada de reflexão. Você sabe como eu sou: terminei de assistir e desabilitei todas as notificações de aplicativos no meu celular, chamei a adolescente da casa para conversar e iniciarmos um processo em que ficaremos menos tempo conectadas aos nossos dispositivos. Mas, passado o pânico, muita reflexão ainda é boa de se fazer. Afinal, a gente consegue ficar totalmente longe das redes sociais? Se trata de uma questão de bandidos contra mocinhos? O documentário é uma bobagem e não deve ser levado tão a sério assim?
Definitivamente, o documentário é sério. A produção segue um roteiro e uma linha de raciocínio que nos fazem explorar perguntas. Nada mais importante para fortalecer pensamento crítico do que perguntas. Quem não pergunta, infelizmente, não significa que saiba tudo. Mas quem acha que sabe tudo é, portanto, ignorante (no sentido de não saber); e ainda um não perguntar pela passividade. Desde cedo, aprendi a perguntar. Poucos foram os embates com minha mãe que terminaram com “porque sim” – e digo poucos, porque alguns assim terminaram e, hoje, eu a entendo. Tem horas que até paciência materna acaba.
Li algumas críticas e alguns deboches. Algumas críticas positivas, outras negativas, algumas usando de argumentos que não considero válidos para rechaçar o documentário e explico porquê. Uma das críticas negativas é a de que o documentário daria apenas respostas no plano individual para o grande problema que se tornou a influência das redes sociais em nossas vidas. O que vi ali foi uma perspectiva, importante, sobre como as gigantes da tecnologia assim se tornaram e o quão perigoso pode ser não regulá-las. E isso não é uma saída individual. Regulação envolve embate público e político, parlamentos, participação da sociedade civil. É um debate coletivo e social.
Outra questão muito criticada foi sobre o modelo de negócios operado pelas plataformas como Google, Facebook, Twitter, Instagram, Reddit, etc. O fato de não pagarmos por esses serviços não significa que eles não sejam pagos. Pelo contrário. O documentário aponta exatamente que alguém está pagando por isso e não pela nossa simples alegria de ter um serviço de conexão global de forma gratuita. Mas porque nós é que somos o produto usado na transação entre empresas/corporações e essas plataformas. Nossos dados, uma compreensão sofisticada sobre os nossos comportamentos para melhor vender.
A problemática apresentada pelo documentário é séria e fundamental na contemporaneidade. A sofisticação desse entendimento do nosso comportamento é tamanha que ultrapassou o interesse simples de nos compreender, mas de moldar como nos comportamos, direcionar como compramos, que mundo vemos e que tipo de informação acessamos. Nós juramos que somos livres para consumir o que quisermos nessas plataformas. Mas até o tipo de resultado que aparece em uma pesquisa que fazemos no Google é personalizado a partir das nossas inclinações, que a inteligência artificial já compreendeu que temos pelo nosso padrão de acessos, pelo que escrevemos nas redes, por quem nos relacionamos nas redes, etc, etc, etc.
Ou seja, o resultado da busca que eu fizer sobre a palavra amor será diferente do resultado que minha irmã, que mora na mesma casa que eu. Se ficássemos apenas nisso, vá lá. Contudo, o problema vai mais fundo porque isso, e muitas mais outras “recomendações”, impacta em nossa personalidade, em como reagimos caso algo que não nos agrade apareça no feed, no resultado de buscas, reafirma e aprofunda nossa capacidade de lidar com o divergente, com o crítico; reforça posição e, portanto, uma postura que só aceita o que concorda conosco. E, como sempre conversamos por aqui: somos diversos, amplos, complexos.
Se tem uma coisa que muito me incomoda é essa necessidade de pessoas acharem que você sempre precisa concordar com elas para serem realmente próximas, verdadeiramente amigas ou parceiras. Eu sou parte da última geração que nasceu quando internet e rede social não eram obrigatórios e responsáveis por praticamente tudo que fazemos. Mas, vamos combinar que esse comportamento humano não é novo. Já teve quem chamasse de patota, outros de clubinhos e o que não falta é filme com crítica a esse comportamento, hoje chamado de “manada”.
O que tenho visto nos últimos anos, e isso vai de encontro ao espraiamento e interferência das redes sociais em nossas vidas, é que qualquer divergência é motivo de bloqueio, de deixar de seguir, de uma simples divergência se transformar em uma “treta” colossal. Claro, há o comportamento intolerável, quando o adversário só visa te estressar, de tirar dos eixos, te desrespeitar. O diálogo só é possível se dois assim o querem, caso contrário é monólogo. E dos piores. Não vou esconder: já fui mais intolerável nas redes. E fui percebendo que, com o tempo, isso precisava mudar. Algumas amigas dizem que eu sou paciente demais. Mas, se não tem xingamento, se tem vontade de diálogo, por que não?
O documentário é potente por nos abrir os olhos para o contrário. A dinâmica atual das redes tem feito com que nós fiquemos cada vez menos tolerantes ao diferente de nós e isso tem impactos perigosos sobre sistemas políticos, de ditaduras a democracias.
Um dos pontos negativos que achei interessante foi apresentado pelo jornalista e especialista em tecnologias, Rui Maciel. Na verdade, a crítica que ele escreveu sobre o documentário é super equilibrada, incentivando que assistamos e façamos o exercício do pensamento crítico. De negativo, ele apresenta essa ideia de que nós somos apenas pessoas indefesas, pelo modo como a narrativa é construída e o roteiro explorado. Como ele aponta, a manipulação com o intuito de vender e direcionar nossos comportamentos existe muito antes das redes sociais, utilizada por TVs, empresas, parques temáticos (e suas lojas na saída do parque), cinemas, etc.
Outro ponto é de colocar muito peso na responsabilidade das empresas e não balancear com a falta de controle que nós mesmos temos de ter sobre como utilizamos essas plataformas, da nossa responsabilidade enquanto indivíduos, enquanto pais, mães e responsáveis, no controle do tempo e na qualidade do uso das plataformas.
O que eu acho o fim é o deboche sobre o tema. Acho que o documentário traz pontos muito positivos, principalmente para pessoas leigas nesse tema, como eu. Tudo que faça a gente pensar, se perguntar, se reavaliar de modo crítico é importante. E qual é o problema de diminuir nossa presença nas redes, de investirmos mais em tempos de qualidade reais, sem uma plataforma direcionando o que devo ou não ver? Não vou deixar de usar essas plataformas, até porque elas me conectam com pessoas de lugares distantes, pessoas que, dificilmente, eu teria contato não fosse por elas. E isso é importante. Mas não há mal algum em eu ser questionada a não me fechar em uma bolha; a não seguir apenas pessoas que eu concorde; a desativar notificações, como se eu tivesse que estar sempre à disposição de responder por algo; a não dormir com o celular no móvel ao lado da cama; a não pegar o celular como primeira ação do dia, antes mesmo de tomar café. E acredito que esse é um ponto incrível de um documentário como esse.
De outro lado, também nos faz pensar sobre como é possível um mercado tão poderoso não ser pesadamente regulado e fiscalizado; sobre como é possível que nossos dados sejam vendidos para interesses que não temos a menor ideia do que sejam. O mérito do documentário é: fazer pensar. E isso nunca pode ser visto como algo para se desqualificar.
Em tempos de isolamento, não se cobre tanto a ser produtiva: