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Juliana Borges é escritora, pisciana, antipunitivista, fã de Beyoncé, Miles Davis, Nina Simone e Rolling Stones. Quer ser antropóloga um dia. É autora do livro “Encarceramento em massa”, da Coleção Feminismos Plurais.
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A abolição inacabada

Há 132 anos, era assinada a Lei Áurea, como ficou conhecido o ato de abolição da escravidão no Brasil

Por Juliana Borges
Atualizado em 13 Maio 2020, 20h28 - Publicado em 13 Maio 2020, 20h12

São Paulo, 13 de maio de 2020

Há 132 anos, era assinada a Lei Áurea, como ficou conhecido o ato de abolição da escravidão no Brasil. Em 19 de maio do mesmo ano, Machado de Assis publicou uma crônica sobre como ele percebia o 13 de maio. Segundo ele, coisas mudaram para permanecerem como sempre foram. Antigos donos de escravizados, estavam, agora, em outras atividades e anseios, sendo vistos como libertadores, enquanto que, então, ex-escravizados estavam em postos precarizados de trabalho sem que nenhuma indenização diante de uma violência que perdurou por mais de 300 anos fosse garantida.

Uma das coisas que sempre me incomodaram sobre essa data é de uma celebração aos algozes e não de um exercício de memória diante de tantas vidas dizimadas para construir o que hoje chamamos de Brasil, que certamente tinha outro nome para os milhões de indígenas, pertencentes a milhares de sociedades, que aqui viviam. E a história foi seguindo apagada.

Até pouco tempo, o próprio Machado de Assis, o maior escritor de nossa literatura, ainda era retratada como branco, sua literatura era ensinada nas escolas como se não tivesse na questão do negro uma centralidade importante. Não conhecemos a história e a literatura de Lima Barreto, as lutas de Luiz Gama para alforriar centenas de escravizados. Não sabemos quem foi André Rebouças e que era um homem negro com um forte desejo de libertação e atuação abolicionista, se não que ele dá nome a uma das principais vias da cidade de São Paulo.

Usualmente, discordo do ditado que diz que brasileiro tem memória curta, porque acredito que o que temos é uma memória negada e apagada. Precisamos reconstruir essa história. Só a reconstrução da memória dará conta de curarmos feridas profundas e ainda expostas, que ainda doem fundo em tantos de nós. Não podemos seguir na toada de achar que podemos deixar “as coisas pra lá”, que já foi, já passou. Porque o processo de escravização no país ainda deixa marcas difíceis nas relações e no funcionamento de nosso Estado hoje.

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Pensa só. De uma maneira bem minimizada, pensa em uma situação de muita tensão. Você deixa pra lá ou você resolve encará-la e resolvê-la. Quando a gente pensa em consultores aos montes sobre como resolvemos situações difíceis e tensas, qual é a principal resposta apresentada por muitos: enfrente o problema. Só assim é possível limpar o meio de campo e restaurar relações ou, ao menos, dar respiro para que sigamos em frente. Geralmente, o resultado quando deixamos as coisas para lá é o de rachaduras que se abrem e se transformam em abismos, difíceis de serem reconstruídas, mesmo que a proposta seja uma ponte. Leva mais tempo, demanda mais esforço. Agora, maximiza isso para um processo de uma nação que se constrói com mais de 300 anos de escravização e que, ao assinar a Lei Áurea, não sem lutas, mas com muitas revoltas, disputas internas, pressões externas e sendo a última nação a abolir o tráfico e escravização de pessoas. São gerações de pessoas que foram escravizadas. Foram milhões de pessoas sequestradas (os últimos levantamentos demonstram que mais de 6 milhões de africanos foram sequestrados e vendidos para o tráfico e escravizados no Brasil e ainda devemos imaginar os milhões que morreram na travessia), retiradas de sua rotina, de suas culturas, misturadas com outras etnias para que não tivessem capacidade de se comunicar e resistir, pessoas que nasceram e morrem escravizadas, sem jamais saber o que é liberdade. Daí, você pensa que o resultado dessas lutas pela abolição terminaram com esses milhões sem nenhuma indenização pelos anos de trabalho forçado. Veja, ninguém estaria fazendo favor a essas pessoas. Mas, mais do que isso, nosso país, como política institucional, sancionou leis que mantinham e perpetuariam desigualdades, como a Lei de Terras, que determinou porções de terras desse país para o que se tornaram ex-senhores de escravizados. Você não acha que carregaríamos marcas indeléveis? Como você acha que foi o dia 14 de maio, depois de muita festa, para esses milhões de, agora, brasileiros? E como se compreender um cidadão quando você não tem salários decentes, porque é considerado inferior e desqualificado, não tem casa e tem que pagar aluguel porque não houve sequer a política de uma porção de terras e duas mulas, como nos Estados Unidos, quando se percebe sem alfabetização e muitas outras coisas que eu poderia elencar aqui. Como achar que isso poderia se resolver com um simples “deixa pra lá” e “vida que segue”? Não podemos.

O resultado dessa visão equivocada fez com que rachaduras se transformassem em abismos sociais em nosso país. No Brasil, pessoas negras são pobres porque são negras, porque descendem dos milhões escravizados. Por que continuaremos negando a possibilidade de construir pontes, já que os processos restaurativos que deveriam ter sido acionados já no 14 de maio de 1888 não foram? Nessa pandemia, estamos percebendo essas desigualdades imensas. A maior letalidade entre pessoas negras porque a cobertura de leitos de UTI na rede pública está muito aquém da demanda. A falta de condições para seguir as orientações mínimas sobre lavar as mãos porque não há saneamento básico. A falta de condições de cumprir o isolamento social em favelas, que existem como fruto de uma política de marginalização e omissão em garantir um direito constitucional a moradia digna. Essas são feridas profundas, abismos imensos que ainda temos entre as várias etnias que compõe o nosso país. Porque, sim, somos todos construtores de nossa nação. E é preciso que a distribuição de nossas riquezas sejam equânimes e justas.

Alguns pontos de partida são importantes, como retomarmos as memórias apagadas de diversas personagens históricas que construíram todo um processo que desembocou na assinatura da Lei Áurea, como José do Patrocínio, Maria Firmino dos Reis (que além de importante abolicionista, é a primeira romancista da literatura brasileira), entre outros. Apenas a memória restaurada e ações reparadoras é que irão nos fazer resolver nossas imensas desigualdades.

Nesse 13 de maio de 2020, nesse tempo que estamos vivendo, com tantas dificuldades, vamos refletir e exercer a escuta. Como minha amiga-irmã, poeta e ativista, Lua Leça: você escuta ou você espera a hora de falar? São coisas bem diferentes. Precisamos nos escutar para encontrar o comum, para compreender nossa história complexa e que precisa vir à tona. Chega de memórias negadas e apagadas. Chega de virarmos às costas para a nossa história. Olhar para frente se esquecendo de olhadas para o retrovisor pode ser perigoso. E se você olha a sua volta, já consegue perceber esses perigos que, se já não nos haviam deixado, agora voltam mais ferozes e destrutivos. É hora de reparar e construir o novo. Ainda acredito que somos capazes disso.

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