Ausência afetiva: Conheci meu pai no seu velório
Imagina conhecer seu pai no dia do velório dele? Essa é a história de Camila, abandonada pelo seu progenitor ainda na barriga da mãe
Um dado de realidade: só em 2023, o Brasil registrou mais de 100 mil crianças sem o nome do pai em suas certidões de nascimento.* Paternidade ausente é uma das cicatrizes nacionais mais profundas e isso gera histórias como a de Camila.
Ela foi concebida em uma das idas e vindas do relacionamento que sua mãe e seu genitor tiveram durante quatro anos. Quando ela descobriu a gravidez e contou, veio a decepção: ele estava de casamento marcado com outra mulher.
Sua mãe sofreu muito com a notícia e tudo ficou ainda pior quando ele sequer procurou saber da filha. Ele havia abandonado as duas.
Camila cresceu sabendo dessa história. Inclusive, ela sabia o nome e sobrenome dele e também que morava algumas ruas de distância dela e de sua mãe. Mas nunca pensou em procurá-lo.
Em 2016, já adulta, ela foi em um evento pela empresa que trabalhava e viu um rapaz que a ficava encarando. Ele não era estranho, mas ela achou que era um flerte. Em determinado momento, os dois se cumprimentam.
Era Danilo e descobriram que estudaram juntos na infância. Uma coincidência legal de rever um colega tantos anos depois. Após o papo rápido, ele entregou para Camila seu cartão e disse de forma bem direta: “Me liga. Tenho um assunto que me encuca há anos”, e foi embora. Quando a Camila olha o nome e sobrenome do colega, cai a sua ficha: ele era seu irmão.
É óbvio que no outro dia ela ligou para ele, e a conversa foi quase assim:
D: Então… você não tem ideia? Assim… do que seja?
C: Qual o nome do seu pai?
D: Fulano de tal
Sem nem pensar, ela responde:
C: Prazer, irmão!
D: Prazer, irmã!
Para além da confirmação do laço sanguíneo, Camila descobriu na conversa outras coisas. Seu irmão sabia quem era ela desde a infância, por exemplo. O pai contou para que os dois não tivessem algum envolvimento romântico na escola.
Mas o que pegou mesmo a Camila foi a informação de que seu genitor estava internado, com câncer. Aparentemente bem, mas internado. Seu irmão a convidou para a visita que ele faria ao pai no domingo. Ela até cogitou ir, mas desistiu. Era cedo demais e precisava digerir todas aquelas informações guardadas há 31 anos.
Porém, o “cedo demais” se tornou tarde demais. Isso porque, no próprio domingo, Camila recebe uma mensagem de Danilo, já no fim da noite, dizendo: “É… não vai ser dessa vez”. O pai havia partido naquela noite.
Camila não soube o que sentiu na hora, mas tinha certeza que tudo teria sido diferente se o seu genitor tivesse sido presente. Ainda assim, ela decidiu ir ao velório do homem.
Essa foi a primeira vez que a Camila conheceu seu pai. Dentro de um caixão, cercado de flores brancas e de gente lamentando a sua partida.
E ela ali, numa situação meio novelesca, observando cada detalhe daquele rosto pálido, gelado e sem vida. Tentando buscar as semelhanças e os traços genéticos que os uniam.
Nesse encontro-despedida, Camila resolveu perdoar seu genitor. Ela achava que não havia guardado mágoas com a ausência e o desinteresse dele durante mais de 30 anos. Mas não. Aquela mágoa existia e ela conseguiu transformá-la em perdão no leito de morte do pai.
Não a julgamos por perdoar. Muitas vezes, quem perdoa sabe que aquilo é feito para si mesmo, para ter a chance de seguir em frente sem que a dor persiga a todo momento.
Assim como também entenderíamos se ela escolhesse outro caminho, de enterrar junto com o genitor todas as memórias da ausência. Mas as relações são complexas. Cada um sabe onde o calo aperta.
No caso da Camila, quem perde nessa história? Todos, mas principalmente o genitor dela, que não pôde conhecê-la. E quem ganha? Camila e Danilo que podem, enfim, preencher essa lacuna de uma nova forma.