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Roberta D'Albuquerque

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Roberta D'Albuquerque é psicanalista e autora do livro Quem manda aqui sou eu - Verdades inconfessáveis sobre a maternidade

Viva São João!

Qual é o tamanho das memórias que guardamos de nossas festas da infância?

Por Roberta D'Albuquerque
Atualizado em 22 jun 2017, 19h24 - Publicado em 22 jun 2017, 18h31
 (Ricardo Correa/CLAUDIA)
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Fui criada em Garanhuns, no interior de Pernambuco. Para nós, pernambucanos, São João é assunto sério. Quase tão sério quanto carnaval, mas nunca tanto 😉 Lá, os meses de maio e junho (pelo menos para quem está em idade escolar) são movimentados pelos ensaios do espetáculo de final de semestre. E na escola que eu estudava, nenhuma parte da festa era tão importante quanto a quadrilha da quarta série (que seria hoje, o quinto ano do ensino fundamental).

Eram dois atos. Primeiro, os estudantes (que deixariam a escola naquele ano) se apresentavam na quadra onde era celebrado o casamento. Depois, seguiam as danças das outras turmas. E para fechar a festa, a quadrilha se dava com todos os “olha a chuva!”, “balancês” e “cumprimentos” que a gente tinha direito.

Para além da emoção do dia da festa, dois mistérios envolviam esse evento. 1. Quem seria o seu par? 2. Quem seria a noiva? Quanto ao par, matávamos rapidinho a curiosidade. Logo no primeiro dia de ensaio, a professora formava as duplas, passando bem longe do direito de escolha de cada um. Já a noiva…

Rezava a lenda que a aluna que estivesse com o vestido mais fraquinho no dia da festa, seria a escolhida. E as meninas todas torciam muito para a má avaliação de moda da diretora recair sobre elas. Era preciso que todos da sala memorizassem o texto do casamento, uma vez que noiva e noivo seriam promovidos há poucos minutos da apresentação. O vestido, que era da escola, nos esperava branco, engomado e pendurado em um cabide na porta da sala da quarta série para o anúncio. Quando partíamos barulhentos para a quadra, o cabide era ocupado pelo vestido antigo da agora noiva.

Eu nunca fui a noiva. Mas naquele junho de 1988, quando deixei a sala da quarta série, provavelmente tinha o coração tão acelerado quanto o de quem usava o vestido branco. A festa seria uma de minhas últimas no ensino primário. Minha irmã já estudava no colégio grande da cidade e todo o capricho da minha mãe, estava voltado para o meu vestido.

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E olha, ela caprichava. O vestido daquele ano ficou a cargo de Alice. Uma costureira competente apesar de um pouco atrapalhada com os prazos. Lembro que eu e minha mãe fomos juntas às Casas José Araújo na Av. Santo Antônio, compramos o tecido xadrez, as fitas, os botões, o meião branco, o sapato envernizado de bico redondo, organza para o aventalzinho, babados mil e seguimos, dali mesmo, para a casa de Alice para tirar as medidas.

Há uma semana da festa, no dia da prova, o vestido ainda não estava cortado. Sob protestos de minha mãe, marcamos uma nova data e na sexta à tarde finalmente, provei a roupa ainda alinhavada. Encomenda entregue à noite, corta para o dia da festa. Já na escola, senti que alguma coisa não ia bem. Uma linha solta daqui, uma sensação de saia frouxa dali…

Segui o jogo. Na hora do anúncio da noiva, era claro pra mim que saia e blusa ainda estavam no alinhavo. Anúncio feito, desci fiz coro para o “viva os noivos” e mantive minhas maõzinhas de menina grudadas na cintura até o fim do casamento. De volta a sala da quarta série, permaneci assim imóvel e silenciosa até a hora de voltar para apresentação final.

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Não me ocorreu pedir para alguém chamar a minha mãe, anunciar meu desconforto/desespero, pedir o vestido da menina que agora era a noiva emprestado, nada. Não me ocorreu nada. Nos chamaram para o segundo ato e eu fui. Chegando na quadra me dei conta da impossibilidade de continuar ali com o vestido já praticamente solto em duas partes. Saí, desisti, abandonei a quadrilha.

Minha mãe ficou horrorizada, chateadíssima. Quanto mais ela e meu pai perguntavam o que tinha acontecido, menos voz eu tinha para responder, maior era a minha vergonha. Voltamos para casa em um silêncio longo e cortante que permaneceu até o fim do dia quando fui finalmente convencida a tirar as mãos da cintura e trocar o vestido pelo pijama. Ali, eles se depararam com a causa do meu abandono. E mais impressionante ainda, com a minha impossibilidade de reagir diante da situação.

Sempre doces e cuidadosos, os dois não encompridaram o assunto, acolheram a minha agonia e me ajudaram a aproveitar as férias que começavam. Para mim, apesar de fazer de conta que não, foi um assunto bem comprido. Mudou minha relação com os colegas na volta das férias, que não entenderam nem gostaram do atrapalho na coreografia. Mudou minha quadrilha da quinta série, no colégio grande, onde finalmente podíamos escolher nossos pares. E claro, não fui escolhida por ninguém (uma vez que vínhamos quase todos da escola antiga). E o mais importante, mudou a confiança que eu tinha no meu taco.

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Uma besteira, uma festa de São João, mas sempre que tenho que fazer alguma coisa para sair de uma situação perigosa, desagradável ou embaraçosa, é nesse dia que eu penso. Penso para ter coragem de fazer diferente, penso se sinto que não fiz o que deveria – de novo.

Hoje, quando Sofia (minha filha mais nova) provou o vestido da quadrilha do próximo sábado, lembrei de Carlos André, meu par naquele ano. Lembrei da expressão de decepção no rostinho dele. Pensei em como eu deveria tê-lo convidado para ser meu par no ano seguinte e assim desmontar aquele desconforto todo. Lembrei de Lilian, minha amiga que saltou da arquibancada e pegou o menino pela mão continuando a quadrilha. Foram justamente eles dois que se mantiveram próximos no fatídico segundo semestre da quarta série. Obrigada queridos. Vocês são sempre a dama e o cavalheiro que aparecem na minha cabeça quando penso em como quero dançar os balancês da vida – com coragem generosidade e delicadeza. Boa quadrilha Sofi. Viva São João!

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