Carta à presa – uma história do cárcere que não reconstrói
Fui à prisão buscar respostas para: Por que há 34 mil presas no país? Com quem ficam os filhos delas? Por que o Estado dá às detentas a pena e nada mais?
“Querida Jane Cleide
Segue aqui a revista CLAUDIA. Muito obrigada por ter atendido o meu pedido de entrevista. Sua história me acompanha todos os dias: eu me lembro do que você contou sobre sua família e também do que tem sentido e refletido aí no presídio. Você me pareceu uma pessoa intuitiva, que aprende rápido, e deve estar fazendo muita falta aos seus quatro filhos. Espero que consiga logo reunir todos eles. E que sejam muito felizes. Um grande abraço.”
Assinei e enderecei a carta para o Centro de Progressão Penitenciária (CPP) de São Miguel Paulista, na capital, onde conheci, em abril, essa baiana de 40 anos. Não sei se fui completamente verdadeira nas palavras, pois, no fundo, suponho que Jane Cleide Cordeiro terá muita dificuldade de juntar a prole em volta de uma mesa farta, no domingo – como é o desejo dela. Eu fazia a reportagem “Trancadas”, e Jane me recebeu assustada. Demorou a pegar na minha mão; parecia esperar um julgamento meu para o fato de estar presa. Ela cumpre pena por tráfico de drogas, crime, aliás, que levou ao presídio a maioria das 34 mil encarceradas do país.
Checando prontuários e processos das personagens da matéria, uma descoberta: no ato da prisão, nenhuma portava armas, nenhuma reagiu com violência ou ofereceu resistência. Até existem mulheres em degrau mais alto na hierarquia do tráfico, mas são raríssimas, quase uma ficção. Como Jane, o grande contingente de presidiárias é a pontinha da cadeia. Fez o papel de mula no transporte da droga. Estava em casa quando a polícia meteu o pé na porta e levou o marido – ele sim, envolvido – e ela acabou sendo arrastada. Também é comum a mulher se meter no crime por amor ao parceiro ou em nome dele (para substitui-lo, enquanto está detido).
Antes de ir a campo, com ajuda da repórter Isabella Marinelli, corri os olhos nos dados do Infopen, órgão de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro, ligado ao Ministério da Justiça. Curioso: o Infpen não sabe quantas encarceradas estão grávidas, desconhece as que amamentam atrás das grades, não tem registro do número de filhos que ficaram sozinhos depois da prisão delas. O estrago é barulhento. Quando uma mulher é presa a casa cai.
A punição ultrapassou Jane Cleide e impactou terrivelmente seus quatro filhos. Ela me contou seu desespero ao notar a ausência da mais velha, Jéssica, 21 anos, a única pessoa a ir vê-la na cadeia. “Meu coração ficou apertado. Vieram me contar que Jéssica estava presa. Ela cuidava da minha caçula, de 3 anos, engravidou, chegou a dormiu dias dentro de um carro, perdeu o bebê, e terminou se envolvendo com o tráfico.” O segundo filho de Jane, de 17, também cometeu o delito e está em liberdade assistida. O terceiro, de 8 anos, carrega na meia uma carta da mãe pedindo perdão, e mora com o pai, que se casou de novo. Já a caçula vive com uma amiga de Jane. Ela diz que pior do que ouvir a sentença, fixada em mais de seis anos, foi a prisão, em casa, na frente das crianças. “Coloquei a caçula no colo do meu menino pequeno e pedi: “Fiquem calmos, não façam bobagem. Eu prometo que volto.” O choro foi ouvido de longe
O caso da baiana que encontrei no CPP é aquele clássico: a mulher fica sozinha, e, sem escolaridade e profissão, faz das tripas coração para alimentar os filhos. Jane trabalhou em bar, em uma cozinha, pulou daqui e dali… Tudo ficou ainda mais difícil com a perda do trabalho; ela espalhou as crianças em casa de parentes. Para trazê-los de volta, aceitou uma oferta fácil: emprestar um cômodo da casa para um traficante guardar drogas. “Eu sabia que era errado, mas o ganho me ajudou a trazer os filhos de volta”.
O que a sociedade ganha gastando muito dinheiro para privar uma mulher do contato familiar? Essa questão foi trazia à reportagem pela desembargadora Kenarik Felippe, do Tribunal de Justiça de São Paulo. O pior acontece quando a presa termina de cumprir a pena e sai completamente despreparada para reassumir a vida, sem trabalho, com a família toda destroçada e ainda com a marca na testa: “Ex-presidiária”. Ninguém quer uma por perto. Não seria melhor manter a mulher com medidas alternativas à prisão?
A desembargadora Kenarik faz uma análise interessante: o país não enfrenta a questão das drogas de forma efetiva. “O imaginário popular põe essas pessoas como inimigas da sociedade e o juiz não foge disso, punindo até além do que a lei prevê.” As indagações dela precisam provocar o Legislativo e o Judiciário. Não se pode mais admitir que o Estado responda aos problemas sociais, que começam na infância pobre e desassistida, apenas com prisão. Jane Cleide Cordeiro não teve, desde o nascimento, ajuda alguma do Estado. Só a demolidora sentença. Mas quem sou eu para concluir o desfecho da história dela. Pode ser que Jane surpreenda, tire forças não sei de onde e rode a baiana para constranger os atrasados juízes do país.
Leia aqui a reportagem “Trancadas”.