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Coluna da Liliane Prata

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Os sons do silêncio

O desejo é um silêncio que canta. E nenhuma sirene emite som agudo mais insuportável do que o silêncio da saudade na cama

Por Liliane Prata Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 10 fev 2017, 20h02 - Publicado em 10 fev 2017, 18h15
Cena do filme "Lost in Translation" (/)
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“Como é que se pode saber se você tem mais importância que um gato?” – o questionamento feito por Hilda Hilst em uma entrevista me vem à mente agora à noite, eu sentada no chão do quarto da minha filha, minha filha na cama dormindo, minha gata no meu colo gatando. A pergunta me soa como um koan, a questão desconcertante do zen-budismo. O mais conhecido exemplo de koan talvez seja: Qual é o som de apenas uma mão batendo palma?

E qual é o som do silêncio?, pergunto a mim mesma, longe dos templos zen-budistas, mas imersa na liberdade e no tempo que este quarto me dá para formular meus próprios koans. Talvez não seja um koan lá fora; talvez não seja um koan aqui ao lado deste quarto, no escritório aqui de casa, onde o dicionário defende que o silêncio consiste justamente na ausência de sons. Mas, entre a respiração da minha filha e o ronronar da minha gata, o silêncio é outra coisa, posso garantir. Se os silêncios não emitissem som algum, então seriam todos iguais. Mas só alguém sem intimidade alguma com a igualdade ou com os silêncios poderia acreditar nisso.

Ou quem sabe: aceito que o silêncio não tem som algum, desde que tenha cheiro. Ou cor. Textura. Temperatura, em alguns casos. Olho o relógio: nove da noite. O morno silêncio que envolve este quarto não pode ter a mesma temperatura do silêncio de um casal entediado lá fora, numa mesa de restaurante qualquer.

O silêncio de contemplar um parque é muito mais amarelado do que o silêncio branco-vivo dos meus olhos quando leio as notícias na tela do meu celular, estou certa disso.

O silêncio de quem faz uma refeição sozinho e relaxado é mais macio do que o silêncio das refeições solitárias e tensas.

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O silêncio dos amigos que pararam de conversar para simplesmente desfrutar a presença um do outro não pode ser feito do mesmo material do silêncio dos amigos que não têm nada a dizer.

O silêncio do sexo sem sobressaltos é, sem dúvida, mais aveludado e quente do que o silêncio desbotado do casal que ainda está ali, mas já não quer estar ali.

E nenhuma sirene emite som agudo mais insuportável do que o silêncio da saudade na cama.

O silêncio do sorriso é mais alto do que o silêncio das lágrimas, este mais rouco do que o silêncio do desejo, o desejo é um silêncio que canta – canta baixo, alto, afinado, desafinado, com ou sem refrão: impossível não ouvir o silêncio dos desejos que ainda não realizamos, mas que seguem cantando.

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Quando estive em Tóquio, ano passado, fiquei impressionada com os novos silêncios que brotaram das minhas pernas, dos meus pés, de cada uma de minhas unhas. Tóquio é uma metrópole incrivelmente silenciosa – eu não me cansava de admirar como diferentes silêncios conseguiam escalar os trens, os carros, as luzes fortes dos painéis, e conviver harmonicamente, como se um compreendesse muito bem a língua do outro. Minhas pernas, pés e unhas no lençol da cama, depois de mais um dia de caminhada inesquecível, faziam juntos, enquanto eu olhava para o teto, um agradável coro feliz que eu adorava escutar.

Ouço um pouco mais a respiração da minha filha, o ronronar da minha gata. Meus pensamentos barulhentos interrompem aquela delicadeza para, mais uma vez, narrar, comparar, constatar. Tento desvendar, uma a uma, a textura dos meus pensamentos neste quarto. No Brasil, em Tóquio ou aqui no quarto da minha filha, o silêncio das decisões tomadas não é igual ao silêncio das tristezas engolidas ou das alegrias relembradas. As preocupações emitem um odor muito mais metálico do que os bons planos; a paz de espírito, ainda que fugaz, sempre foi levemente mais amadeirada do que o entusiasmo.

“Como é que se pode saber se você tem mais importância que um gato?”, eu me pergunto, eu, que com trinta e tantos anos ainda não criei vergonha para largar meu vício em entender. Não sou mais importante do que essa gata, é claro que eu sei disso, embora ao mesmo tempo discorde profundamente desse fato, não por presunção, mas por não viver em um mundo interno e externo erguido sobre as bases da igualdade entre pessoas e gatos.

Eu gostaria de me formar como linguista de silêncios, penso, cobrindo minha filha e levando minha gata no colo. Mas estou tão longe disso, eu que sou só uma pessoa, veja só, eu que já dei um Google e continuei sem entender exatamente por que a minha gata ronrona.

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Liliane Prata é editora de comportamento de CLAUDIA. Para falar com ela, mande um e-mail para liliane.prata@abril.com.br 

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