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“Fui a primeira da minha aldeia indígena a me casar com um homem branco”

A artesã indígena Kena Marubo, de 23 anos nunca tinha namorado até conhecer, em maio de 2022, o ambientalista paulista Felipe de Souza Martins, de 34 anos

Por Kizzy Bortolo
14 dez 2023, 11h25
Eu e meu marido, o Felipe.  (Acervo pessoal/Divulgação)
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“Sou indígena do povo Marubo, da terra indígena Vale do Javari, que fica localizada no extremo oeste do Amazonas e faz divisa com o Peru e a Colômbia. Nossa aldeia fica numa das áreas mais perigosas de toda Amazônia. Com influência do narcotráfico da Colômbia, da pesca e do garimpo ilegal, de madeireiros ilegais, além do tráfico de animal silvestre. Tem de tudo aqui na nossa área. Foi nessa região que o indigenista  Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips, foram assasinados. Conheci o Bruno e sua esposa lá na aldeia. Eles moravam próximo, em Atalaia do Norte, no Vale do Javari, onde aconteceu o assassinato. Na ocasião, eu estava viajando. Estava em São Carlos, São Paulo. 

Para chegar até a nossa aldeia é preciso uma longa e cara jornada. Temos que voar até Manaus e depois pegar um outro voo até a cidade de Tabatinga, no estado do Amazonas. De lá, ainda temos que pegar um barco até Benjamin Constant e depois um transporte terrestre até Atalaia do Norte. São sete dias de viagem de barco até lá. 

Passei minha infância indo sempre ao município de Atalaia do Norte, que é cidade mais próximo da nossa aldeia. Esta cidade é mundialmente conhecida por abranger grande parte da terra indígena do Vale do Javari, que é a maior reserva de indígenas isolados de todo o mundo, além de ter sido o local de uma das maiores quedas cósmicas da história moderna, que ficou conhecida como “Evento do Rio Curuçá”.

Minha família conta até hoje esta história. Este evento de impacto ocorreu no dia 13 de agosto de 1930. À época, ribeirinhos e indígenas da região afirmaram ter visto muitas ‘bolas de fogo’ caindo do céu sobre a margem direita do rio Curuçá. E isso virou uma lenda na nossa região. 

Meu pai, Tãmá, é de outra ‘calha de rio’, ou seja, ele não é da mesma aldeia da minha mãe. A aldeia do meu pai se chama São Sebastião e fica no rio Curuçá. Já a aldeia da minha mãe se chama Paraná e fica no rio Ituí. Ficam a 10 dias de distância de barco uma da outra. Por aqui, tudo é muito longe e nos locomovemos mais de barco mesmo. 

Ainda durante a minha infância, nos mudamos para Atalaia do Norte, porque meus pais viram a necessidade dos filhos (somos em quatro irmãos, dois homens e duas mulheres) estudarem e aprenderem a falar o português, pois até então, só falávamos o nosso dialeto que é o língua ‘Marubo’, a língua ‘Pano’.

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(Acervo pessoal/Divulgação)
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Antes, vivíamos na zona rural, onde meus pais tinham um terreno para plantar, caçar e pescar. Vivíamos disso. Apesar de não estarmos mais na aldeia, minha mãe sempre procurou manter os costumes. Desde muito novinha ela nos ensinava nossa língua materna, a nossa escrita e também os costumes indígenas, além de nos ensinar a fazer o nosso artesanato. Nosso povo tem uma tradição muito forte no artesanato, especialmente, feito de caramujo e cerâmicas. 

Sempre gostei de pescar em família! Amava plantar, colher e comer frutos como mapati, sapota, açaí, patauá, entre outros, que só tem aqui na nossa região. Na nossa tradição indígena usamos muito a banana na nossa alimentação, o ‘Misi’ que é tipo uma pamonha misturada com milho moído feita na folha de bananeira e cozida no vapor. Hummmm… Fica uma delícia e me da água na boca só de falar!

Para quem não sabe a roça é uma área, geralmente, próxima da moradia na aldeia, onde a família indígena cultiva seus alimentos, sendo necessário um cuidado constante para retirar as plantas e os matos indesejados, as pragas e afastar animai. Minha infância foi muito rica, tendo total contato com a natureza, vendo o pôr-do-sol sentada em cima de uma árvore ou da canoa. A sensação é que o tempo na aldeia corre diferente, pois ele parecia passar mais lento, devagar. 

Sempre quis estudar e sou formada em confeitaria. Mas, atualmente, trabalho como modelo e artesã. Trabalhei um tempo na prefeitura de  Atalaia do Norte e na FUNAI, onde tive a oportunidade de viajar a serviço algumas vezes. Assim, conheci um pouco mais do mundo de fora. Como as minhas irmãs já estudavam fora na UFSCAR, em São Carlos, no interior de São Paulo, vi a oportunidade de, finalmente, realizar esse sonho e também de matar a saudade que estava delas. Fazia anos que não as encontrava, pois a distância até a nossa aldeia é enorme, uma viagem de dias e e dias, além de ser muito cara. 

Em São Carlos, pude fazer o curso de confeitaria no SENAC, o que já era um sonho antigo meu!  Foi nessa época que conheci o Felipe, em Brasília, durante um encontro indígena chamado ATL (Acampamento Terra Livre). Felipe é ambientalista e também morava em São Paulo. E foi amor a primeira vista, de ambas as partes!

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Para minha surpresa, chamei atenção pelo meus adornos, principalmente o que usávamos no nariz, algo típico da nossa aldeia. Meu reshpi, nome do adorno que é muito sagrado e usado por homens e mulheres na minha aldeia. Reshpi tem um significado espiritual, servindo de guia para a nossa transição após a morte, para o encontro com nossos ancestrais. É a nossa jóia mais preciosa! 

Meu adorno de nariz chamou atenção de um rapaz branco, de olhos claros, e muito bonito! Antes de conhecê-lo pessoalmente no acampamento, Felipe estava voltando de um trabalho com povos indígenas no Xingu e acabamos nos falamos através do Instagram. 

Foi lá que conheci o lindo trabalho que ele faz na área socioambiental com diversos povos tradicionais, dentre eles, os povos indígenas. Confesso que, quando comecei a segui-lo nas redes sociais, foi apenas pelo trabalho. Seu Instagram é cheio de fotos de crianças indígenas e imagens da natureza, o que muito me chamou a atenção. 

Dois meses depois, em abril do mesmo ano, fomos nos conhecer pessoalmente no acampamento, no dia 04 de abril de 2022. Foi muito surreal, porque foi amor a primeira vista! Ele foi muito gentil comigo! Em Brasília, ele estava produzindo conteúdos para uma mídia e tirou algumas fotos minhas. Naquele momento, confesso que já estava completamente encantada por ele. Depois vim saber que ele também já estava ‘caidinho’ por mim. 

Depois do evento, voltamos juntos para a cidade de São Carlos de ônibus e paramos em Campinas, onde ele morava. Gentilmente, Felipe me ofereceu uma carona até São Carlos e foi ali que começamos a nos aproximar mais. Já muito apaixonada, me surpreendi quando ele me pediu em namoro. Ainda me lembro como se fosse hoje! Estava toda emocionada e sem acreditar naquele momento tão especial na minha vida! 

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(Acervo pessoal/Divulgação)

Nosso começo de namoro foi um pouco difícil, até mesmo por causa da distância, ele morando em Campinas e sempre viajando por todo o país, eu em São Carlos, estudando e morando com as minhas irmãs. Mesmo assim, quando tínhamos tempo dávamos um jeito de estarmos juntos! 

Em junho de 2022, conheci a família do Felipe, logo depois do pedido de namoro. Fui muito bem recebida por eles. Me senti em casa! Meus sogros moram em Campinas e em nenhum momento me estranharam. A relação que tenho com a família dele é tranquila, de muito respeito! Eu amo eles e lá me sinto totalmente em casa! Sou muito grata por todo carinho e respeito que eles têm por mim e pelos meus costumes. 

Já com muitos sonhos em comuns e milhares de planos juntos, logo o pedido de casamento veio! Nem acreditei! Vibrei de emoção! Foi rápido o pedido e isso me deixou ainda mais radiante! Aí, então, surgiram muitas dúvidas de como iríamos realizar o nosso casamento. Qual seria a cerimônia para essa construção conjunta. Se seria na aldeia ou na cidade, onde já vivíamos. Decidimos, então, pelo casamento realizado na minha cultura, numa cerimônia tradicional indígena. 

Mas, para isso, Felipe teria que ir até a minha aldeia conversar com meus pais e também com meu tio, o Cacique Acildo. Ele teve que viajar milhares de quilômetros para fazer esse pedido.  

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Felipe foi muito bem recebido pela minha família. Meu tio fez questão de estar presente na nossa cerimônia de casamento. Sou a primeira indígena da minha aldeia a se casar com um homem branco. E isso deixou a minha família um pouco em alerta. Minha mãe estava muito receosa e preocupada do Felipe não gostar da nossa alimentação tradicional, como a carne de caça (nós comemos queixada, que é porco do mato, comemos macaco e anta) e também tivemos medo dele estranhar a nossa cultura. Minha mãe falava com Felipe na língua ‘Marubo’ e eu traduzia tudo. Além disso, nossa estrutura familiar é bastante diferente. 

Assim que chegamos na aldeia, meu pai logo chamou Felipe para conversar na frente de toda a minha família e lhe disse diretamente: ‘Você está querendo brincar com a minha família ou está querendo casar mesmo com minha filha?’ E lhe disse mais: que muitos homens brancos vêm aqui na aldeia só para se aproveitar das indígenas e que ele não iria permitir isso.

Além disso, meu pai lhe disse que os homens brancos se casam e se separam muito rápido. E na nossa cultura o casamento é para a vida toda. Felipe se assustou com essa fala sincera do meu pai mas, prontamente, lhe respondeu que queria realmente se casar comigo! 

Minha família, então, aceitou o casamento e afirmou que o fato do Felipe ter viajado de tão longe mostrava que ele realmente respeitava a minha família e que ele queria, de fato, se casar. 

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(Acervo pessoal/Divulgação)
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A cerimônia foi marcada para o dia 18 de novembro de 2022, e foram duas semanas de preparação dos adornos indígenas do Felipe, dos meus, das madrinhas e dos parentes. Nossos familiares viajaram de vários lugares para fazer parte desse momento especial.

Os homens da nossa aldeia foram caçar e as mulheres colheram as frutas e legumes na roça, pois o casamento seria farto. No meu povo, acontecem três tipos de casamento, mas minha família optou por fazer uma cerimônia mais antiga e tradicional como os nossos antepassados se casavam. 

Um dia antes da cerimônia, minhas primas começaram a nos pintar com jenipapo, um fruto que quando tratado solta uma tinta que permanece quase duas semanas na pele. 

Chegado o grande dia, toda a minha família se reuniu bem cedo na maloca (que é uma construção indígena, feita de madeira e um tipo de palha onde todos da aldeia moram). Realizamos o casamento na maloca do meu avô.

Na nossa cultura, a cerimônia de casamento é, basicamente, uma sessão de conselhos dos anciãos, homens e mulheres mais velhos, com cantos tsaiki. Assim, o meu pulso e do Felipe foram amarrados um ao outro e a mesma corda foi amarrada a uma viga de madeira da Maloca. Lembro que o Felipe ainda brincou: ‘Acho que me amarraram para nenhum de nós fugir’.

Lhe expliquei que esse era um símbolo de união e aliança na nossa cultura. Foram, então, quase quatro horas de cerimônia com conselhos e cantos indígenas. Os conselhos falavam muito sobre cumplicidade, parceria e respeito. Foi lindo demais! 

Após o casamento, meu pai sentou com o Felipe para lhe explicar mais detalhes sobre a nossa cultura. Lhe falou também sobre a sua responsabilidade agora com a nossa família, da importância de manter e seguir as nossas tradições. E uma das coisas que mais chamou a atenção do Felipe foi a diferença da estrutura familiar do nosso povo.

Na nossa cultura, por exemplo, o homem, ao se casar com uma indígena do povo Marubo, pode se casar também com as irmãs da noiva (se quiser isso). E todas as irmãs da minha mãe, ou seja, as tias maternas da noiva, passam a ser sogras dele. Detalhe, tenho quatro tias maternas. Felipe brinca que ganhou, de uma só vez, quatro sogras!

Lembro que meu noivo olhou para mim, ainda assustado, mas logo lhe falei que ele não era um homem indígena, então, nada de ficar de olho nas minhas irmãs! Ele entendeu o recado. Todos na hora ali presentes deram risadas. E a cerimônia seguiu. Quando ele conta todos esses novos costumes aos amigos dele ninguém acredita! 

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(Acervo pessoal/Divulgação)

Após meu casamento, passamos ainda uns três meses de lua de mel na aldeia. Era importante essa convivência do Felipe com o meu povo e as minha raízes. Depois, voltamos para São Paulo por causa do trabalho do meu marido. Em breve, estaremos voltando para o Amazonas. Não posso ficar muito tempo sem o meu lugar! 

Tudo aconteceu rápido demais nas nossas vidas, mas acredito que o maior desafio nosso, como casal, foi mesmo a nossa comunicação. Vários desentendimentos entre a gente aconteceram porque eu usava uma palavra errada em português, por exemplo, ou porque eu não conseguia me expressar direito em português e acabava falando no meu dialeto.

Na aldeia e na cultura do meu povo, a esposa tem que tomar conta, com muito zelo e cuidado, do seu marido. Isso é cultural do nosso povo! Ou seja, a mulher deve preparar o alimento, dar banho no marido e até cortar suas unhas. Me lembro que, às vésperas do nosso casamento na aldeia, vi o Felipe cortando suas unhas e fiquei muito triste. Cheguei até a chorar. E ele, obviamente, sem entender nada, não imaginava o que tinha feito de errado! Conversamos muito sobre esses conceitos culturais, tanto meus quanto dele,.

Voltei para São Paulo já casada e lá comecei a trabalhar como modelo! Mais uma novidade para mim! Nunca imaginei que um dia trabalharia com isso, e acredito que tenho uma beleza totalmente fora dos padrões. O convite veio depois da visibilidade das minhas redes sociais por conta da marcha das mulheres indígenas em Brasília, onde conheci o Felipe. 

Deixei a timidez de lado, consegui posar e realizar as fotos. Fui convidada para fazer a campanha da Avon para a coleção de maquiagens da cantora Juliette. Minhas redes sociais seguem crescendo e isso me possibilitou a começar a trabalhar também no Instagram como influencer e produtora de conteúdo. Meu maior objetivo é sempre mostrar a minha cultura para milhares de pessoas que me seguem. (Me siga no @kena_marubo ) 

Quero aprender cada vez mais sobre outros cenários de comunidades tradicionais indígenas no Brasil e, assim, participar de mais dos projetos de impacto social, ambiental e educacional junto ao meu marido, Felipe.

Pretendo também usar dessa visibilidade que estou tendo na moda e na produção de conteúdo para criar ações e promover a nossa cultura indígena. Felipe e eu temos também um projeto pessoal de comprar algumas áreas na Amazônia e lá desenvolver projetos de agrofloresta e agroturismo de base comunitária, ou seja, mostrar que é possível realizar um desenvolvimento sustentável na Amazônia.

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(Acervo pessoal/Divulgação)

Hoje moro entre Campinas, em São Paulo, com meu marido, e em Atalaia do Norte, no Amazonas, com a minha família. Me divido entre os dois lugares. Somos um casal nômade e viajante. 

Amo crianças e estamos planejando ter filhos! Quero registra-los com nomes indígenas e lhes ensinar os nossos costumes e tradições. Na minha aldeia, é tradição dar o nome da mãe, do tio ou da tia para o bebê ao nascer. Assim como eu, que herdei o nome da minha tia-avó. Queremos ter, pelo menos, dois filhos. E, para nós, é muito importante ter uma menina, pois, segundo a nossa cultura Marubo, o sangue indígena só é passado através da mulher.

Criar os nossos futuros filhos dentro dos meus costumes é essencial para mim! Desejo que os nossos filhos tenham muito orgulho de serem indígenas!

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